Nas últimas quatro décadas, o autosserviço consolidou-se como o principal canal de compra de alimentos processados e ultraprocessados, promovendo uma dieta monótona baseada em poucas categorias de produtos
Por Walter Belik no Nexo Jornal | 05/09/2025
O sistema alimentar opera como uma engrenagem complexa, na qual todas as peças se movimentam de forma coordenada. Os atritos são inevitáveis, e, por se tratar de um mecanismo baseado em relações sociais, algumas peças precisam ser substituídas periodicamente para garantir o funcionamento contínuo da máquina. Novas tecnologias são desenvolvidas e novas formas de interação social são estabelecidas para assegurar a funcionalidade do sistema como um todo.
A Primeira Revolução Industrial (1760–1850), ao racionalizar os processos produtivos e introduzir maquinários, permitiu que a produção atingisse escalas inéditas. No setor alimentício, técnicas como a pasteurização e o enlatamento viabilizaram o transporte de alimentos a longas distâncias, ampliando significativamente o alcance dos mercados. Já a Segunda Revolução Industrial (1870–1914) trouxe inovações como a refrigeração, que impulsionaram ainda mais a produção e a distribuição. Infraestruturas como ferrovias, navegação a vapor e telégrafos possibilitaram a circulação global de bens, em um contexto de livre comércio.
Apesar das crises de superoferta, a competição estimulava a produção em larga escala. A incorporação de novos fornecedores agrícolas fez com que “alimentos baratos começassem a jorrar aos borbotões sobre as áreas urbanizadas da Europa” (Hobsbawm, 1986:119).
Enquanto a indústria exige altos investimentos em capital fixo para crescer e manter sua lucratividade, o comércio pode expandir tanto pelo aumento das operações quanto pela aceleração da rotação de estoques — base do capital mercantil. Investimentos em distribuição, aproveitando os avanços em transporte e comunicação, permitem ampliar rapidamente a margem de lucro no setor comercial.
No século 19 e início do 20, o elo da distribuição nas cadeias alimentares viabilizou um novo padrão de consumo para as crescentes populações urbanas. A logística se modernizou, e o comércio atacadista e varejista passou por profundas transformações. O antigo sistema de pequenos mercados foi gradualmente substituído por modelos modernos de comercialização, com destaque para o autosserviço. Baseado na fórmula “baixa margem x alto giro”, os supermercados viabilizaram a distribuição em massa, assim como as lojas de departamento e os catálogos facilitaram o escoamento de produtos como vestuário, calçados e outros bens duráveis em período anterior.
No caso dos alimentos — agora equiparados a outras mercadorias — o funcionamento desse sistema exigia padronização e durabilidade, visando à redução dos custos de produção e transação. Nesse contexto, os alimentos frescos, como FLV (frutas, legumes e verduras), por serem não homogêneos e de difícil padronização, tornaram-se menos lucrativos e competitivos para a distribuição moderna. No entanto, essa realidade vem se transformando, e o caso brasileiro oferece importantes lições.
Os supermercados chegaram tardiamente ao Brasil, nos anos 1950, mas foi apenas a partir da década de 1970 que o autosserviço passou a ocupar espaço significativo, enfrentando forte concorrência do comércio tradicional além de desafios como a legislação trabalhista e o modelo tributário anacrônico. Inicialmente, a venda de FLV era vista como complementar, e os consumidores eram atraídos pelos preços baixos dos alimentos industrializados e itens de higiene e limpeza. O layout das lojas refletia essa lógica: os FLV ficavam no fundo, com preços pouco competitivos. A resistência do consumidor não se limitava ao preço — era difícil competir com o frescor das frutas da feira-livre, a carne cortada na hora do açougue e o aroma do pão recém-saído da padaria.
A interação entre o indivíduo e o alimento ocorre no chamado ambiente alimentar. Embora a disponibilidade de produtos pela agropecuária e pela indústria seja determinante, fatores como o local de compra, a seleção, a apresentação e o modo de consumo também fazem parte desse ambiente. A renda, as condições sociais e os espaços de comercialização influenciam fortemente esse cenário, e o sistema de autosserviço é peça-chave nessa engrenagem.
Nas últimas quatro décadas, o autosserviço consolidou-se como o principal canal de compra de alimentos processados e ultraprocessados, promovendo uma dieta monótona baseada em poucas categorias de produtos. Contudo, mais recentemente, sua importância na comercialização de alimentos frescos também vem crescendo. O aumento da renda, o planejamento urbano deficiente – com muitas áreas não servidas por equipamentos de abastecimento, e os avanços tecnológicos têm reforçado essa tendência.
Essa mudança começou com o desenvolvimento de Centros de Distribuição privados e o aprimoramento do rastreamento de alimentos frescos, o que permitiu ganhos de escala e preços mais competitivos na seção de FLV. Paralelamente, a disputa por margens com a indústria alimentícia impôs uma nova dinâmica aos supermercados, que passaram a dar mais espaço aos alimentos frescos. Estes agora ocupam áreas de destaque no layout das lojas — na entrada e em posição estratégica — funcionando como chamariz para os consumidores.
Dados recentes das POFs (Pesquisas de Orçamentos Familiares) sobre hábitos de compra reforçam essa transformação, evidenciando o papel crescente dos supermercados na oferta de alimentos frescos e na configuração do ambiente alimentar urbano. Na discriminação por grupo de alimentos, é evidente a predominância dos supermercados na escolha do consumidor para a compra de ultraprocessados, mas também chama atenção o peso desses estabelecimentos na aquisição de alimentos in natura ou minimamente processados (Silva et al., 2025). Essas preferências reforçam o crescimento do FLV como negócio para os supermercados, que já retiram aproximadamente 9% do seu faturamento dessa seção.
Todavia, a tecnologia e os avanços logísticos também podem beneficiar pequenas estruturas de comercialização, permitindo a prática de preços competitivos em produtos diferenciados e, com isso, oferecendo um serviço mais qualificado ao consumidor. A mudança de paradigma — da produção em massa para a produção local em pequena escala e circuitos curtos de distribuição — já está em curso, devolvendo competitividade aos pequenos comércios, mercados e feiras livres. Com o apoio de políticas públicas direcionadas e o incentivo à mudança de hábitos de consumo, é possível avançar na melhoria da dieta da população.
BIBLIOGRAFIA
Hobsbawm, Eric J. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986 (4ª edição).
Silva, L. et al. Sistema de classificação dos locais de aquisição de alimentos com base no Guia Alimentar para a População Brasileira: Locais-Nova Epidemiol.. Serv. Saúde 34, 2025.
Walter Belik é professor titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e diretor do Instituto Fome Zero
Publicado originalmente no Nexo Jornal
https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2025/09/05/a-evolucao-do-sistema-alimentar-e-o-papel-do-autosservico
