O mito da escolha, gordofobia, desigualdade e ciência

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Por Danielle Zulques no IREE | 02/09/2025

“Ser gordo é uma escolha.” Poucas frases concentram tanto preconceito e desinformação quanto essa. Ela circula com força nas redes sociais, em rodas de conversa e até em discursos médicos simplistas, como se o corpo humano fosse uma planilha matemática. Ingere-se X, gasta-se Y, resultado igual à forma idealizada. Quem não se enquadra nessa conta, dizem, não tem força de vontade.

Falo também a partir da minha experiência. Minha vida inteira foi atravessada por essa eterna briga com a balança. Não foram poucas as vezes em que ouvi que se eu realmente quisesse, bastaria “fechar a boca”. Esse tipo de sentença, aparentemente inofensiva, carrega em si um julgamento moral. O corpo gordo seria a prova de um caráter fraco.

Mas a ciência vem desmentindo essa narrativa simplista. A Organização Mundial da Saúde estima que mais de 1 bilhão de pessoas vivem com obesidade no mundo, sendo 650 milhões adultos, 340 milhões adolescentes e 39 milhões crianças. No Brasil, a Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE, 2020) mostrou que mais de 60% da população adulta tem excesso de peso e quase 30% está em situação de obesidade. Esses números não podem ser explicados por mera “falta de vontade”. Pesquisadores indicam que genética, metabolismo, hormônios, condições psicológicas e ambientais estão profundamente implicados nesse processo. Há famílias inteiras predispostas geneticamente a acumular gordura de determinada forma. Há organismos que reagem de modo distinto a dietas. Há metabolismos diferentes. Há impactos hormonais que não se resolvem com força de vontade.

Além disso, a desigualdade também pesa, e muito. Falar em “escolha” é ignorar que parte da população pode pagar nutricionistas, academias, remédios e até cirurgias, enquanto milhões não têm sequer acesso regular a alimentos frescos. O ultraprocessado barato e viciante está sempre mais disponível do que a comida nutritiva. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE) já mostrou que famílias de baixa renda consomem proporcionalmente mais produtos ultraprocessados porque são baratos, calóricos e de longa duração. É desconsiderar também a jornada dupla ou tripla de trabalho que deixa pouco espaço para cuidar de si. A obesidade, nesses casos, é expressão das condições de vida, não de escolhas isoladas.

José Graziano da Silva, ex-diretor da FAO, já alertou que “combater a obesidade será ainda mais difícil do que erradicar a fome”. E ele tem razão. Porque não estamos falando apenas de calorias, mas da desigualdade brutal que define quem pode escolher o que come e quem só come o que sobra.

Eu mesma já quis acreditar que bastava querer. Já acreditei no discurso da força de vontade como caminho único. Mas, na prática, esse discurso só produz mais frustração, mais culpa e mais exclusão. Ele esconde que o combate à obesidade exige não apenas escolhas individuais, mas também políticas públicas sérias. Educação alimentar, acesso à saúde, combate à pobreza e regulação da indústria que lucra com alimentos que adoecem são caminhos indispensáveis.

Ser gordo não é uma escolha isolada. É o resultado de um conjunto de fatores biológicos, sociais e econômicos. Continuar dizendo o contrário é insistir em uma mentira conveniente que transforma uma questão coletiva em culpa individual.


Danielle Zulques é diretora de política e sociedade do IREE. Advogada formada pela FAAP e pós-graduada em Ciências Políticas pela FESPSP. É Coordenadora da CAUSA – rede que conecta advogadas a mães em busca de suporte legal.

Publicado originalmente no IREE
https://iree.org.br/o-mito-da-escolha-gordofobia-desigualdade-e-ciencia/