A fome não é inevitável, e sim uma decisão política, diz economista-chefe da FAO

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Máximo Torero destaca Brasil como referência, alerta sobre subalimentação na África e em Gaza e relaciona insegurança alimentar a conflitos armados e crises climáticas

Por Cristiano Cipriano Pombo na Folha de S.Paulo | 16/08/2025

SÃO PAULO – Em 2021, Máximo Torero, economista-chefe da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), disse que o mundo tinha perdido, com a pandemia, uma década de luta contra a extrema pobreza.

Agora, diante dos números da fome no relatório Sofi (Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo) 2025, apresentado no final de julho, ele afirma sentir uma profunda preocupação e um sentido de urgência e responsabilidade.

“Hoje, há 90 milhões mais de pessoas com fome do que em 2020 e 100 milhões a mais do que em 2015, quando os ODS [Objetivos do Desenvolvimento Sustentável] foram adotados.”

Segundo Torero, que não comenta políticas internas dos países (como o tarifaço imposto pelos EUA nas relações comerciais), os conflitos armados e as crises climáticas são, em uma combinação de fatores, os principais causadores da insegurança alimentar e da escassez de comida, especialmente na África. E que erradicar a fome depende de vontade política.

De Roma, sede da FAO, ele respondeu às perguntas enviadas pela Folha e citou o Brasil, que voltou a deixar o Mapa da Fome, como exemplo positivo.

Qual país você considera referência na luta contra a fome? De acordo com o Sofi 2025, o Brasil, como o México, é hoje referência mundial na luta contra a fome por ter saído de novo do Mapa da Fome, ao reduzir a subalimentação para menos de 2,5% da população entre 2022 e 2024. Esse avanço se deve à combinação de políticas públicas bem coordenadas, que integraram programas de proteção social —e de transferências de renda (como o Bolsa Família)— com medidas de apoio à produção agrícola, à alimentação escolar universal e a ações focadas nos mais vulneráveis.

A participação ativa da sociedade civil e o enfoque multissetorial foram fundamentais para resultados sustentáveis. O relatório sublinha que países, como o Brasil no passado, podem entrar e sair do mapa dependendo da continuidade de suas políticas públicas. Sem compromisso político sustentado, mesmo países com trajetórias de sucesso podem retroceder. Por isso, erradicar a fome requer não só medidas técnicas mas vontade política constante.

Você destacaria alguma prática do Brasil? Seu sistema nacional de segurança alimentar, que integra políticas de educação, saúde, nutrição, clima e agricultura com participação ativa de organizações da sociedade civil. Este ponto considero o principal, ao lado da reativação de programas de transferência de renda, aumento do salário-mínimo e dos índices de emprego e a recuperação econômica.

O sucesso dessa “receita brasileira” demonstra que a proteção social é ferramenta estratégica e replicável para reduzir a fome, especialmente em contextos de alta inflação, desigualdade ou vulnerabilidade climática.

Como as guerras se relacionam com a fome? Em 20 dos 65 países analisados, a insegurança alimentar aguda é impulsionada por conflitos armados e, particularmente na África e na Ásia, a fome cresce apesar da queda geral em outras regiões.

DA FOME À OBESIDADE

  • Mães negras e pobres enfrentam fome e obesidade para nutrir famílias
  • Maioria das capitais tem ao menos 1 em 4 moradores vivendo em desertos alimentares
  • ‘É mais difícil combater a obesidade do que a fome’, diz pai do Fome Zero

Sudão, Haiti e a Faixa de Gaza são exemplos de como combates intensos interrompem a produção agrícola, destroem infraestrutura, bloqueiam rotas de suprimento humanitário e alteram mercados, impondo milhões de pessoas a condições de fome. Na Faixa de Gaza, com combates intensos e bloqueios à ajuda humanitária, hoje mais de 1 milhão de pessoas enfrentam fome extrema, com a mortalidade relacionada à inanição em níveis catastróficos.

O aumento dos choques climáticos é outra causa para aumento da fome e da migração forçada, especialmente em regiões onde se cruzam degradação ambiental, pobreza e conflitos.

Por que a África, após imagens chocantes de desnutridos nos anos 1980, ainda está em situação alarmante? A África ainda é o continente mais afetado pela fome. Em 2024, 307 milhões de africanos sofriam de subalimentação, 20% de sua população, a taxa mais alta do mundo. Além disso, quase 60% dos países africanos enfrentam níveis de insegurança alimentar grave ou moderada, e a fome aumenta na maioria das sub-regiões.

Isso deve-se a conflitos prolongados, crises climáticas recorrentes, fraqueza dos sistemas agrícolas, acesso limitado a serviços básicos, crescimento demográfico acelerado e falta de investimento em desenvolvimento rural. Além disso, há o impacto de choques globais, como pandemia, inflação e dívida externa.

Se o ritmo atual não for significativamente alterado, a África não erradicará a fome até 2030 e serão necessárias décadas para eliminá-la.

Se em 139 dos 203 países pesquisados a inflação acumulada dos preços dos alimentos ultrapassou 25%, ela não seria a vilã para o aumento da fome? Em mais de 75% dos países analisados, a inflação acumulada dos alimentos superou o limite anual de 5% entre 2021 e 2024. Isso encareceu o acesso a dietas saudáveis, que já são inacessíveis para 3,1 bilhões de pessoas.

Mas o relatório adverte que a fome não se explica só pelo aumento dos preços. Algumas regiões com inflação elevada contiveram a fome graças a programas de assistência social, subsídios focalizados ou redes alimentares resilientes.

A inflação não é “vilã” isolada. É mais uma detonadora que agrava vulnerabilidades preexistentes. O que determina seu impacto real é se países contam ou não com mecanismos para proteger os mais pobres dos choques econômicos.

Como a FAO trata a obesidade no contexto da insegurança alimentar? E como enxerga aumento do sobrepeso e da obesidade no mundo? A prevalência global de obesidade em adultos aumentou de 12,1% em 2012 para 15,8% em 2022. O percentual de crianças menores de 5 anos com sobrepeso também subiu, passando de 5,3% em 2012 para 5,5% em 2024.

O relatório sublinha que a dupla carga da má nutrição —fome e obesidade— é realidade crescente no mundo. E obesidade e sobrepeso não são problemas isolados, mas sintomas de sistemas agroalimentares que falham em oferecer dietas saudáveis e acessíveis.

Pessoas mais vulneráveis enfrentam situação paradoxal: sem recursos para acessar alimentos nutritivos, consomem produtos ultraprocessados e densos em calorias, mas pobres em nutrientes, o que contribui para o aumento de doenças como diabetes ou hipertensão. Por isso a FAO enfatiza a necessidade de transformar sistemas agroalimentares para dietas saudáveis, sustentáveis e acessíveis.

Qual seu sentimento quando vê os números da fome no mundo? Ver as cifras da fome no mundo, como as do Sofi 2025, gera profunda preocupação e também forte sentido de urgência e responsabilidade. Embora pela primeira vez em anos tenha-se observado ligeira redução no número de pessoas com fome —com 673 milhões em 2024, em comparação com 735 milhões no ano anterior—, ainda se está longe de alcançar o objetivo de Fome Zero para 2030.

O mais alarmante é que a fome cresce na África e na Ásia Ocidental e as desigualdades estruturais estão se aprofundando. Hoje, há 90 milhões mais de pessoas com fome do que em 2020 e 100 milhões mais do que em 2015, quando os ODS foram adotados.

Por trás de cada cifra há uma pessoa real, uma família que não tem garantido seu direito básico a uma alimentação adequada. A fome não é inevitável: é o resultado de decisões políticas, falhas na governança, conflitos prolongados, crises climáticas e sistemas alimentares que não funcionam para todos.

Mas também se sabe o que funciona. Casos como o do Brasil mostram que é possível reverter essa tendência. Por isso, além da tristeza que essas cifras geram, há determinação para atuar com base na evidência, para promover transformações que integrem produção, nutrição e sustentabilidade.

A fome não é uma estatística: é uma injustiça evitável. E temos ferramentas, conhecimentos e exemplos concretos para mudar essa realidade.


Máximo Torero Cullen, 58, é economista-chefe da FAO e subdiretor-geral e representante regional interino para a América Latina e o Caribe. Natural de Lima (Peru), é doutor e mestre em economia. Ingressou na ONU em janeiro de 2019, como diretor-geral-adjunto do Departamento de Desenvolvimento Econômico e Social. Antes, foi diretor-executivo do Banco Mundial.

Publicado originalmente na Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/folha-social-mais/2025/08/a-fome-nao-e-inevitavel-e-sim-uma-decisao-politica-diz-economista-chefe-da-fao.shtml