Divulgação do relatório da ONU pode ocultar que uma parcela expressiva da população brasileira continua sendo submetida a experiências de fome com intensidades e temporalidades variadas
Por José Raimundo Sousa Ribeiro Junior no Le Monde Diplomatique Brasil | 13/08/2025
No dia 28 de julho, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em conjunto com outras agências especializadas da ONU,[1] divulgou o relatório anual “O estado da segurança alimentar e nutricional no mundo”. No prefácio, assinado pelos dirigentes das agências, lemos que “apesar da produção global de alimentos ser suficiente, milhões de pessoas passam fome ou sofrem de má nutrição porque alimentos seguros e nutritivos não estão disponíveis, não são acessíveis ou, mais frequentemente, têm custo proibitivo”. Ainda no prefácio, alertam que essa realidade ameaça a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e enfatizam que “políticas coordenadas e baseadas em evidências” seguem indispensáveis para erradicar a fome e todas as formas de desnutrição.
No Brasil, o relatório ganhou grande destaque por confirmar a saída do país do Mapa da Fome da ONU. A notícia estampou a capa dos principais jornais impressos em 29 de julho, com manchetes como: “Brasil sai do mapa da fome após 3 anos” (O Globo); “Queda no risco de subnutrição tira Brasil do mapa da fome” (Folha de S.Paulo); “Brasil saiu do mapa da fome, mas ainda há insegurança alimentar (Estado de S. Paulo); “ONU diz que Brasil saiu do mapa da fome entre 2022 e 2024 (Correio Braziliense); “Brasil deixa o Mapa da Fome da ONU” (Valor Econômico); “População em risco de subnutrição cai e Brasil sai mais uma vez do mapa da fome” (Zero Hora). Assim como em 2014, quando o Brasil saiu desse mapa pela primeira vez, o governo federal celebrou a conquista atribuindo o resultado a políticas de redução da pobreza, ao apoio à agricultura familiar, ao fortalecimento de programas sociais e às melhorias nas condições do mercado de trabalho.
Apesar de não deixarem dúvidas com relação à melhoria da situação alimentar dos brasileiros desde o fim do governo Bolsonaro (PSL/PL), a divulgação do relatório da ONU pode ter um efeito perverso: ocultar que uma parcela expressiva da população brasileira continua sendo submetida a experiências de fome com intensidades e temporalidades variadas. Dados do mesmo relatório que retirou o Brasil do Mapa da Fome indicam que 13,5% dos brasileiros seguem com fome, situação mascarada pelo termo “insegurança alimentar moderada e grave”, um eufemismo tecnicista utilizado desde os anos 1990. Ao final, estamos diante de um paradoxo: o país comemora sua saída do Mapa da Fome enquanto 28,5 milhões de brasileiros – o equivalente à população de países como Venezuela ou Austrália – continuam enfrentando experiências de fome em seu cotidiano.
Atravessando um labirinto semântico
Para entender esse paradoxo, é preciso atravessar um labirinto semântico no qual conceitos como fome, desnutrição e insegurança alimentar são utilizados para moldar percepções, construir representações e, ao mesmo tempo, orientar e justificar ações em relação a essa problemática. Para não se perder nesse labirinto é necessário reconhecer que não existem definições únicas ou definitivas para cada um desses conceitos. Pelo contrário, diferentes definições coexistem e são utilizadas por agentes diversos, da tecnocracia global aos movimentos sociais. Cada qual carrega consigo um posicionamento que é simultaneamente teórico e político, conformando consensos e dissensos sobre o sentido da fome e orientando práticas divergentes para sua superação.
A partir das contribuições de autores como Josué de Castro, Carolina Maria de Jesus, Amrita Rangasami e Kathy Radimer, compreendo a fome como a privação de alimentos socialmente produzida e estruturalmente articulada às desigualdades de classe, raça e gênero. Essa privação se manifesta em um continuum que combina diferentes intensidades e temporalidades e faz da fome um fenômeno polimórfico, ou seja, que se manifesta de diversas formas. Vivida como um processo, a fome tem início no momento em que as pessoas passam a experienciar as sensações físicas e psíquicas provocadas pela privação de alimentos (mesmo que isso ainda não possa ser captado por medidas clínicas ou nutricionais) e pode chegar até o estágio em que os corpos e grupos sociais se encontram esgotados pela falta de alimentos (inanição e crise de fome). Além disso, temporalmente a fome pode se apresentar de maneira intermitente, recorrente ou constante no cotidiano das pessoas e grupos ou pode emergir em surtos provocados por situações como conflitos armados, colapsos econômicos e pandemias.
Os impactos causados pela fome são múltiplos e complementares, e se intensificam conforme a gravidade e duração da privação alimentar. Nos estágios iniciais, os sintomas físicos incluem sensações como estômago vazio, tonturas e fadiga, acompanhadas de dificuldade na concentração. Paralelamente, surgem efeitos psíquicos e emocionais como a ansiedade e irritabilidade, frequentemente associadas à preocupação constante com a próxima refeição. No plano social, observa-se um movimento de retração dos espaços coletivos, marcado pelo constrangimento e estratégias para ocultar a condição de privação. À medida que a situação se agrava, esses efeitos tornam-se mais evidentes e duradouros. No âmbito nutricional, instala-se a desnutrição, a perda de peso progressiva e a fraqueza permanente. Psiquicamente desenvolvem-se quadros de angústia crônica, redução da autoestima e sintomas depressivos. Socialmente, intensifica-se o sentimento de humilhação, especialmente em contextos de dependência de doações alimentares em ambientes estigmatizantes ou de busca por alimentos no lixo. Nos casos mais extremos, que se aproximam da fome total, a desnutrição severa compromete organicamente o corpo, levando à atrofia muscular e colapso do sistema imunológico. Nessa fase, os danos psíquicos tendem a evoluir para a apatia profunda ou desespero, podendo resultar em colapso emocional. Socialmente, as relações familiares e comunitárias sofrem rupturas significativas, com perda de vínculos sociais indispensáveis à condição humana. Essa dolorosa descrição é apenas uma tentativa, sempre limitada da perspectiva de quem a estuda, de explicitar que a fome compromete de maneira progressiva e interligada o corpo, a psique e os laços sociais, o que exige uma compreensão que inclui, porém transcende, a carência de calorias e nutrientes – ou seja, dos alimentos em sua forma abstrata.
A apresentação do conceito de fome já anuncia um segundo conceito fundamental desse labirinto semântico: a desnutrição. Entendida clinicamente como um estado patológico resultante da deficiência ou desequilíbrio prolongado no consumo de calorias e nutrientes essenciais, ela representa uma das manifestações biológicas mais graves da privação alimentar. Importante ressaltar que a desnutrição não é o único efeito dessa privação e que, em sua forma crônica, só é detectada em estágios avançados, quando as carências nutricionais geram danos significativos. Por isso, reduzir a fome à desnutrição crônica é um problema grave, pois exclui aqueles que já sofrem impactos físicos, psíquicos e sociais da privação de alimentos, mesmo que não apresentem os marcadores clínicos da desnutrição.
Este é o primeiro elemento-chave para compreender o paradoxo criado pela saída do Brasil do Mapa da Fome e a persistência da privação alimentar para 28,5 milhões de brasileiros. O indicador de prevalência de desnutrição[2] da FAO, criado nos anos 1970 para monitorar crises agudas de fome durante a Guerra Fria, opera com um recorte temporal e metodológico específico: avalia a desnutrição crônica com base no consumo calórico médio anual e, portanto, capta apenas os casos mais extremos e prolongados de privação alimentar. Como os próprios estatísticos da FAO reconhecem, esse é um indicador desenhado para capturar um estado de privação de alimentos que dura por um longo período de tempo.[3]
Essa métrica, ainda que útil para identificar crises agudas de fome e realizar comparações internacionais, cria uma representação da fome que pode invisibilizar manifestações menos severas, mas ainda assim devastadoras e, no limite, naturaliza experiências sociais de privação alimentar que não atingem o limiar da desnutrição crônica. Portanto, a saída do Mapa da Fome refere-se precisamente ao fato de que, no Brasil, menos de 2,5% da população encontra-se cronicamente desnutrida (limiar utilizado pela FAO para incluir um país no Mapa da Fome), e não à erradicação da experiência concreta da fome que atinge cotidianamente milhões de pessoas.
Por fim, o terceiro e último conceito que completa o labirinto semântico: a insegurança alimentar. Foge aos objetivos deste texto explorar profundamente os diversos sentidos atribuídos aos conceitos de segurança e insegurança alimentar e como eles são mobilizados de maneiras diversas por instituições e pesquisadores com diferentes perspectivas teóricas e políticas. Interessa-me aqui especificamente a maneira como, a partir dos anos 1980, organismos internacionais (entre eles o Banco Mundial e a própria ONU) e Estados nacionais substituíram progressivamente o termo “fome” pelo termo “insegurança alimentar”.
Um marco decisivo para essa substituição terminológica ocorreu durante a elaboração da Escala de Segurança Alimentar Domiciliar dos EUA (U.S. Household Food Security Survey Module), no início dos anos 1990. O processo revelou tensões conceituais fundamentais: embora utilizasse as Escalas de Fome como referência, originalmente elaboradas por pesquisadoras estadunidenses para captar experiências de fome em domicílios,[4] o grupo de trabalho responsável pela escala oficial travou intensos debates sobre a menção do termo “fome” no instrumento. Ao final do processo, adotou-se uma solução de compromisso: ambos os termos foram mantidos, porém subordinando “fome” à “insegurança alimentar”. Assim, a “insegurança alimentar” se tornou o conceito central, enquanto o termo “fome” foi associado somente aos seus estágios moderado e grave.
Durante pouco mais de uma década a fome figurou como sinônimo de insegurança alimentar moderada ou grave nos Estados Unidos. Contudo, uma revisão realizada em 2006 eliminou definitivamente o termo “fome” da escala oficial e os domicílios submetidos à privação de alimentos passaram a ser classificados como “em segurança alimentar muito baixa”. Por meio de eufemismos cada vez mais constrangedores consolidou-se o ocultamento do termo “fome”, mesmo que as perguntas que aferem a privação de alimentos e fazem referência direta à fome continuassem a compor o instrumento. Nesse labirinto semântico, a fome segue sendo medida, mas seu nome foi banido da escala.
Apesar do eufemismo tecnicista inerente ao conceito de insegurança alimentar, a metodologia que começou a ser elaborada por pesquisadoras estadunidenses consolidou-se como a melhor maneira de mensurar a fome em diferentes contextos. Essa escala estima tanto o risco iminente de fome (usualmente classificado como insegurança alimentar leve) quanto a privação em suas múltiplas intensidades (insegurança alimentar moderada e grave), fundamentando-se em uma concepção socialmente reconhecida do fenômeno, pois emerge das experiências reais das populações submetidas à privação de alimentos.
Por essa razão, ela se tornou rapidamente um contraponto ao indicador de prevalência de desnutrição utilizado pela FAO. Em 2012, ano em que José Graziano da Silva assumiu a direção-geral da FAO, o relatório “O estado da segurança alimentar e nutricional no mundo” reconheceu que a métrica da instituição era uma “estimativa conservadora da desnutrição”, como pontuado anteriormente, e que seriam necessários indicadores mais abrangentes e aprimorados para enfrentar o problema.[5] É nesse contexto que o projeto Vozes dos Famintos (Voices of the Hungry) toma como referência metodológica a escala estadunidense para desenvolver a Escala de Experiência de Insegurança Alimentar (FIES), que passou a ser adotada pela FAO desde 2014. Sintomaticamente, mais uma vez a “fome” ficou restrita ao título do projeto, enquanto os dados que confirmam a permanência das experiências de fome receberam o rótulo de insegurança alimentar moderada e grave, reforçando o eufemismo tecnicista consagrado desde o início dos anos 1980 pelo Banco Mundial e pela ONU.
O que denominamos aqui como labirinto semântico confunde até mesmo quem está inserido nos debates sobre a questão alimentar e serve, sobretudo, para subestimar a magnitude da privação alimentar. Esse labirinto opera em duas frentes: por um lado, reduz a fome a seus estágios extremos (desnutrição crônica), ocultando suas formas parciais e intermitentes; por outro, utiliza o eufemismo tecnicista da “insegurança alimentar” para mascarar a extensão real da fome. Essa manobra não é acidental, mas uma tentativa de redesenhar a fome como um fenômeno limitado, produto de falhas técnicas, políticas ou econômicas, e que pode ser contido ou mitigado sem a transformação das relações sociais de produção, assentadas na contínua expropriação e exploração de trabalhadores e trabalhadoras.
Em contraposição a esse posicionamento político e teórico, tenho proposto um desvio terminológico que desmonta o labirinto semântico e realinha os instrumentos técnicos ao que eles de fato mensuram. Assim, proponho que os dados obtidos pelo Indicador de Desnutrição da ONU sejam utilizados para se referir especificamente à desnutrição crônica, enquanto os dados obtidos por meio de escalas de insegurança alimentar devem ser utilizados para se referir ao risco de fome (insegurança leve) e à fome (insegurança moderada/grave). Essa proposta permite uma apropriação crítica dos dados existentes para construir representações que não subestimam nem ocultam a fome em suas várias formas.
Apropriação crítica dos dados
Em Geografia da Fome, publicado um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, Josué de Castro afirmou que a fome total era um fenômeno “limitado a áreas de extrema miséria e contingências excepcionais”.[6] Atualmente, o caso mais emblemático de submissão de uma sociedade à fome total é o de Gaza (Palestina), em que todos os 2,1 milhões de habitantes estão submetidos à crise de fome[7] provocada pelo Estado de Israel, que utiliza o controle sobre o acesso aos alimentos como instrumento de um genocídio.[8] A própria noção de excepcionalidade dos casos de crises de fome ou fome total deve ser problematizada, uma vez que o Relatório Global sobre Crises Alimentares (Global Report on Food Crisis) aponta que aproximadamente 295 milhões de pessoas estavam submetidas aos níveis mais intensos de fome em 53 países ou territórios africanos e asiáticos, com destaque para Nigéria, Sudão, República Democrática do Congo e Bangladesh.[9]
A esses casos extremos soma-se um contingente muito mais expressivo de pessoas que estão submetidas à fome em outras intensidades. Utilizando o desvio terminológico anunciado acima para ler os dados do último relatório da FAO, chegamos a uma representação mais fiel da crise alimentar: cerca de 2,3 bilhões de pessoas ou quase um terço da população mundial (28,3%) estava submetida à fome (insegurança alimentar moderada e grave). Desse total, 685,6 milhões (8,5% da população mundial) sofriam com a desnutrição crônica. Nesses termos, a magnitude da fome é pelo menos três vezes maior do que anuncia o relatório.
A espacialização da fome é marcada por uma enorme desigualdade entre o centro e a periferia do capitalismo mundial: aproximadamente 95% das pessoas em situação de fome no mundo viviam na Ásia (1,1 bilhões), na África (857,6 milhões) e na América Latina e Caribe (179,8 milhões). Simultaneamente, mesmo que com menor intensidade, a fome se faz presente no centro do capitalismo: na América do Norte e Europa, cerca de 94,3 milhões de pessoas (8,4% da população) experienciavam a situação. Essa geografia da fome, imposta por séculos de colonialismo e imperialismo em suas formas clássicas e renovadas, explicita que a privação de alimentos, longe de ser um fenômeno conjuntural ou restrito a regiões específicas, é estrutural. Ela não é o resultado exclusivo de falhas ou eventos disruptivos, mas produto das próprias relações sociais de produção, cujo sentido último é a acumulação ilimitada de capital, indiferente às consequências sociais e naturais.
A cartografia tanto pode ser instrumento daqueles que detém o poder e visam a manutenção da ordem existente, como uma ferramenta de luta implicada em processos de transformação social.[10] Se o Mapa da Fome da ONU serve para denunciar a privação de alimentos na escala internacional, ao mesmo tempo ele opera uma significativa redução desse fenômeno. Para além de subdimensionar a crise alimentar, ele justifica agendas, políticas e programas que pretensamente seriam capazes de promover a superação do problema, quando na verdade operam a gestão da fome. Por isso, nos últimos anos temos insistido na apropriação crítica de dados existentes, para produzir outros Mapas da Fome, como no Atlas das Situações Alimentares no Brasil Contemporâneo.[11]
Evolução da desnutrição crônica e da fome – Brasil (2000-2024)

Elaboração: José Raimundo Sousa Ribeiro Junior
Negar, gerir ou superar
A segunda saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU explicita que a privação de alimentos é um fenômeno dinâmico, cuja magnitude oscila de acordo com emergência e consolidação de diferentes projetos políticos.
A ascensão de um projeto neoconservador, que aliou fundamentalismo de mercado e autoritarismo, foi responsável pelo crescimento da fome e da desnutrição crônica no país, fazendo com que o Brasil retornasse ao Mapa da Fome. Diversas razões levaram a isso, entre elas a compressão dos rendimentos dos trabalhadores, os sucessivos ataques aos direitos trabalhistas e previdenciários e o desmonte de políticas públicas em meio à pandemia, em especial aquelas diretamente relacionadas à produção e distribuição de alimentos. Frente à intensificação da crise alimentar que ele mesmo produzia, eram apresentadas soluções ilusórias como uma desregulação ainda mais intensa dos mercados, a modernização dos sistemas alimentares com tecnologias corporativas (agrotóxicos, transgênicos) e a privatização da assistência alimentar via filantropia ou caridade. Além disso, a postura negacionista alcançava a questão alimentar como no caso em que Jair Bolsonaro declarou que no Brasil não se passa fome por não ver “gente pobre pelas ruas com físico esquelético”.
Por sua vez, o projeto político de cunho liberal social (ou progressista) tem demonstrado que por meio de ações coordenadas é possível diminuir a fome e a desnutrição crônica no país. Alinhado aos mesmos organismos internacionais que subdimensionam a fome para que ela possa parecer administrável, esse projeto tem como perspectiva a promoção da segurança alimentar via boa governança, parcerias público privadas, programas sociais focalizados (transferência de renda, assistência social), políticas sociais baseadas em evidências, aperfeiçoamento dos sistemas alimentares (redução do desperdício, agronegócio verde) e assistência alimentar (patrocinada ou não por grandes empresas). Em síntese, orientam suas ações como se todos fossemos “parceiros” no processo de superação da fome. Sob o manto do desenvolvimento sustentável e da segurança alimentar, promove a ilusão de que é possível superar a fome sem transformar as relações sociais de produção e de propriedade. Contudo, uma interpretação crítica da questão alimentar e uma apropriação dos dados publicados nos últimos vinte anos explicita que essa perspectiva foi e segue incapaz de acabar com a fome no Brasil e no mundo, o que reforça a compreensão de que seu sentido último é a gestão da fome para garantir a continuidade reprodução de nossa sociedade nos termos em que ela está organizada.
Se atualmente nos vemos presos a uma oscilação entre um projeto neoconservador, que nega a existência da fome enquanto intensifica sua produção, e um projeto liberal social, que procura fazer a gestão da fome sob o emblema da segurança alimentar, isso é um sinal de que nosso horizonte político está bastante reduzido. Presos entre essas duas perspectivas, abdica-se do projeto de erradicar a fome.
Somente um projeto político emancipador, cujas estratégias sejam construídas coletivamente e no encontro da teoria com a prática, pode nos levar à superação da fome. Somente um projeto que reconheça que a fome é um problema estrutural, e que sua superação exige transformações estruturais, pode atingir esse objetivo. Essa é a perspectiva da soberania alimentar defendida pelos movimentos sociais que tem como horizonte a emancipação, como a Via Campesina que se contrapõe à perspectiva da segurança alimentar dos organismos internacionais desde os anos 1990.
É importante considerar que a própria concepção de soberania alimentar também está em disputa. Reivindicar a soberania popular sobre um elemento tão central para a reprodução dos trabalhadores e trabalhadoras significa reivindicar uma transformação profunda de nossa sociedade. Significa se contrapor à chantagem que é empurrar as pessoas aos trabalhos mais degradantes e mal pagos porque elas estão com fome. Significa se opor à tirania da propriedade privada e reivindicar o controle dos meios de produção e subsistência necessários para que todos possam se apropriar de maneira profunda dos alimentos e das práticas que os cercam.
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior é professor da UFABC, onde integra o Laboratório Justiça Territorial (LABJUTA).
[1] Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (IFAD), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Programa Mundial de Alimentos (PMA) e Organização Mundial da Saúde (OMS). Disponível em: https://doi.org/10.4060/cd6008en.
[2] No site da FAO em português Prevalence of Undernourishment (PoU) é traduzida de três formas: prevalência de desnutrição, prevalência de subnutrição e prevalência de subalimentação. Neste texto utilizaremos sempre a primeira forma por ser a mais frequentemente utilizada.
[3] CAFIERO, C. Advances in hunger measurement: traditional FAO methods and recent innovations. Statistics Division, FAO, Rome, Italy, 2014.
[4] RADIMER, Kathy et al. Understanding hunger and developing indicators to assess it in women and children. Journal of Nutrition Education, v. 24, n. 1, p. 36S-44S, 1992. WEHLER, Cheryl et al. The community childhood hunger identification project: A model of domestic hunger – Demonstration project in Seattle, Washington. Journal of Nutrition Education, v. 24, n. 1, p. 29S-35S, 1992.
[5] FAO. The State of Food Insecurity in the World 2012. Rome: FAO, 2012.
[6] CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2008.
[7] Na Faixa de Gaza, a distribuição da população em 2024 apresentava-se da seguinte forma: 24% em crise (Fase 3), 54% em emergência (Fase 4) e 22% em catástrofe (Fase 5). Cabe destacar que “a partir do nível crise (3), os domicílios já apresentam déficits no consumo alimentar refletidos em desnutrição aguda elevada ou acima do normal.” (FSIN; GNAC, 2025, p. 156 e 207). Disponível em: https://www.fsinplatform.org/report/global-report-food-crises-2025/
[8] UN Special Committee finds Israel’s warfare methods in Gaza consistent with genocide, including use of starvation as weapon of war [O Comitê Especial da ONU considera que os métodos de guerra de Israel em Gaza são consistentes com genocídio, incluindo o uso da inanição como arma de guerra]. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/press-releases/2024/11/un-special-committee-finds-israels-warfare-methods-gaza-consistent-genocide.
[9] Somente o Haiti apresentava níveis de fome tão intensos fora da África e da Ásia. “Nigéria, Sudão, República Democrática do Congo e Bangladesh tiveram as maiores populações enfrentando altos níveis de insegurança alimentar aguda em 2024, cada uma com pelo menos 23 milhões. Os quatro países representaram mais de um terço do total de pessoas em crise ou pior (IPC/CH Fase 3 ou superior). Eles foram seguidos pela Etiópia, Iêmen, Afeganistão, Mianmar, Paquistão e República Árabe Síria, cada um com entre 9 milhões e 22 milhões de pessoas afetadas. A Palestina (Faixa de Gaza) teve a maior parcela de sua população enfrentando altos níveis de insegurança alimentar aguda em 2024, chegando a 100%, assim como em 2023. Cerca de metade da população enfrentou altos níveis de insegurança alimentar aguda no Haiti, Sudão do Sul, Sudão e Iêmen. No Afeganistão, República Centro-Africana, Namíbia, República Árabe Síria e Zâmbia, a proporção foi de pelo menos 33%.” (FSIN; GNAC, 2025, p.2). Disponível em: https://www.fsinplatform.org/report/global-report-food-crises-2025/
[10] CRAMPTON, Jeremy. W.; KRYGIER, John. An introduction to critical cartography. ACME: An international e-journal for critical geographies, v. 4, n.1, p.11-33, 2006.
[11] RIBEIRO JUNIOR, José Raimundo Sousa; SAMPAIO, Mateus de Almeida Prado; BANDONI, Daniel Henrique; DE CARLI, Luiza Lima Silva. Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo. Bragança Paulista: Universidade São Francisco, 2021. Disponível em: https://sites.google.com/view/atlas-situacoes-alimentares.
Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil
https://diplomatique.org.br/fora-do-mapa-ainda-com-fome/
