A fronteira do Matopiba: as novas faces da expansão do capital e seus conflitos

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Blog do IFZ | 24/07/2025

Baixe aqui a coletânea “A fronteira do Matopiba: as novas faces da expansão do capital e seus conflitos

No coração dos Cerrados brasileiros, entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, uma região outrora marcada pela diversidade de povos e modos de vida camponeses vê-se, nas últimas décadas, transfigurada por uma engrenagem voraz: a expansão do agronegócio globalizado. É nesse cenário de transformações profundas que se inscreve a coletânea “A fronteira do Matopiba: as novas faces da expansão do capital e seus conflitos“, lançada em dezembro de 2024 pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A obra, que conta com a participação de dezenas de pesquisadoras e pesquisadores de diversas áreas, propõe uma leitura densa, crítica e multifacetada sobre um dos mais complexos laboratórios territoriais da contemporaneidade brasileira.

Trata-se de um livro que ultrapassa os limites do diagnóstico acadêmico e se afirma como ferramenta de compreensão e resistência, oferecendo subsídios valiosos tanto para o debate científico quanto para os movimentos sociais e políticas públicas de ordenamento territorial. Dedicado à memória do geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves, o livro emerge no contexto simbólico dos 60 anos do golpe civil-militar de 1964, lançando luz sobre o contínuo processo de expropriação e violência no campo, hoje reconfigurado sob novas roupagens, mas animado pelas mesmas lógicas de acumulação.

Organizada em cinco seções temáticas, a obra reúne 21 capítulos que mapeiam com precisão analítica as dinâmicas de territorialização do capital no Matopiba, suas contradições e os embates que suscita. O livro se inicia com uma instigante apresentação de Rogério Haesbaert, que rememora sua trajetória de pesquisa na região e situa o Matopiba como um espaço emblemático da modernização capitalista imposta de cima, em forte contraste com as territorialidades tradicionais “vindas de baixo”.

A primeira seção, A fronteira em perspectiva: teoria e história, explora as raízes e os sentidos da fronteira agrícola, suas mutações ao longo do tempo e sua inscrição nas disputas contemporâneas. Marta Inez Medeiros Marques reflete sobre as transformações do agronegócio brasileiro à luz da mundialização financeirizada; Vicente Alves analisa a reestruturação produtiva que remodela o centro-norte do Brasil; Ève Bühler discute a crescente “ambientalização” das fronteiras e os dilemas da sustentabilidade; e Cardoso e Lottermann problematizam a própria regionalização do Matopiba, revelando sua heterogeneidade interna e os limites das delimitações oficiais.

A segunda seção, A propriedade da terra e o mercado fundiário, mergulha na questão fundiária, desvelando os mecanismos de concentração, grilagem e financeirização da terra. Ariovaldo Umbelino de Oliveira apresenta uma contundente crítica ao modelo rentista fundado na grilagem e na propriedade privada. Fábio Pitta e Teresa Paris examinam os impactos dos fundos financeiros transnacionais sobre as terras do sul do Piauí, articulando a lógica das commodities e o mercado especulativo. Frederico e Spadotto expõem a presença crescente de investidores institucionais nacionais e estrangeiros no mercado fundiário. Gomes e Leite detalham dois casos emblemáticos de acúmulo de terras por empresas ligadas à Louis Dreyfus e à Universidade de Harvard. Finalmente, Raoni Azerêdo investiga o fenômeno das fazendas corporativas, ressaltando a captura da renda fundiária por estruturas empresariais transnacionais.

Na terceira seção, Os sujeitos do campo e a fronteira como território em disputa, a obra dá voz aos povos e comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas e geraizeiros, cujas formas de vida se veem ameaçadas pelo avanço do capital. Santos e Costa abordam a insurgência da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, destacando o papel do ritual Krenyê na resistência territorial. Nunes e Nogueira resgatam a memória de três comunidades quilombolas no sul do Piauí, reforçando a importância do vínculo simbólico e material com a terra. Layanna Lima analisa os desafios enfrentados pelo povo Akwẽ-Xerente diante da monetarização e fragmentação de seus modos de vida. Sousa Sobrinho denuncia a desterritorialização violenta dos camponeses geraizeiros no oeste baiano, revelando as contradições entre o avanço do agronegócio e a permanência camponesa.

A quarta seção, Bens naturais, impactos e conflitos socioambientais, evidencia as múltiplas dimensões da expropriação ambiental operada pelo agronegócio. Em um dos capítulos mais simbólicos da coletânea, Carlos Walter Porto-Gonçalves, Samuel Britto das Chagas e Thiago Damas narram a revolta da água em Correntina (BA), expondo a conivência estatal com o uso intensivo dos recursos hídricos pelo capital. Erick Kluck revela os bastidores da “grilagem verde”, um novo ciclo de apropriação territorial amparado na financeirização ambiental e na manipulação dos cadastros rurais. Figueiredo Lima e Ferreira, em parceria com a CPT e sindicatos locais, relatam os conflitos no Parque Estadual do Mirador (MA), onde o avanço agrícola, o uso de agrotóxicos e a grilagem digital ameaçam comunidades camponesas. Leite, Sátiro e Sauer, por sua vez, denunciam a transformação do Cerrado e do Matopiba em “zonas de sacrifício”, conclamando à revisão crítica do modelo de desenvolvimento vigente.

A coletânea encerra-se com a seção Exploração e acumulação na fronteira agrícola brasileira, dedicada à análise da territorialização do capital e seus impactos sobre o trabalho, os territórios e a reprodução social. Denise Elias propõe o conceito de “Regiões Produtivas do Agronegócio”, indicando a subordinação das economias locais a circuitos extrarregionais controlados por grandes corporações. Macedo, Stoffel e Veloso demonstram, com farta base empírica, como a política pública de fomento favoreceu a concentração fundiária e a precarização do trabalho no Matopiba, apesar do crescimento do PIB. Alberto Lopes examina as formas de superexploração e trabalho análogo à escravidão no Tocantins, evidenciando a violência estrutural do modelo agroexportador. Por fim, Rocha, Feliciano e Foschiera analisam a intensificação dos conflitos fundiários no estado, em especial diante do avanço do mercado de terras e da ocupação agropecuária nas áreas tradicionalmente ocupadas por camponeses.

A fronteira do Matopiba: as novas faces da expansão do capital e seus conflitos” não é apenas uma descrição minuciosa de um território em disputa: é uma convocação ao pensamento crítico, à resistência organizada e à defesa intransigente dos bens comuns e da justiça socioambiental. Seus capítulos tecem um panorama rico e perturbador das múltiplas violências — fundiária, ambiental, simbólica e laboral — que marcam a expansão capitalista no Brasil profundo. Ao mesmo tempo, suas páginas iluminam as estratégias de reexistência que florescem onde a terra ainda pulsa como território de vida. Neste sentido, o livro é tanto denúncia quanto esperança — e talvez resida aí sua força mais potente.