PNAD Contínua 2024: o retrato delicado da fome e da segurança alimentar no Brasil contemporâneo

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Blog do IFZ | 10/10/2025

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Entre as estatísticas que descrevem a vida brasileira, poucas tocam tão fundo quanto as que falam do alimento — esse elo silencioso entre o corpo e a dignidade. A nova edição da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) – Segurança Alimentar 2024, conduzida pelo IBGE em parceria com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, volta o olhar para dentro dos lares e pergunta, com a sobriedade dos números: há comida suficiente na mesa?

Um panorama de avanços cautelosos

O levantamento estimou 78,3 milhões de domicílios particulares no país em 2024. Desses, 75,8% se encontravam em situação de segurança alimentar (SA), enquanto 24,2% viviam algum grau de insegurança alimentar (IA) — leve, moderada ou grave. A melhora em relação ao ano anterior é perceptível: em 2023, apenas 72,4% dos lares estavam em segurança alimentar. Em um intervalo de doze meses, a proporção de domicílios com acesso pleno e regular à alimentação adequada cresceu 3,4 pontos percentuais.

Essa tendência positiva se desdobra em todos os níveis de vulnerabilidade. A insegurança leve caiu de 18,2% para 16,4%; a moderada, de 5,3% para 4,5%; e a grave, de 4,1% para 3,2%. Ainda assim, o país contabiliza cerca de 2,5 milhões de domicílios — onde vivem crianças, jovens, adultos e idosos — que enfrentaram a privação de alimentos em algum momento dos três meses que antecederam a coleta de dados. É nesse espaço silencioso que a estatística se torna uma história de vida interrompida pela falta.

As geografias desiguais da fome

A PNAD Contínua 2024 confirma o que sucessivas pesquisas já indicavam: a fome e a insegurança alimentar não se distribuem de forma uniforme pelo território brasileiro. A Região Norte aparece como a mais vulnerável, com apenas 62,4% dos domicílios em segurança alimentar. No Nordeste, o índice é ligeiramente superior (65,2%), mas ainda distante da média nacional. Nas regiões Centro-Oeste (79,5%), Sudeste (80,3%) e Sul (86,4%), o quadro é mais favorável, refletindo desigualdades persistentes de renda, infraestrutura e oportunidades.

As diferenças tornam-se ainda mais dramáticas quando se observa a insegurança grave, aquela em que há ruptura efetiva do padrão alimentar e episódios de fome. No Norte, 6,3% dos domicílios convivem com esse nível de privação — quase quatro vezes mais que no Sul, onde o índice é 1,7%. O Nordeste também apresenta um patamar elevado (4,8%), enquanto o Sudeste (2,3%) e o Centro-Oeste (2,8%) registram valores menores.

Apesar da redução nacional da insegurança alimentar, a persistência das desigualdades regionais continua a marcar o mapa da alimentação no Brasil. O Norte e o Nordeste, historicamente mais afetados por precariedades estruturais, ainda concentram as maiores proporções de lares que convivem com a incerteza sobre o próximo prato.

Campo e cidade: a fronteira invisível da escassez

A PNAD Contínua mostra que, no campo, o alimento é paradoxalmente mais escasso. Enquanto 76,8% dos domicílios urbanos estão em segurança alimentar, o percentual cai para 68,7% nas áreas rurais. A insegurança grave atinge 4,6% dos domicílios rurais, contra 3,0% nos urbanos.

Essas diferenças espelham o peso das desigualdades históricas do país. Em regiões rurais, onde o trabalho informal e a baixa renda são mais frequentes, o acesso a alimentos variados e nutritivos depende não apenas da produção própria, mas também de mercados locais, infraestrutura e políticas públicas consistentes. A fome rural, mais dispersa e menos visível, muitas vezes se disfarça em dietas pobres e em insegurança crônica, sem necessariamente se traduzir em desnutrição aparente.

A trajetória histórica da segurança alimentar

Desde 2004, o Brasil tem monitorado a segurança alimentar de forma sistemática, primeiro pela PNAD tradicional, depois pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), e agora pela PNAD Contínua. O percurso é marcado por avanços e retrocessos.

Entre 2004 e 2013, o país viveu um período de expansão significativa da segurança alimentar, alcançando 77,4% dos lares naquele ano. Em 2017-2018, porém, a POF registrou um retrocesso: apenas 63,3% das famílias conseguiam manter alimentação suficiente e adequada. Essa queda refletia o impacto de crises econômicas e cortes em programas sociais.

A partir de 2023, observa-se uma recuperação gradual, confirmada pela nova edição de 2024. Em comparação à POF 2017-2018, o avanço é expressivo: a insegurança leve caiu 7,6 pontos percentuais, a moderada 3,6 pontos, e a grave 1,4 ponto percentual. Ainda assim, o patamar de 2013 não foi plenamente recuperado.

Desigualdades dentro de casa: gênero, raça e escolaridade

O retrato da segurança alimentar também espelha a estrutura social brasileira. Segundo o IBGE, as mulheres são responsáveis por 51,8% dos domicílios, mas sua presença se associa a condições mais vulneráveis. Entre os lares em insegurança alimentar, 59,9% têm uma mulher como responsável — proporção 19,8 pontos percentuais maior do que entre os chefiados por homens. A diferença é mais acentuada na insegurança moderada, em que 61,9% dos domicílios são liderados por mulheres.

A desigualdade racial é igualmente nítida. Entre os domicílios em segurança alimentar, 45,7% têm responsáveis brancos, 42,0% pardos e 11,1% pretos. Já entre os que vivem insegurança alimentar, a composição se inverte: 54,7% são chefiados por pessoas pardas, 15,7% por pessoas pretas e 28,5% por brancas. Nos casos mais severos — de insegurança grave —, 56,9% dos domicílios têm responsáveis pardos e apenas 24,4% brancos.

Esses números não são apenas estatísticas: refletem o peso acumulado de desigualdades estruturais que atravessam o país há séculos. Eles mostram como a cor da pele e o gênero continuam a determinar o acesso mais elementar à vida digna — o direito de comer.

A escolaridade, por sua vez, é um divisor crucial. Entre os domicílios em segurança alimentar, 35,1% têm responsáveis com até o ensino fundamental completo, enquanto 64,9% possuem responsáveis com ensino médio incompleto ou mais. Já nos domicílios em insegurança alimentar, o quadro se inverte: 51,5% têm chefes com baixa escolaridade. Nos casos de insegurança grave, essa proporção sobe para 65,7%. O dado confirma que a educação continua sendo uma das barreiras mais sólidas contra a fome.

Trabalho, renda e o preço da estabilidade

A forma de inserção no mercado de trabalho tem relação direta com o acesso ao alimento. Entre os domicílios em segurança alimentar, 23,4% têm como responsável um empregado do setor privado com carteira assinada — a categoria mais estável. Já entre os que vivem insegurança alimentar, predominam trabalhadores por conta própria (17,0%), empregados sem carteira assinada (8,6%) e trabalhadores domésticos (6,5%).

Nos lares que enfrentam insegurança grave, 15,5% dos responsáveis são trabalhadores por conta própria, 8,3% têm carteira assinada, e 6,7% são empregados domésticos. As cifras mostram que o trabalho, por si só, não é garantia de alimentação adequada: o que protege é a formalização e a estabilidade da renda.

Quando se considera o rendimento domiciliar per capita, a relação é ainda mais clara. Mais de 70% dos casos de insegurança moderada ou grave concentram-se nas faixas de renda de até um salário mínimo. Entre os lares com rendimento superior a dois salários mínimos, apenas 3,9% enfrentam esses níveis de insegurança. A pobreza, aqui, não é apenas falta de recursos, mas a impossibilidade de planejar o futuro e manter o cotidiano sem sobressaltos.

Nas áreas rurais, a situação é ainda mais acentuada. Três em cada cinco domicílios rurais (61,7%) pertencem às faixas de menor rendimento, e 82% dos casos de insegurança moderada ou grave estão concentrados nessas classes. São números que reafirmam o quanto o espaço rural brasileiro continua vulnerável às oscilações econômicas e climáticas, apesar de sua centralidade na produção de alimentos.

A presença das gerações: infância e velhice sob diferentes riscos

A pesquisa de 2024 revela também a distribuição da insegurança alimentar entre as faixas etárias. Crianças e adolescentes são os grupos mais vulneráveis: 3,3% das pessoas de 0 a 4 anos e 3,8% das de 5 a 17 anos vivem em domicílios com insegurança grave. Entre os idosos, a taxa cai para 2,3%. A presença de crianças pequenas em casa está associada a maiores prevalências de insegurança alimentar, enquanto a presença de idosos tende a elevar a proporção de domicílios em segurança.

Essa diferença se repete historicamente. Em 2024, 68,9% dos domicílios com pelo menos uma criança menor de 5 anos estavam em segurança alimentar — o maior índice desde 2004, mas ainda inferior ao observado em famílias com pelo menos um morador com 60 anos ou mais (78,2%). O dado reforça a importância da renda estável e das aposentadorias na proteção alimentar das famílias mais velhas, ao passo que famílias jovens, com filhos pequenos, continuam mais expostas à vulnerabilidade.

O Brasil que melhora, mas ainda convive com a fome

A análise das duas últimas décadas mostra um país que oscilou entre conquistas e perdas. Em 2004, 65,1% dos lares brasileiros viviam em segurança alimentar. Nove anos depois, esse índice alcançava 77,4%, resultado de políticas públicas robustas e expansão da renda. Em 2017-2018, o cenário voltou a se deteriorar. Hoje, com 75,8% dos lares em segurança alimentar, o Brasil parece retomar o caminho da recuperação, mas ainda não superou totalmente os efeitos da crise anterior.

Mais do que números, a PNAD Contínua 2024 oferece um espelho do país real — aquele que se move entre a esperança e a carência. Em cada porcentagem, há um retrato de luta cotidiana: a mãe que estica a comida para durar a semana; o agricultor que convive com safras incertas; o trabalhador que calcula o preço do arroz antes de chegar ao caixa.

A fome, no Brasil de 2024, não é um fenômeno homogêneo, tampouco invisível. Ela persiste em bolsões regionais e sociais, atravessa fronteiras de gênero e cor, e se instala onde o Estado falha em garantir o mínimo. Mas a pesquisa mostra também a potência das políticas de proteção social: em apenas um ano, 3,4 pontos percentuais de brasileiros deixaram a insegurança alimentar — um sinal de que políticas públicas consistentes, combinadas a crescimento econômico e programas de transferência de renda, podem transformar o cenário de forma concreta.

O alimento como espelho social

A PNAD Contínua 2024 não fala apenas de comida; fala de estrutura social. O alimento é a fronteira mais sensível da desigualdade, o ponto onde o trabalho, a educação e o território se encontram. Os dados mostram que a fome não é um problema residual, mas um termômetro das desigualdades que persistem mesmo em tempos de recuperação.

Ao longo de vinte anos de medições, o Brasil aprendeu que a segurança alimentar não é apenas o resultado da renda, mas da estabilidade, do acesso e da justiça social. A cada domicílio que volta a ter alimento suficiente, há um sinal de que políticas públicas eficazes ainda são capazes de reverter trajetórias de vulnerabilidade.

Mas há também o alerta: a persistência de 2,5 milhões de lares em fome aberta e de quase um quarto dos domicílios vivendo algum grau de insegurança é um lembrete de que o país ainda não alcançou o direito universal à alimentação plena e adequada, inscrito na Constituição desde 2010.

Um balanço de esperança e responsabilidade

A PNAD Contínua 2024 oferece ao Brasil um diagnóstico detalhado e, ao mesmo tempo, um convite à reflexão. Mostra que a melhora é real, mas que a desigualdade permanece estrutural. Cada dado é uma forma de dizer que o progresso é possível, mas que exige continuidade, investimento e vigilância.

Entre os números e as vidas que eles representam, há uma mensagem de sobriedade: a fome não é um destino, é uma construção social que pode ser desfeita. A pesquisa do IBGE, ao revelar esse retrato minucioso da segurança alimentar, reafirma o papel da informação pública como instrumento de cidadania.

Em 2024, o país se vê diante de um cenário menos sombrio, mas ainda inconcluso. Há mais comida nas mesas, mas ainda há mesas vazias. O desafio, agora, é transformar a tendência recente em permanência — fazer da segurança alimentar não uma exceção em tempos de bonança, mas um direito efetivamente garantido, todos os dias, em todos os lares.

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Fontes:
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Segurança Alimentar 2024.
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.