Blog do IFZ | 20/20/2025
O Marco de Referência de Sistemas Alimentares e Clima para as Políticas Públicas, publicado pela Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (MDS), propõe uma visão integrada entre segurança alimentar, justiça climática e desenvolvimento sustentável. O documento parte de um diagnóstico contundente: a crise climática é também uma crise alimentar.
O Brasil, que acaba de sair novamente do Mapa da Fome da ONU, enfrenta agora o desafio de consolidar essa conquista em meio a um contexto de intensificação dos eventos climáticos extremos. O Marco propõe caminhos para tornar a alimentação saudável e sustentável um eixo das políticas públicas de Estado, orientando o país na construção de sistemas alimentares resilientes ao clima e promotores da equidade.
A Crise Climática e Seus Impactos na Alimentação
O relatório evidencia que as atividades humanas são as principais causas do aquecimento global. Entre 1990 e 2019, as emissões globais de gases de efeito estufa aumentaram 54%, impulsionadas pelo uso de combustíveis fósseis e pela mudança no uso da terra. Em 2024, o planeta registrou temperaturas recordes por onze meses consecutivos, ultrapassando o limite de 1,5 °C definido pelo Acordo de Paris.
Essa elevação da temperatura afeta diretamente os sistemas alimentares, comprometendo a produtividade agrícola, a biodiversidade e o acesso a alimentos frescos. A combinação entre mudanças climáticas e dietas baseadas em ultraprocessados agrava a chamada “sindemia global” — a convergência entre desnutrição, obesidade e degradação ambiental.
As populações rurais e urbanas vulneráveis estão entre as mais afetadas. O documento estima que, em cenários extremos, as perdas agrícolas podem reduzir o PIB brasileiro em até 1,3% até 2050, enquanto a inflação dos alimentos tende a aumentar.
Custos Ocultos e Concentração de Poder
Os sistemas alimentares atuais geram custos ocultos estimados em US$ 11,6 trilhões anuais — cerca de 10% do PIB mundial. No Brasil, esses custos somam cerca de US$ 500 bilhões por ano, dos quais US$ 80 bilhões poderiam ser evitados com políticas sustentáveis. Tais custos refletem danos ambientais, perda de biodiversidade, doenças associadas à má alimentação e desigualdade social.
Outro ponto crítico é a concentração de mercado, que amplia o poder de grandes corporações e limita a autonomia de produtores e consumidores. Isso reduz a diversidade alimentar e aumenta a vulnerabilidade do sistema frente à crise climática. O Marco alerta para a necessidade de governança democrática e prevenção de conflitos de interesse, garantindo transparência e participação social em todas as etapas das políticas públicas.
Um Federalismo Climático e Alimentar
A transição para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis exige coordenação entre União, estados e municípios, no que o documento chama de “federalismo climático”. A ideia é que cada esfera de governo compartilhe responsabilidades, planejando ações integradas em adaptação e mitigação climática, com base na experiência de sistemas como o SUS e o SUAS.
O Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) é apontado como estrutura capaz de articular essa integração, conectando políticas agrícolas, sociais, ambientais e econômicas sob uma mesma lógica de direito humano à alimentação adequada.
Governança Democrática e Participação Social
A governança proposta no Marco de Referência se baseia em três pilares: coordenação intersetorial, transparência e participação popular. O texto enfatiza que a prevenção de conflitos de interesse é condição essencial para que os interesses públicos prevaleçam sobre pressões comerciais.
A participação social é descrita como um elemento estruturante. Povos indígenas, quilombolas, agricultores familiares, comunidades periféricas e urbanas devem ter voz ativa na formulação, execução e monitoramento das políticas alimentares e climáticas. Esse princípio reflete a tradição brasileira de diálogo social em segurança alimentar, consolidada por instâncias como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
Abastecimento Alimentar como Política de Estado
Um dos capítulos centrais redefine o abastecimento alimentar como uma política de Estado e estratégia de adaptação climática. A proposta é articular produção, armazenagem, transporte e comercialização de alimentos com critérios de baixo impacto climático e valorização da sociobiodiversidade.
Entre as medidas sugeridas estão:
- investimentos em infraestrutura logística e armazenamento público;
- apoio a cooperativas e circuitos curtos de comercialização;
- fortalecimento da agricultura familiar;
- criação de um Observatório de Preços de Alimentos para antecipar oscilações de mercado;
- mecanismos de governança para proteger o abastecimento interno diante de crises e flutuações do comércio internacional.
Financiamento e Regulação Econômica
O documento propõe reorientar o financiamento público e privado dos sistemas alimentares. Subsídios e incentivos fiscais devem ser avaliados à luz dos “custos ocultos” e da pegada de carbono das atividades produtivas. Também recomenda a criação de mecanismos de taxação seletiva sobre produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente, com a arrecadação destinada a políticas de transição sustentável.
Além disso, o texto defende o reforço das capacidades institucionais para integrar a agenda alimentar às metas de adaptação e mitigação climática — desde o nível local até a cooperação internacional.
Educação, Consumo e Redução do Desperdício
O Marco reconhece o papel das escolas e campanhas públicas como agentes estratégicos na mudança cultural necessária. Sugere incluir educação alimentar e nutricional nos currículos e promover hortas escolares como espaços de aprendizagem ambiental e social.
Também destaca o desafio das perdas e desperdícios de alimentos, que agravam emissões e desigualdades. A II Estratégia Nacional de Redução de Perdas e Desperdício é citada como referência, com foco em tecnologia social, redistribuição de excedentes e fortalecimento dos bancos de alimentos no Brasil.
O Papel Internacional do Brasil
Por fim, o documento propõe alinhar as políticas alimentares brasileiras aos compromissos globais de clima, biodiversidade e desenvolvimento sustentável. A experiência do Brasil em segurança alimentar — consolidada no Fome Zero, no PAA e no PNAE — deve orientar as posições do país em fóruns multilaterais.
O texto recomenda adotar os princípios da soberania alimentar e do direito humano à alimentação adequada como base das tratativas internacionais, promovendo a cooperação Sul-Sul e o intercâmbio de tecnologias sociais.
Conclusão
O Marco de Referência de Sistemas Alimentares e Clima representa um avanço estratégico na integração entre políticas de alimentação, agricultura, meio ambiente e justiça social. O documento afirma que a alimentação deve ser vista como parte da solução da crise climática — e não apenas como vítima de seus impactos.
Transformar essa visão em políticas de Estado requer governança democrática, financiamento sustentável e participação social efetiva. Assim, o Brasil pode consolidar seu papel como líder global em segurança alimentar e ação climática, com base na justiça social e na solidariedade entre povos e territórios.
Mensagens-chave
- A crise climática é também uma crise alimentar, com impactos diretos na produção e no acesso a alimentos.
- Os custos ocultos dos sistemas alimentares chegam a 10% do PIB mundial; no Brasil, somam US$ 500 bilhões anuais.
- O federalismo climático e o Sisan são essenciais para integrar ações de mitigação e adaptação.
- Governança democrática e participação social são pilares da transformação alimentar.
- O abastecimento alimentar deve ser tratado como política de Estado e estratégia climática.
- Reorientar o financiamento e aplicar taxação seletiva sobre produtos nocivos pode gerar recursos para a transição sustentável.
- Educação e combate ao desperdício são instrumentos-chave para mudar padrões de consumo.
- O Brasil tem potencial para liderar a integração entre segurança alimentar e justiça climática no cenário internacional.
Baixe aqui o Marco de Referência de Sistemas Alimentares e Clima para as Políticas Públicas
