José Graziano da Silva | 07/11/2025
Poucas histórias do século XXI reúnem tanta esperança e frustração quanto a luta da África contra a fome. Esperança, porque o continente já demonstrou sua capacidade de reduzir a desnutrição e promover um crescimento agrícola inclusivo, inspirando-se em modelos nascidos no Sul Global. Frustração, porque, vinte anos após a Declaração de Maputo, cerca de 256 milhões de africanos ainda vivem em situação de insegurança alimentar. O que deu errado? E, mais importante, o que ainda pode dar certo?
Essa foi uma das principais mensagens que destaquei na palestra de abertura da última edição do Fórum Brasil-África, realizado no início desta semana em São Paulo, com o tema “Parcerias Globais para a Agricultura Sustentável e a Segurança Alimentar”. O evento reuniu líderes, formuladores de políticas e especialistas das duas regiões para discutir como uma cooperação renovada pode acelerar a transformação dos sistemas alimentares na África e além.
Em 2003, quando o Brasil lançou o programa Fome Zero, líderes africanos se reuniram em Maputo para adotar o Programa Abrangente de Desenvolvimento Agrícola da África (CAADP) — um pacto para investir 10% dos orçamentos nacionais em agricultura e alcançar um crescimento agrícola anual de 6%. O continente parecia pronto para um renascimento rural. E, de fato, em países como Gana, Benin, Malaui, Níger e Nigéria, a combinação de vontade política, programas sociais e apoio internacional levou à conquista do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio 1C: reduzir pela metade a fome até 2015.
No entanto, o progresso foi desigual. Secas, conflitos, mudanças climáticas e a dependência das importações de alimentos corroeram os avanços obtidos. Hoje, enquanto o mundo fala em “alimentação saudável”, milhões de famílias africanas ainda lutam simplesmente para comer. Nesse contexto, a África volta a olhar para a cooperação Sul-Sul, revisitando a experiência brasileira e adaptando-a às novas realidades.
Quando a FAO, o Instituto Lula e a Comissão da União Africana uniram forças em 2012 para explorar a ideia de uma “Fome Zero para a África”, o diálogo se baseou em uma convicção simples: a fome não é destino — é uma escolha política. Inspirados pelo sucesso do Brasil — que tirou 40 milhões de pessoas da pobreza e consagrou o direito à alimentação como política de Estado —, os líderes africanos decidiram adaptar as ferramentas brasileiras aos seus próprios contextos. Dessa iniciativa nasceram programas como o Compra de Africanos para a África (PAA África), as Frentes Parlamentares contra a Fome e o Dia Africano da Alimentação Escolar.
O PAA África mostrou que comprar de pequenos agricultores para fornecer merenda escolar cria um ciclo virtuoso entre produção, nutrição e dignidade. Com o apoio da FAO, do PMA e do governo brasileiro, o programa ajudou a formular políticas na Etiópia, no Malaui, em Moçambique, no Níger e no Senegal, conectando agricultores familiares aos mercados locais e garantindo refeições nutritivas para crianças em idade escolar. Da mesma forma, programas de proteção social como a Bourse de Sécurité Familiale, no Senegal, e o LEAP, em Gana, inspiraram-se no Bolsa Família do Brasil, provando que as transferências de renda não geram dependência, mas sim autonomia e empoderamento.
A cooperação também se estendeu à gestão da água. O projeto “Um Milhão de Cisternas para o Sahel”, inspirado na experiência brasileira no semiárido, levou tecnologias simples e de baixo custo a milhares de famílias rurais no Níger, em Burkina Faso e no Senegal. Cada cisterna construída significava menos fome e mais tempo para que as mulheres pudessem cultivar, estudar ou cuidar de suas famílias. Da água à alimentação, o Brasil mostrou que políticas sociais podem florescer em solo africano.
Essa conexão crescente entre a África e a América do Sul teve papel fundamental na Iniciativa África do Instituto Lula, que entre 2011 e 2016 promoveu missões técnicas, intercâmbios de políticas públicas e capacitação de lideranças em mais de 30 países. O princípio orientador era claro: não exportar modelos, mas compartilhar experiências. Cada país adaptaria as ideias do Fome Zero às suas próprias realidades, construindo seu próprio caminho rumo à segurança alimentar e nutricional.
Essa visão colaborativa produziu resultados concretos. Em 2014, a CEDEAO adotou sua própria Iniciativa Fome Zero, com base em sua política agrícola regional (ECOWAP), alcançando uma redução histórica da fome para menos de 9% da população. No Níger, a iniciativa “3N – Nigerienses Alimentam Nigerienses” incorporou elementos do Fome Zero, combinando agricultura, nutrição, proteção social e resiliência climática em uma única estratégia nacional. Assim como no Brasil, o programa criou uma coordenação interministerial, descentralização e participação comunitária, focando em resultados concretos.
Essas experiências mostram que a luta contra a fome só é eficaz quando as políticas são integradas, e não fragmentadas. A produção precisa estar ligada à geração de renda, à alimentação escolar, à nutrição e ao acesso à água. Essa abordagem integrada — rumo a sistemas agroalimentares sustentáveis e inclusivos — é exatamente o que o novo CAADP (2026–2035) pretende consolidar.
A Declaração de Kampala, aprovada pelos chefes de Estado africanos em 2025, marca o início de uma nova era. O CAADP renovado busca transformar a agricultura no motor de sistemas agroalimentares sustentáveis, resilientes e inclusivos, combinando investimento, comércio e proteção social. O objetivo não é apenas produzir mais, mas produzir melhor — com menos emissões, menos desperdício e mais justiça social.
Os compromissos assumidos em Kampala refletem a maturidade de um continente que aprendeu com suas próprias contradições. A meta orçamentária de 10% para a agricultura continua válida, mas agora vem acompanhada de novos instrumentos de financiamento climático, mecanismos de governança interministerial e estruturas de responsabilidade compartilhada. Mulheres e jovens deixam de ser vistos apenas como beneficiários e passam a ser protagonistas. E a nutrição, antes um tema secundário, agora ocupa o centro da política agrícola.
Essa mudança de paradigma também reconhece que a segurança alimentar da África depende da integração regional. A Área de Livre Comércio Continental Africana (AfCFTA) — assinada por 54 países — talvez seja o projeto econômico mais ambicioso desde a independência. Ao reduzir tarifas, harmonizar padrões sanitários e promover cadeias de valor regionais, a AfCFTA pode triplicar o comércio intra-africano de alimentos até 2035. Em um continente onde os fertilizantes custam até quatro vezes mais que na Europa e a logística representa grande parte do preço final dos alimentos, abrir mercados e investir em infraestrutura é tão essencial quanto aumentar a produção.
Mas a integração comercial não é um fim em si mesma. O verdadeiro desafio é fazê-la funcionar para os pequenos agricultores, que produzem a maior parte dos alimentos da África, mas continuam à margem dos mercados formais. Para isso, a Declaração de Kampala e a AfCFTA precisam avançar lado a lado — reduzindo barreiras comerciais, ampliando a concorrência e oferecendo apoio financeiro a cooperativas e microempresas agrícolas.
Os desafios que a África enfrenta hoje — fome, pobreza, clima e conflitos — são complexos e interligados. O continente está aquecendo 1,5 vez mais rápido que a média global, com secas e inundações cada vez mais frequentes. No Sudão, na Somália, na Etiópia e no Sudão do Sul, a guerra e a instabilidade deslocaram milhões de pessoas, desestruturando mercados e dificultando a ajuda humanitária. Mais de 60 milhões de africanos sofrem atualmente de fome aguda — uma regressão que lembra os piores anos da década de 1990.
O que diferencia o presente do passado é o surgimento de soluções lideradas pela própria África. O Fundo Fiduciário Africano de Solidariedade para a Segurança Alimentar, criado em 2013, já financiou projetos em 41 países, apoiando 160 mil famílias só no Níger. As Frentes Parlamentares pelo Direito à Alimentação Adequada, inspiradas nas experiências latino-americanas, estão ajudando a incluir a segurança alimentar nas constituições e orçamentos nacionais. O novo CAADP introduz indicadores de responsabilidade política — um passo essencial para transformar compromissos em resultados.
O Brasil pode continuar sendo um parceiro estratégico nessa caminhada — não apenas como referência técnica, mas como exemplo político de coerência entre discurso e prática. Foi isso que inspirou o continente há vinte anos, e é disso que o mundo precisa para se reconstruir hoje. A fome não é um problema técnico; é uma questão de prioridades. O mundo gasta US$ 2,7 trilhões por ano em armas, mas apenas US$ 315 bilhões seriam suficientes para alimentar todas as pessoas que passam fome — menos de 12% dos gastos militares globais. A desigualdade não é inevitável; é uma escolha.
A África de hoje não é a de 2003. Há mais urbanização, mais educação, mais jovens conectados e mais mulheres à frente de cooperativas e governos locais. Há também uma consciência crescente de que a soberania alimentar é inseparável da soberania política. Ao adotar o novo CAADP e fortalecer a AfCFTA, o continente aposta em um modelo de desenvolvimento que combina produção sustentável, inclusão social e integração econômica.
Talvez o maior legado do Fome Zero na África não sejam os programas replicados, mas a mudança de mentalidade que inspirou. Ele mostrou que é possível pensar grande com políticas simples — e que a fome pode ser vencida quando o Estado confia em seu povo, e o povo confia no Estado. Essa confiança é o ingrediente que nenhuma ajuda externa pode oferecer — e dela depende o futuro.
A Declaração de Kampala e a AfCFTA representam, portanto, mais do que novos acordos: são a expressão de uma renovação política, uma reafirmação da capacidade e do direito da África de moldar seu próprio futuro alimentar. O desafio é enorme, mas o continente já provou que sabe aprender, se adaptar e inovar.
Há vinte anos, o Brasil inspirou a África a sonhar com um mundo sem fome. Talvez agora seja a vez de a África inspirar o mundo, mostrando que cooperação, solidariedade e coragem política continuam sendo as armas mais poderosas contra a fome.
José Graziano da Silva é Professor Emérito da Unicamp e Diretor-Geral do Instituto Fome Zero
