A Soja e o Futuro da Agricultura Brasileira

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Como o grão que tornou o Brasil potência mundial pode agora liderar sua transição para uma agricultura regenerativa

Blog do IFZ | 23/10/2025

Durante meio século, a soja moldou a paisagem do Brasil. Expansões agrícolas, novas fronteiras, cidades inteiras nascidas ao redor do grão — poucos produtos sintetizam tão bem o percurso do país rumo à liderança mundial da produção de alimentos. Mas o que foi sinônimo de eficiência e prosperidade começa agora a revelar um esgotamento.

O estudo do Instituto Escolhas, Como a soja pode liderar a transição da agricultura brasileira (2025), mostra com rigor e sensibilidade que o modelo que sustentou o sucesso do setor não garante mais seu futuro. A boa notícia é que o próprio grão, origem de tantos desafios, pode também ser o caminho da transformação.

Um sistema no limite

Entre 1993 e 2023, a área plantada com soja aumentou 317%, enquanto o uso potencial de agrotóxicos cresceu mais de 2.000%. O dado mais revelador é que os herbicidas, sozinhos, responderam por mais da metade de todo o volume de agrotóxicos comercializados no país.

O avanço do plantio direto (PD), técnica que evita o revolvimento do solo e reduz a erosão, coincidiu com esse aumento. O que deveria ser um ganho ambiental converteu-se, em parte, em nova dependência: a prática se disseminou sem outras ações complementares de conservação e regeneração do solo, tornando-se dependente de herbicidas sintéticos para controlar plantas daninhas.

O resultado foi uma troca de impactos. Abandonou-se o arado, mas intensificou-se o uso de químicos. O solo deixou de ser revolvido, mas passou a ser intoxicado. E a produtividade, que deveria subir, estagnou. Em 1993, um quilo de agrotóxico produzia 23 sacas de soja; trinta anos depois, o mesmo quilo rende apenas 7 sacas.

Essa equação traduz o ponto de saturação de um modelo que se torna cada vez mais caro, menos eficiente e ambientalmente vulnerável.

A adaptação que o Brasil esqueceu

O sucesso histórico da soja brasileira nasceu da capacidade de adaptação. Desde os anos 1970, políticas públicas de crédito, pesquisa e assistência técnica ajudaram a transformar uma cultura temperada em uma variedade tropical, adequada ao cerrado. O país inventou, ali, uma das experiências mais notáveis da agricultura moderna.

Mas essa vocação adaptativa se perdeu. O plantio direto, que poderia ser o núcleo de um Sistema de Plantio Direto (SPD) — integrado, rotativo, diverso e regenerativo — foi aplicado de forma isolada. Sem rotação de culturas, sem cobertura viva, sem redução consistente do uso de químicos. O que se multiplicou foi a monocultura e o herbicida.

Nos últimos anos, começa a surgir um movimento discreto de substituição de agrotóxicos por bioinsumos, mas ainda limitado. Faltam herbicidas biológicos disponíveis no mercado, e a adoção de bioinsumos em geral está muito distante da escala dos produtos sintéticos.

Retratos do campo em transição

Para compreender o que está mudando — e o que ainda resiste — o Instituto Escolhas ouviu 34 produtores de soja em Mato Grosso, Goiás e Paraná, incluindo agricultores convencionais, orgânicos e regenerativos.

Os resultados mostram um campo dividido entre práticas consolidadas e barreiras persistentes.
Quase todos fazem correção de solo (97%) e mantêm cobertura morta (91%), mas só 31% dos convencionais praticam rotação de culturas. Apenas 15% realizam adubação verde ou cobertura viva. O sistema convencional permanece preso à lógica do curto prazo.

Nos sistemas orgânicos, a ausência de herbicidas é compensada com capina manual, o que eleva custos e limita expansão. Os produtores regenerativos, por sua vez, combinam maior diversidade de espécies, cobertura permanente e uso de biofertilizantes, mostrando que é possível reduzir dependência química sem sacrificar produtividade.

O estudo também mostra que a maioria dos produtores associa “manejo integrado de pragas e doenças” apenas ao monitoramento da lavoura, sem empregar estratégias de controle preventivo. Muitos relatam, na verdade, aumento no uso de herbicidas, reforçando que o conhecimento técnico e a disponibilidade de alternativas biológicas ainda são insuficientes.

No campo da fertilização, a dependência de insumos químicos é quase total. Todos usam inoculantes como Bradyrhizobium e Azospirillum, mas o uso de compostos, biochar e pós de rocha continua raro — não por falta de interesse, mas por falta de infraestrutura, pesquisa e logística.

O retrato é o de uma transição em curso, mas travada. Os agricultores estão conscientes dos limites do modelo, porém sem condições técnicas e econômicas para mudar em larga escala.

A encruzilhada das políticas públicas

Os produtores não estão sozinhos nessa limitação. O estudo aponta que as políticas públicas continuam distantes da urgência do problema.

O Plano ABC+, principal estratégia de mitigação climática na agropecuária, ainda trata o plantio direto e o sistema de plantio direto como se fossem equivalentes. A meta de expandir o PD em 8 milhões de hectares até 2030 ignora que essa prática já domina a produção e não garante redução no uso de agrotóxicos.

Outro erro é restringir a meta de bioinsumos apenas à nutrição vegetal, deixando de fora a defesa contra pragas e doenças — justamente o ponto mais crítico do modelo.

O Plano Nacional de Fertilizantes também reforça a dependência química: de R$ 24,4 bilhões previstos, 92% são destinados a fertilizantes sintéticos, enquanto as cadeias emergentes de fertilizantes orgânicos e organominerais recebem apenas 0,11% do total. O país, alerta o estudo, está investindo em uma indústria do passado, enquanto o futuro da agricultura exige novos materiais, novas práticas e novos conhecimentos.

Cinco passos para um novo começo

O Instituto Escolhas propõe cinco compromissos concretos para que a transição aconteça de fato:

  1. Tornar o Sistema de Plantio Direto (SPD) — e não o simples PD — a meta principal do Plano ABC+.
  2. Incluir defesa vegetal com bioinsumos entre as metas do ABC+.
  3. Ampliar investimentos no setor de fertilizantes orgânicos e organominerais.
  4. Fortalecer pesquisa e produção de biodefensivos, base da agricultura regenerativa.
  5. Expandir a capacitação técnica e a assistência rural, garantindo que produtores tenham acesso ao conhecimento e às tecnologias de transição.

Esses compromissos apontam para uma mudança estrutural, capaz de unir produtividade, rentabilidade e conservação. Trata-se de recuperar o espírito original da agricultura tropical brasileira: adaptar-se para prosperar.

O grão que pode reinventar o país

A soja ocupa hoje 46% da área cultivada do Brasil. É, portanto, mais que uma commodity — é um espelho do modelo agrícola nacional. E é também o lugar onde esse modelo pode começar a mudar.

O relatório do Instituto Escolhas sugere que o futuro da agricultura brasileira depende menos de novas fronteiras e mais de novas práticas. Regenerar o solo é regenerar o próprio negócio.

Se o país conseguir alinhar conhecimento científico, políticas públicas e vontade produtiva, a soja pode novamente fazer história — não como símbolo de exaustão, mas de transição.

O grão que transformou o Brasil em potência pode agora transformá-lo em referência mundial de agricultura sustentável. O que está em jogo não é apenas o futuro da soja, mas o futuro da terra que a sustenta.

Baixe aqui a íntegra do estudo “Como a Soja Pode Liderar a Transição da Agricultura Brasileira

Baixe aqui o Sumário Executivo do estudo “Como a Soja Pode Liderar a Transição da Agricultura Brasileira

Também disponível no site do Instituto Escolhas