Enquanto houver famintos na Amazônia, a sua preservação não estará garantida
Por José Graziano da Silva e Thiago Lima no Le Monde Diplomatique Brasil | 15/08/2023
A Cúpula da Amazônia termina com resultados modestos e potencialmente relevantes em termos de combate à fome. A Amazônia brasileira, vale dizer, é atualmente a região do país que tem os maiores níveis de insegurança alimentar, superando o Nordeste. A Declaração Presidencial ao final do encontro não produz obrigações vinculantes. Contudo, cria um amplo mandato político que poderá ser mobilizado por atores nacionais e subnacionais, estatais e não-estatais, e, principalmente, pela revitalizada Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).
Se terão sucesso, o tempo dirá. De qualquer modo, para avaliar o que temos em mãos, um pouco de contexto se faz necessário. Primeiro, porque a tarefa de organizar uma profícua cooperação regional entre os oito membros da OTCA é extremamente dura e vai depender muito dos países que ensaiaram uma liderança no processo até agora: Brasil e Colômbia. Segundo, porque o tratamento regional da insegurança alimentar e nutricional, na Amazônia, é ainda insipiente: nem mesmo dispomos de dados atualizados para todos os países. Terceiro, porque a tentativa de impulsionar um regionalismo amazônico ocorre, imediatamente, como uma estratégia para as negociações climáticas globais, isto é, formar uma coalizão de países amazônicos para fazer frente à pressão internacional por preservação da Amazônia. E quarto, mas não menos importante: encontrar atividades econômicas efetivamente sustentáveis para afastar a ideia de uma Amazônia intocável. Nesse ponto o combate à fome pode oferecer um leque de alternativas promissoras.
A política internacional na Amazônia
Comecemos pelo anfitrião. O Brasil apenas recentemente deixou para trás um governo hostil ao regionalismo sul-americano, à preservação da Amazônia e ao bem-estar de seus povos. Foi no governo passado, também, que a fome atingiu seu maior quantitativo já medido: 70 milhões de pessoas, segundo a FAO. Apesar de desejável, parece prematuro afirmar que outro governo do tipo não será eleito no futuro próximo, e os vizinhos sabem disso. Eles, por sua vez, possuem seus problemas. Peru e Equador vivem quadros de instabilidade política. A Bolívia ainda se recupera de um golpe de Estado. A Venezuela, que é criticada pela falta de democracia e pela supressão de direitos humanos, possui laços militares com a Rússia e contesta o capitalismo. A Colômbia abriga em seu território bases militares dos Estados Unidos. Guiana e Suriname possuem economias muito mais frágeis que os vizinhos. No geral, os países não vivem bonança econômica. A França, que possui um enclave no continente – o departamento ultramarino da Guiana Francesa –, está deliberadamente excluída da OCTA.
Sintomaticamente, a sede da OTCA está em Brasília. Isto é resquício de um tempo em que a elite política explicitamente tinha como objetivo colonizar a Amazônia legal. Agora, há um descompasso entre o discurso que valoriza o Tratado da Cooperação Amazônica como o primeiro arranjo ecopolítico regional do tipo e o fato de seu centro administrativo não estar na Amazônia. Na verdade, o histórico da OTCA não permite classificá-la como uma organização forte e atuante e um dos objetivos escritos na Declaração é justamente o seu fortalecimento institucional. Resta ver se os países irão garantir-lhe os recursos humanos e orçamentários condizentes com a ambição da Declaração. Ademais, se o mote “nada de nós sem nós” repetido nos Diálogos que precederam a Cúpula, for levado a sério, dificilmente o comando da organização poderá ser exercido de fora do território amazônico, já que aquelas populações locais reclamam – e com razão – que a formulação de políticas públicas e a produção do conhecimento sejam realizadas no seio da região.
Por fim, teremos que observar se o Brasil, na condição de maior potência da OTCA, assumirá os custos econômicos desproporcionais da liderança (imaginar reciprocidade estrita dos vizinhos é inviabilizar a Organização), com quais vizinhos poderá mais compartilhá-los (Colômbia?) e em que medida estará disposto a renunciar a uma informalidade na qual seu diferencial de poder o coloca em condições vantajosas de negociação com os outros governos, sobretudo bilateralmente. Construir consensos, neste cenário, exigirá bastante engajamento financeiro e humano, principalmente da presidência, mas consensos são fundamentais para uma forte coalizão amazônica
A OTCA e a agenda da Fome
O Tratado da Cooperação Amazônica (TCA) foi assinado em 1978 e entrou em vigor em 1980. Sua principal mola propulsora foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, 1972. Com raízes num processo iniciado em 1968, aquela Conferência (boicotada pela União Soviética) foi o primeiro encontro multilateral de grande expressão a denunciar a crise climática e destacar a necessidade de preservação dos biomas que ainda não haviam sido destruídos pela revolução industrial. Naquela época, a Amazônia, era tida equivocadamente como “o pulmão do mundo”, e foi alçada à condição de pilar crucial para o equilíbrio ecológico do planeta. A partir daí surgiram ventilações sobre a internacionalização do bioma para o bem público global.
O TCA, que nasce com a porta fechada para a adesão da França, é uma resposta a isso. Seu texto prega a cooperação regional para reforçar a soberania nacional dos membros sobre suas respectivas parcelas da Floresta, refuta a internacionalização da Amazônia e defende a promoção do desenvolvimento e da preservação ambiental na região. Poucas ações de grande envergadura se seguiram à assinatura do Tratado até que, em 1995, decide-se pela criação de uma Secretaria Permanente. Já a Organização do TCA (OTCA) é assinada em 1998 e entra em exercício em 2002. Notamos, assim, que os governos de PSDB e PT viram a necessidade de fortalecer o arranjo. Em 2019, sete países assinaram o Pacto de Letícia pela Amazônia, na Colômbia, sem a presença da Venezuela, e, em 2021, os membros do Pacto respaldaram a necessidade de fortalecimento institucional da OTCA.
Nesta trajetória, o principal produto sobre o tema da fome foi o relatório Situación y Perspectivas de la Seguridad Alimentaria en la Amazonia en un Marco de Producción Agropecuaria y de Cooperación Intra-Regional, de 1997, sob a presidência pró-tempore da Venezuela, mas ele não gerou ações concretas relevantes. Em 2009 ocorre uma Cúpula da OTCA como preparação para a COP 15, de Copenhagen, naquele mesmo ano. Esvaziada pela ausência de vários presidentes, a declaração final menciona a Segurança Alimentar, mas também não resulta em atividades substanciais. A Agenda Estratégica de Cooperação Amazônica (AECA) de 2010-2018, documento que guia a ação da OTCA, menciona a segurança alimentar e nutricional dos povos indígenas da Amazônia como um novo tema, e indica a intenção de ações de curto, médio e longo-prazos que promovam conexões entre saúde, segurança alimentar e mudanças climáticas. O documento aborda o desenvolvimento de biocomércio, privilegiando a agregação de valor local dos produtos, e a intenção de realizar pesquisas de vigilância e de composição nutricional de alimentos autóctones. No entanto, parece não haver uma AECA posterior a esta. No Pacto de Letícia e em seu Plano de Ação, não há menção a questões alimentares.
O movimento mais específico para inclusão do combate à fome como um tema prioritário ocorre em 2013, numa Reunião oficial de representantes dos países para análise de conceitos em torno da soberania alimentar, SAN e DHAA, com vistas a inserção do tema na Agenda Estratégica de Cooperação Amazônica, mas o trabalho também não avança. Atualmente, portanto, SAN e DHAA aparecem de forma subsidiária, não estando entre as Áreas de Trabalho singulares da OTCA. Assim, observa-se que o combate à fome endêmica da região não faz parte da agenda prioritária da OTCA.
O tamanho do desafio da Fome na Amazônia
Dados apontam que estar na grande floresta significa estar mais vulnerável à insegurança hídrica, alimentar e nutricional, do que em outras partes da América do Sul. As informações que temos do Brasil apontam que 45% da população da região Norte (onde está a maior parte da Amazônia legal) está no Mapa da Insegurança Alimentar e Nutricional (Mapa InSAN). Este percentual deve ser similar nos vizinhos. Entretanto, há especificidades entre as populações indígenas que podem configurar quadros mais graves, como a imposição de inanição aguda (famine, hambruna) ao povo Ianomâmi.
A similaridade pode ser presumida pelo conhecimento geral que temos sobre a produção da fome no mundo: pessoas negras e indígenas, de zonas rurais, com menor letramento e maior dificuldade de acesso à água potável tendem a ser as mais famintas. Entre elas, as mulheres são as que mais sofrem. No Brasil, a maior proporção dos lares com crianças onde há insegurança alimentar está no Norte.
Somado a esses fatores, temos a pobreza e a miséria, que dificultam a compra de alimentos. A produção de alimentos para subsistência, por sua vez, está histórica e progressivamente ameaçada pelo avanço de dinâmicas sociais próprias do capitalismo. Assim, os territórios de sobrevivência material e imaterial vão se tornando terrenos sobre os quais atividades econômicas legais e ilegais dão sustentação a atores que impõem seu poder sobre as populações locais. A expansão da mineração e da agropecuária via desmatamento, legal ou ilegal, juntas a outras atividades criminais, principalmente tráfico de drogas, extração de madeira e garimpo, estão contaminando as águas, tornando-as impróprias para o consumo, para a agricultura e para a pesca, agravando as possibilidades de alimentação.
Outro aspecto grave é que a qualidade da alimentação vem decaindo em termos nutricionais e culturais. Com relação ao primeiro, as populações rurais e urbanas estão substituindo seus roçados e quintais produtivos por culturas para venda no mercado. Isso tem diminuído a oferta local de alimentos frescos variados e aumentado o consumo de ultraprocessados ou de alimentos importados de outros regiões longínquas do Brasil, como batatas e alface de São Paulo. Ademais, a substituição de cultivos para subsistência ou mercados locais por produtos comerciais tem levado ao surgimento de monoculturas, principalmente o de açaí e outros, como cacau. Estes monocultivos afetam os ciclos dos insetos que são necessários para polinizar a floresta e, assim, reduz-se a biodiversidade.
Tudo isso ocorre num bioma gigantesco e pouco populado. Cerca de 40 milhões de pessoas habitam uma região que, em seu contorno maior, responde por aproximadamente 40% da superfície da América Latina e o Caribe, 85% do território dos Estados Unidos. No Brasil, algo em torno de 25 milhões de pessoas vivem numa faixa que corresponde a praticamente 60% do território nacional. É nestas condições que o “Fator Amazônia”, como mencionaram gestores e pesquisadores nos Diálogos Amazônicos, se impõe. As distâncias e custos de transporte e de energia são relativamente muito maiores do que no restante do país. As dificuldades próprias do terreno, nos vizinhos, devem impor condições semelhantes, mas as dimensões brasileiras levam a desafios singulares para o desenvolvimento de mercados e execução de políticas públicas para produção de alimentos saudáveis e de alimentação adequada.
A fome na Declaração de Belém: presenças e ausências da conexão climática
A Cúpula de Belém ocorreu um dia após os Diálogos Amazônicos. Não deixa de ser um feito do governo brasileiro, aliás, ter reunido os oito membros da OTCA, sendo 5 mandatários, em tão pouco tempo de mandato e após um hiato de 14 anos.
Em que pesem os esforços para promover a participação social, é pouco provável que as 405 atividades que compuseram o evento tenham conseguido afetar significativamente a Declaração que, de praxe, já deveria estar pré-negociada entre os membros. Mesmo assim, os Diálogos geraram importantes contribuições para conhecer melhor as demandas e expectativas dos amazônidas sobre as possibilidades de cooperação regional, e para que os amazônidas se inteirassem sobre a Cúpula e a OTCA (bastante desconhecidos, aliás). Muitos foram os relatos e pesquisas sobre os desafios da segurança alimentar e nutricional na região, com especial destaque para os programas que pagam insuficientes subsídios aos pequenos produtores de alimentos. No conjunto, o Programa Nacional de Alimentação Escolar certamente mereceria prioridade.
Com relação à fome, a Declaração menciona o termo em três dos 28 itens preambulares, destacando em um deles que a “erradicação da fome” (…) “é requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável da região amazônica e que o fortalecimento do multilateralismo nas esferas ambiental, social e econômico-comercial constitui ferramenta importante para esses fins”. Já no trecho de Decisões, composto por 113 parágrafos, três deles formam um capítulo específico denominado “Segurança e soberania alimentar e nutricional” (SSAN). O pequeno capítulo, um pouco confuso, versa sobre coordenar ações em SSAN, tanto para produção de alimentos visando os mercados local e regional, quanto para a exportação. Outros pontos da declaração tratam de agrobiodiversidade e da produção sustentável de alimentos, considerando os sistemas tradicionais, indígenas, ribeirinhos e quilombolas, tanto para gerar renda quanto para melhorar o consumo. A pesquisa, a assistência técnica e a extensão rural são importantes pontos de apoio para isso.
O capítulo também solicita apoio da Secretaria da OTCA para organização de eventos e iniciativas que fortaleçam a troca de experiência e a colaboração nesta agenda, com foco nas particularidades da região, levando o DHAA “especialmente aos povos indígenas, às comunidades tradicionais e às populações empobrecidas dos centros urbanos da região”. Por fim, aponta a intenção de “iniciar um processo de diálogo para o desenvolvimento de uma estratégia amazônica de SSAN, com atenção à produção, disponibilidade, oferta e acesso a alimentos da biodiversidade amazônica, em que seja priorizado o combate à desnutrição infantil crônica”.
No geral, podemos considerar que a inclusão da fome no texto da OTCA é uma inovação bem-vinda. Precisamos enfrentar este flagelo sem rodeios e isso fica claro na Declaração. Outros termos importantes mencionados são Soberania Alimentar, Segurança Alimentar e Nutricional e Direito Humano à Alimentação Adequada. Os atores poderão se ancorar neles para defenderem suas agendas. Ressalte-se, aliás, que muito dependerá do plano de ação, ou da AECA, que se fizerem a partir deste capítulo e de outros trechos da Declaração.
Entretanto, algumas ausências foram sentidas. Duas delas são mais operativas. Uma é a falta de indicação da criação de uma Comissão Executiva, em nível ministerial, para a implementação das ações de segurança alimentar, o que daria um peso específico ao tema. Outra é a ausência de uma proposta de um levantamento sobre a InSAN Pan-Amazônica, pois, sem dados atualizados, não há como saber a real dimensão do problema. É importante notar, porém, que a Declaração deixa a porta aberta para que essas propostas sejam incluídas no detalhamento.
Em termos estratégicos, a principal deficiência da Declaração foi não fixar o princípio de que o combate a fome na região e a promoção da segurança alimentar podem ser um vetor de recuperação e preservação sustentável da região Amazônica. É claro que apenas isso não vai dar conta de conservar toda a Floresta, mas o desenvolvimento deste nexo é importante para que os países amazônicos possam barganhar por acordos internacionais que melhorem a capacidade de execução de políticas públicas, como as compras locais para a alimentação escolar, o PAA, o PPGM-BIO, entre outros que estimulem a conservação e a recuperação da biodiversidade. Mais do que isso, sabemos que a alimentação adequada é fundamental para uma boa saúde, para melhorar a capacidade de aprendizagem das crianças e para aumentar a produtividade dos adultos. Sem questionarmos que o DHAA é um direito categórico e inscrito em nossa Constituição, é oportuno reforçar que desenvolvimento das condições para a fruição da cidadania trará consigo auxílio fundamental para a conservação da Amazônia – e a superação de todas as formas de fome é parte inescapável deste processo.
Lembremos de Josué de Castro que, mesmo exilado em Paris, participou da Conferência de 1972 de Estocolmo com o trabalho “Subdesenvolvimento: Causa Primeira da Poluição”. Nele, criticou a proposta de congelamento do crescimento econômico e do desenvolvimento produtivo das regiões periféricas como solução para o problema do meio ambiente. Castro defendeu o tratamento holístico da questão ecológica, ou seja, sem a separação ontológica entre humanos e natureza. Argumentou que o Meio, na verdade, era composto também por estruturas materiais e mentais, em constante alteração pela inerente interação entre elas. Concluiu, por isso, que a destruição ecológica nos países desenvolvidos e a crescente devastação nos países subdesenvolvidos eram derivados de processos sociais comuns: capitalismo, colonialismo e neocolonialismo. Para se combater a poluição, portanto, era necessário superar o subdesenvolvimento. Ou seja, enquanto houver famintos na Amazônia, a sua preservação não estará garantida. É neste sentido que a promoção do SSAN e do DHAA podem ser tomados como eixos de múltiplas dimensões – produtiva, fundiária, científica, tecnológica, comercial, cultural, entre outras – que, holisticamente, contribuição para o reequilíbrio ecológico do planeta.
Ironicamente, em setembro próximo fará 50 anos da morte de Josué de Castro no exílio, impedido pela ditadura que vigia no Brasil de voltar à sua pátria. E a Amazônia continua a padecer do mesmo mal do subdesenvolvimento, ainda que procurem dar outros nomes ao problema.
José Graziano da Silva é Diretor-Geral do Instituto Fome Zero e Thiago Lima é Professor de Relações Internacionais da UFPB e Coordenador de Alimentação e Relações Internacionais do IFZ.
Publicado no Le Monde Diplomatique Brasil
https://diplomatique.org.br/a-cupula-da-amazonia-e-o-combate-a-fome/