Entre críticas e sucessos a Cúpula de Sistemas Alimentares veio para ficar

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Na Cúpula deste ano, Brasil esteve presente com uma delegação de peso, que mostra a importância que o governo brasileiro coloca na agenda, presente em quase todas as principais mesas do evento, sempre referenciado como exemplo de sucesso

Por Juliana Tângari no Nexo Jornal | 15/08/2025

Não sem muitas críticas da sociedade civil internacional, em 2020 o Secretário geral da ONU, Antonio Guterres, convocou pela primeira vez uma Cúpula de Sistemas Alimentares para se realizar em setembro de 2021. Muito se questionou à época sobre a relevância dessa Cúpula, dado todos os outros espaços de conferência e construção de políticas globais já em curso – notadamente o Comitê Mundial de Alimentos (o CFS na sigla em inglês) – assim como o mandato da FAO e outras agências ONU já estabelecidas para endereçar as ações que se buscava alavancar a partir dessa Cúpula, e ainda a estrondosa crítica à participação do setor privado em pé de igualdade com demais atores políticos – setor privado esse muitas vezes causador dos desafios contemporâneos dos sistemas alimentares.

As críticas ecoaram mas não abafaram a ideia do Secretário Geral da ONU, que focou o novo mecanismo – a nosso ver – em dois propósitos muito claros: dar o tom da mensagem de que os desafios dos sistemas alimentares são complexos, requerem abordagem sistêmica não podendo, portanto, ser tratados em silos estanques. E como consequência, a mensagem da urgência e relevância do desafio do cenário atual precisava vir do topo da ONU. Além disso, a ONU deixa também claro naquele momento que mais compromissos e declarações não faziam mais sentido. Guterres pede foco nos mecanismos de implementação: ações que possam ser consideradas “gamechangers”. E sim, com o setor privado sentado à mesa. Os otimistas acreditam que o setor privado precisa estar presente para ser constrangido a agir pelo bem comum; os céticos acreditam que o risco de captura política causada pela assimetria de poderes não compensa o esforço.

Na prática, os dois principais produtos da Cúpula de 2021 foram (i) a definição de Caminhos nacionais de transformação de sistemas alimentares (algo como as NDCs da COP, mas aplicadas para sistemas alimentares, e sem obviamente o arcabouço de tratados internacionais mandatórios) e (ii) o lançamento das chamadas Coalizões.

Para o Instituto Comida do Amanhã, algumas dessas Coalizões entraram no nosso radar. Chamo atenção para a de Sistemas Alimentares Urbanos – uma das que não vingaram num primeiro momento e está sendo reinventada agora; a de Alimentação Escolar – co-liderada pelo governo Brasileiro e uma das mais fortes em alavancar adesões de governos nacionais; a de Agroecologia – que depende imensamente de organizações não governamentais globais, mas vem crescendo cada vez mais de relevância internacional.

Alguns ajustes se seguiram após 2021: (i) As Cúpulas seguirão a cada dois anos – chamadas de Cúpulas de Balanço, para os governos membros da ONU e as Coalizões informarem o quanto avançaram em suas ações no período. (ii) Consolidou-se o conceito de não se tratar de espaço de construção política nem de orientações de políticas alimentares. Tem um “quê” de acelerador de negócios aplicado a ações de governos nacionais.

Dito isso, as duas cúpulas de balanço ocorreram em 2023 e 2025. A primeira em Roma, a segunda na Etiópia, co-sediada pelos governos da Itália e Etiópia. A 3ª Cúpula – ou a 2ª Cúpula de Balanço, apelidada de UNFSS+4 – realizada na sede da ONU na África, obviamente mais se voltou para o continente africano. E isso por uma razão simples e triste: a África é, segundo o SOFI , o continente que apresenta os piores dados e previsões para a insegurança alimentar.

Tanto na abertura quanto no encerramento, surpreendentes menções expressas à defesa da soberania alimentar foram entregues nos discursos da Itália, pela voz da primeira-ministra e do ministro de relações exteriores. Por mais que soberania alimentar para países do Norte global não costume ter o mesmo sentido que para o Sul global, as referências foram no mínimo interessantes e inusitadas.

Os eventos paralelos foram poucos, mas havia uma boa quantidade deles. Muito destaque para o espaço ocupado para o debate das questões mais relacionadas às comunidades tradicionais e indígenas, juventude e agroecologia.

Eu, que gosto de olhar para a metade cheia do copo, acredito que a defesa da agroecologia tem sido crescente ao longo das Cúpulas de Sistemas Alimentares. Antes um tema ou argumento menos presente nas falas principais, agora cada vez mais presente nos discursos como a via alternativa para a produção de alimentos sustentável no mundo. Ponto para a Coalizão da Agroecologia.

A alimentação escolar, pela força de sua Coalizão, também vem se consolidando como instrumento catalítico de diversas mudanças que se querem ver integradas numa agenda de transformação de sistemas alimentares. O encontro da Coalizão da Alimentação Escolar na Cúpula deste ano foi encerrado com nada menos que Amina Mohammed lançando a ideia da inclusão de tais programas nas NDCs dos países.

Acredito, contudo, que a estrela da Cúpula deste ano – sem ufanismo – foi o Brasil. Com uma delegação de peso, que mostra a importância que o governo brasileiro coloca na agenda, presente em quase todas as principais mesas do evento, sempre referenciado como exemplo de sucesso. Especialmente a forma como a Aliança Global contra Fome e a Pobreza se tornou a “queridinha” em exemplo de meio de implementação, sempre nas falas das lideranças da FAO e da ONU de um modo geral.

De uma forma incomum (quando analisados os eventos das Cúpulas e Pré-Cúpula) mas ao mesmo tempo estratégico e muito simbólico, tivemos um Ministro de Estado brasileiro tanto no lançamento oficial do SOFI 2025 – para celebrar a notícia da incrível redução dos níveis de insegurança alimentar no país, mas também no encerramento oficial, que incluiu ainda vozes de agricultoras tradicionais da América Latina clamando por visibilidade.

Por fim, a quase ausência de menções à catástrofe da fome em Gaza ecoou nos corredores. Nos últimos minutos, contudo, Amina Mohammed pigarreou, pediu água, pensou e falou: “e com a minha voz de volta, quero dizer bem alto o nome Gaza”. Esperava-se mais. Foi, contudo, um momento de alívio e longos aplausos.

Juliana Tângari é diretora no Instituto Comida do Amanhã, ex-membro da Rede de Champions da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU e membro suplente do Board of Champions da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza.

Publicado originalmente no Nexo Jornal
https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2025/08/15/entre-criticas-e-sucessos-a-cupula-de-sistemas-alimentares-veio-para-ficar