Atlas da Justiça Climática na América Latina e no Caribe

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Blog do IFZ | 08/10/2025

Atlas da Justiça Climática: cartografar o futuro desde a América Latina e o Caribe

O Atlas da Justiça Climática na América Latina e no Caribe, recém-publicado pelo El Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), apresenta-se como uma obra de rara amplitude e sensibilidade. Reunindo pesquisas, mapas e narrativas visuais, ele oferece uma leitura crítica e envolvente da emergência climática, convidando o leitor a compreender que enfrentar o colapso ambiental exige também enfrentar as desigualdades que o sustentam. Mais do que um levantamento de dados, o Atlas propõe uma forma de ver e pensar o continente a partir da justiça — uma justiça que ultrapassa fronteiras, disciplinas e discursos técnicos para reencontrar o sentido humano e político da vida comum.

Fruto da colaboração entre o Observatório Interdisciplinar das Mudanças Climáticas (OIMC/UERJ), o Observatório de Geopolítica e Transições Ecossociais (GeoEcos) da Universidade Complutense de Madrid e o Laboratório de Análise Política Mundial (LABMUNDO), o Atlas reúne pesquisadores, cartógrafos, comunicadores e ativistas de todo o continente. Sua proposta é clara: aproximar ciência, política e sociedade, desenhando um panorama crítico da emergência ambiental e de suas dimensões sociais e éticas.

Desde as primeiras páginas, o Atlas propõe uma inversão de perspectiva. A crise climática não é apresentada como um fenômeno técnico, mas como resultado de uma longa história de desigualdades e violências. O texto inicial lembra que as fronteiras da devastação coincidem com as da pobreza, e que os povos menos responsáveis pelas emissões globais são justamente os que enfrentam os impactos mais severos. A América Latina e o Caribe — ricos em biodiversidade, mas marcados por séculos de exploração — estão entre os lugares onde essa injustiça se manifesta com maior nitidez.

O Atlas é , portanto, um gesto de resistência e de cuidado. Ele não descreve apenas catástrofes, mas também alternativas: práticas locais, redes solidárias e políticas públicas que reinventam o modo de habitar o planeta. É um convite à reflexão e, sobretudo, à ação — um chamado para transformar a geografia do sofrimento em mapa de possibilidades.

Fome e contaminação: o peso da crise sobre o prato

Um dos capítulos mais contundentes do Atlas dedica-se à relação entre insegurança alimentar e impactos ambientais. Nele, o leitor se depara com o paradoxo latino-americano: um território que produz vastas quantidades de alimentos, mas onde a fome se espalha silenciosamente.

A análise mostra que essa contradição não é fruto do acaso, mas de um modelo econômico que transforma terra, água e sementes em mercadorias. O agronegócio exportador, sustentado por monocultivos, concentração fundiária e uso intensivo de agrotóxicos, converte o campo em espaço de extração e contaminação.
Os números são alarmantes: milhões de pessoas adoecem anualmente por exposição a pesticidas, muitos deles proibidos na União Europeia — ironicamente, a mesma região que os exporta para o Sul Global. É uma forma moderna de colonialismo, exercida não mais por fuzis, mas por moléculas tóxicas.

A financeirização da agricultura, observa o Atlas, intensifica o problema. Fundos de investimento controlam extensões de terra equivalentes a países inteiros, e a lógica do lucro substitui a do cuidado. Enquanto as commodities se multiplicam nas bolsas internacionais, as mesas das populações rurais e urbanas se esvaziam.
O acesso à comida saudável torna-se privilégio, e o direito à alimentação, uma promessa distante.

A crise climática acentua esse quadro. Secas prolongadas, enchentes e incêndios florestais reduzem safras e empurram comunidades inteiras para a insegurança alimentar. Em muitos países, o custo diário de uma dieta equilibrada pode consumir quase um terço do salário mínimo.
A fome, lembra o Atlas, não é apenas um indicador social — é um espelho das injustiças ambientais e políticas que estruturam a economia global.

Transições alimentares justas: as sementes de um novo pacto

Mas o Atlas não se encerra na denúncia. Ele abre espaço para o que chama de transições alimentares justas — experiências concretas que apontam para outro modo de produzir e de se relacionar com a terra.
Essas transições, longe de serem apenas tecnológicas, são culturais e éticas. Exigem a valorização dos saberes ancestrais, a redistribuição do poder e o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos.

A agroecologia aparece como eixo central dessa proposta. Mais que uma técnica de cultivo, ela é um modo de vida, que reúne ciência e tradição, autonomia e solidariedade.
Movimentos sociais como a Via Campesina, redes de mulheres agricultoras, associações indígenas e cooperativas urbanas compõem essa teia de resistência que, lentamente, redesenha a paisagem alimentar do continente.

O Atlas destaca exemplos inspiradores: cinturões verdes em áreas metropolitanas, bancos comunitários de sementes crioulas, biofábricas autogestionadas, cozinhas solidárias e programas de compra pública da agricultura familiar.
Em Cuba, a metodologia Camponês a Camponês tornou-se referência mundial em educação agroecológica. No Brasil, políticas públicas como a Pnapo e os Conselhos Municipais de Segurança Alimentar mostram que a transição pode ser também institucional.

Nessas experiências, as mulheres rurais ocupam papel de liderança. São elas que preservam sementes, saberes e modos de cultivo. São elas que articulam redes de cuidado e produção, afirmando que alimentar é também um ato político e afetivo.
A partir dessas práticas, o Atlas propõe o conceito de democracia alimentar — um sistema em que o direito à comida, à terra e à água se entrelaça ao direito à participação e à autodeterminação dos povos.

Um convite à escuta e ao cuidado

O Atlas da Justiça Climática na América Latina e no Caribe não é apenas uma publicação: é uma travessia. Ele convida o leitor a escutar as vozes que costumam ficar à margem, a reconhecer que a justiça ambiental não pode ser dissociada da justiça social.
Cada mapa, cada gráfico, cada depoimento compõe uma cartografia viva das resistências e esperanças que atravessam o continente.

Em tempos de desinformação e apatia, o Atlas cumpre uma função dupla — científica e pedagógica. Ele mobiliza dados, mas também afetos; fala à razão e à sensibilidade. Seu mérito não está apenas em registrar o que acontece, mas em revelar o que ainda pode acontecer.

Ao final, a obra deixa uma sensação rara: a de que o futuro, embora ameaçado, ainda pode ser cultivado.
Porque onde há terra, há memória. Onde há semente, há possibilidade.
E onde há justiça, há esperança.


Referência bibliográfica
Atlas da Justiça Climática na América Latina e no Caribe
Enara Echart Muñoz, Lara Sartorio, Rubens de S. Duarte, Breno Bringel, Carlos R. S. Milani, Caio Samuel Milagres (orgs.)
Buenos Aires: CLACSO; Madrid: GeoEcos; Rio de Janeiro: OIMC-UERJ, 2025.
ISBN 978-631-308-106-6.

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O Atlas também está disponível na Librería Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales