Em entrevista exclusiva, José Graziano, ex-diretor da organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, fala dos desafios do país para sair, mais uma vez, do mapa da fome
Por Cleyton Vilarino no Globo Rural | Novembro de 2023
Diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) entre 2012 e 2019, o engenheiro agrônomo e doutor em economia pela Unicamp José Graziano avalia os novos desafios que o Brasil enfrenta para sair do Mapa da Fome, lista para a qual retornou oito anos depois de ter saído. Um dos responsáveis pela implantação do programa Fome Zero, ele ressalta que a situação do país duas décadas depois é de “fome generalizada”, afligindo cerca de 70 milhões de pessoas em todo o território, a maioria nas grandes cidades. Em um contexto de mudanças climáticas, ele destaca não ser possível dissociar os dois problemas, e alerta: estamos correndo o risco de voltar a ter uma situação de incerteza na oferta de alimentos similar ao que ocorria antes da invenção da agricultura. Confira abaixo os principais trechos da conversa.
GLOBO RURAL_ O senhor foi responsável pela criação do Fome Zero, programa que ajudou a tirar o Brasil do Mapa da Fome em 2014, mas para o qual país retornou recentemente. Que lições podemos tirar daquela época e o que precisaria ser feito para enfrentar o atual quadro de insegurança alimentar?
JOSÉ GRAZIANO_ Com certeza, a situação na época do Fome Zero, 20 anos atrás, não é a de hoje. Hoje, a fome é muito diferente no Brasil. Naquela época, a fome estava concentrada na zona rural, nos pequenos municípios, de até 50 mil habitantes. Hoje, ela está nas grandes cidades, nas regiões metropolitanas, na população de rua, esse é o núcleo duro da fome atualmente. Isso exige uma estratégia de enfrentamento muito diferente. A estratégia do Fome Zero era basicamente dar dinheiro às pessoas para se alimentar. Mas, hoje, se você faz um programa de combate à fome nas grandes metrópoles baseado unicamente na transferência de renda, tem uma série de vazamentos. Quando, na época, você dava R$ 50 para a dona de casa, ela comprava R$ 50 de alimentos. Hoje, se você dá o valor do Bolsa Família, que às vezes pode chegar a até R$ 1 mil, essa pessoa tem que pagar aluguel, tem que comprar gás, pagar transporte e o material da escola dos filhos.
GR_ Durante o período da pandemia, alguns levantamentos sobre a utilização do auxílio emergencial do governo apontavam que mais de 70% do benefício ia para a alimentação. Ainda que tenha efeito limitado, a distribuição de renda parece ser um pilar importante do combate à fome, certo?
GRAZIANO_ Sem dúvida, é uma injeção na veia. O cara não tem recurso para comprar alimentação, agora ele também não tem recurso para comprar gás, ele também não tem recurso para pagar aluguel. Tem uma série de outras necessidades que uma população metropolitana tem a mais do que tem uma população rural ou de uma pequena cidade do interior. É isso que faz com que a medida de transferência de renda não seja tão eficiente. Além do mais, hoje, a dimensão da fome no Brasil é muito maior. Em 2002, nós falamos de 40 milhões na população da época. A estimativa mais recente da FAO, do fim de 2022, apontou que, atualmente, são 70 milhões só no Brasil. Antes, nós estávamos falando do interior do Nordeste, do semiárido da região. Eram os locais em que tínhamos mais dificuldade de promover a produção e aumentar a oferta de alimentos. Hoje, a fome se espraiou. A Amazônia passou na frente do Nordeste, com 40% da população em insegurança alimentar. No Nordeste, são 35%. Mesmo os Estados do Sul, por exemplo, que tinham uma proporção muito baixa de gente passando fome, hoje têm uma proporção que chega a mais de 15%.
GR_ Isso torna a área rural menos suscetível?
GRAZIANO_ Não, pelo contrário. A área rural continua tendo uma proporção maior que a urbana de gente passando fome, por incrível que pareça. E o mais assustador: muitos agricultores familiares não conseguem produzir nem para subsistência da própria família, não conseguem retirar uma renda que permita à família ter uma alimentação adequada. Em termos proporcionais, a fome continua sendo maior nas zonas rurais, mas o volume de gente, a quantidade de pessoas, é muito maior nas regiões metropolitanas.
GR_ Quais debilidades fazem com que tenhamos 70 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no Brasil?
GRAZIANO_ O Josué de Castro [embaixador e cientista social, autor de Geografia da Fome] dizia com todas as letras que “a fome é o resultado do subdesenvolvimento”. Ela não é uma questão dos indivíduos que passam fome, mas fruto de um estágio de subdesenvolvimento. E ele definia esse estágio extremo de fome e miséria como a ausência das condições básicas de sobrevivência e de desenvolvimento da espécie humana. É isso que nós estamos falando. As pessoas não passam fome porque não trabalham, as pessoas não passam fome porque bebem, jogam o dinheiro fora. Não é isso. Nós estamos falando de 70 milhões num país com 200 milhões de habitantes, estamos chegando aí nos 30%. Não pode ser que o Brasil tenha 70 milhões de vagabundos.
GR_ O problema está em nossa estrutura econômica?
GRAZIANO_ Tem uma coisa mais estrutural, que são os baixos salários. A grande política que tirou o Brasil do Mapa da Fome não foi o Bolsa Família. Ele foi um grande atenuador da miséria. O que tirou o Brasil do Mapa da Fome foi a geração de emprego e o aumento do salário mínimo. Ele cria uma base para as rendas no país. Nós tivemos, durante os dez primeiros anos da década de 2010, até 2011, 2012, um programa de valorização do salário mínimo. O salário mínimo subiu acima da inflação, e depois disso, no fim do governo Dilma e nos seguintes, isso deixou de acontecer. Nós temos que ter no país um salário que seja mínimo e que garanta as mínimas condições de vida para a população poder comer, poder viajar de transporte, poder morar. Acho que a grande contribuição do Josué de Castro foi dizer que a fome não é um problema individual. Comer não é um ato do indivíduo, é um ato social, de reprodução da espécie.
GR_ Ou seja, a fome tem impactos econômicos. O que o Brasil perde ao não conseguir resolver o problema?
GRAZIANO_ Há vários trabalhos sobre isso, mas os principais apontam um impacto sobre a produtividade do trabalho das pessoas mal alimentadas. Em um deles, dos anos 1980, na época do auge dos boias-frias, um médico de Ribeirão Preto (SP), o doutor Oliveira Dutra, pesquisou sobre a influência da alimentação dos trabalhadores volantes. A constatação foi a mesma de Josué de Castro: os caras não tinham força para cortar cana. O potencial de dez a 12 toneladas, mas eles cortavam menos de três ou quatro. Em geral, as estimativas mostram que os países perdem de 5% a 8% do seu produto interno bruto com a fome, seja em virtude do aumento dos custos com saúde, seja por causa da queda de produtividade. Imagine uma perda de 4% a 5% por ano. Se não houvesse a fome, daria para crescer de 6% a 6,5%, e não 2% ou 2,5%, como a gente fica discutindo.
GR_ A fome também é uma das consequências das mudanças climáticas. Como atacar os dois problemas e como eles se relacionam?
GRAZIANO_ A agenda da mudança climática é tão fundamental quanto a da fome. A FAO divulgou recentemente a primeira estimativa global do impacto dos desastres naturais sobre a produção de alimentos que é interessante porque a América do Sul, que é a maior exportadora de grãos, é uma das que sofrem o maior impacto. Ela perde 7% da sua produção com desastres naturais como seca, inundação e outros. Só está abaixo da África, que perde quase 10%. O relatório da FAO destaca também outra perda, sobre a qual ainda se fala pouco: a da qualidade do produto. Os cereais, por exemplo, estão contendo muito mais amido e muito menos proteínas e alguns minerais essenciais. O trigo, por exemplo, chega a perder 20% de proteína em função do aumento de temperatura. Esse impacto sobre a qualidade do produto é um efeito da mudança climática que vai ter cada vez mais reflexos no futuro. Nós estamos correndo o risco de voltar a ter uma situação de incerteza na disponibilidade de alimentos similar à que ocorria antes da invenção da agricultura, quando se ficava ao sabor de recoletar os produtos. A agricultura veio trazer a certeza de que você tinha o que comer, mas a mudança climática está reintroduzindo a incerteza. Você planta, vem uma seca ou uma inundação, e você não sabe se você vai colher ou não.
GR_ Parece um caminho cada vez mais difícil. É possível chegarmos a uma situação em que não haja fome ou ela sempre será um fantasma?
GRAZIANO_ Um país que tem menos de 5% da população em insegurança alimentar é considerado fora do Mapa da Fome. Obviamente que 5% em 200 milhões é muita gente. São dez milhões de pessoas. Mas é possível, sim. Nós temos países com estatísticas zero de fome. Os nórdicos, por exemplo, que criaram programas específicos de procurar as pessoas em situação de maior vulnerabilidade – e muitas vezes, como eu disse, essas pessoas estão escondidas. A fome não é visível. Eu já estive em pelo menos 150 países do mundo, e nunca encontrei um sindicato de famintos ou uma associação de pessoas com fome. Então, encontrá-los é uma coisa difícil, mas é possível, e uma sociedade pode estar atenta a isso. Eu, particularmente, acho que nós estamos numa situação muito favorável hoje para erradicar a fome, que é uma situação em que o mundo produz mais do que o suficiente para alimentar todos de maneira adequada.
GR_ Qual é o centro do problema, então?
GRAZIANO_ É um problema de distribuição. Hoje, quase não temos algo que torne impossível a produção, e isso ajuda muito. Nós temos o quê? Temos problemas políticos, temos conflitos. Agora mesmo nós estamos vendo um conflito no Oriente Médio, e o resultado está sendo uma situação assustadora, são milhões de pessoas que estão, de repente, condenadas à fome. Mas isso não tem nada a ver com a capacidade de produção de alimentos, tem a ver com um conflito basicamente político e local. Então, se
nós conseguirmos superar esses problemas, eu acho que temos o espaço aberto para erradicar a fome.
Publicado no Globo Rural, edição de novembro de 2023