A lógica de um debate

Por Jean Marc von der Weid | novembro 2023

A proposta de debate sobre o lugar da agroecologia nos programas e políticas do MDA obedece a vários parâmetros, mais políticos do que acadêmicos.

Em primeiro lugar decidiu-se centrar o debate no MDA, mesmo sabendo que a promoção da agroecologia depende de muitas outras políticas e programas, localizados em outros ministérios. A lógica desta decisão tem a ver com a complexidade técnica, política e administrativa do processo de formulação do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.

Ao abordar o conjunto das interrelações temáticas que dizem respeito à transformação da agroecologia em uma política de Estado, a CNAPO opera no médio e longo prazo. Trata-se de uma iniciativa da maior importância para o nosso futuro. Mas enquanto este processo amadurece, é importante agir para fazer avançar na prática a proposta da agroecologia, dentro dos limites políticos, técnicos, administrativos e econômicos em que vivemos. E isto nos leva diretamente para tentar influenciar as políticas direta ou indiretamente afetas ao MDA.

O MDA controla a quase totalidade dos recursos desembolsados para a promoção do desenvolvimento da agricultura familiar, concentrados fortemente no PRONAF (crédito) e secundariamente na política de ATER, além dos recursos destinados à aquisição de terras para a reforma agrária.

Existem outros programas e políticas no MDA, como a política de seguro e a de compras governamentais, esta última gerida de forma compartilhada com MDS e CONAB (PAA) e MEC (PNAE) e outras, mas eu calculo que 90% dos desembolsos se encontram nas duas primeiras políticas citadas. Se olharmos pelo lado do número de beneficiários o resultado será o mesmo, com predomínio total para o crédito. Depois de já ter chegado a beneficiar mais de 2 milhões de AFs em 2006, o PRONAF, em 2022, beneficiou 570 mil. No Censo de 2017 apenas 18% dos AFs receberam algum tipo de assistência técnica (ATER), ou perto de 700 mil agricultores, mas a parte financiada pelo MDA deve ter sido por volta de um quarto desse número.

Este ano a ANATER realizou apenas uma chamada para projetos, dirigida a assessoria técnica de 10,5 mil mulheres camponesas. O PAA, nos seus melhores momentos nunca chegou a beneficiar 500 mil famílias, e os recursos disponibilizados sempre foram uma fração dos gastos com o crédito.

Justificada a decisão de centrar o debate no MDA e suas políticas e programas, devemos discutir qual o nosso objetivo neste momento. Na minha opinião, o atual MDA está sem um programa elaborado com um mínimo de método. O ministério está reproduzindo as políticas e programas dos governos Lula e Dilma, sem fazer qualquer avaliação dos mesmos, quer nas suas opções de público-alvo prioritário quer na orientação do desenvolvimento promovido pelas políticas.

A meu ver, isto significa manter uma prioridade para o setor mais capitalizado (o “agronegocinho”) e para a produção de comodities para exportação. Esta ausência de análise dos impactos das políticas anteriores implica em não perceber os custos econômicos, sociais e ambientais da promoção do modelo insustentável do agronegocinho. Estimo que um quarto dos beneficiários deste setor do campesinato faliu e/ou vendeu suas terras. Isso apesar de um sem-número de medidas de anistias e de reprogramações facilitadas de pagamento de dívidas.

É isto mesmo que o MDA quer fazer?
Ou não está se dando conta do que está fazendo?

Além de repetir políticas que merecem uma profunda revisão nos seus objetivos, prioridades e formato, o MDA está operando “no varejo”, formulando programas a partir de demandas dos movimentos sociais, mas sem opções mais profundas em relação às prioridades de público, de objetivos e formas de apoio. A chamada de ATER para mulheres, uma coisa boa em si mesma, é de pequena dimensão e sem objetivo mais claro.

Talvez, com a criação do programa de “quintais produtivos”, as duas ações possam ser combinadas para dar mais substância à proposta.

Mesmo assim, cabe discutir a memória de cálculo deste programa, que (na média) designa 10 mil reais para cada quintal como custo padrão. Mesmo se tirarmos os custos da ATER para colocá-los na chamada para mulheres (e vai ficar faltando muita ATER), este valor é muito inferior às necessidades, sobretudo na região semiárida onde as infraestruturas hídricas são fundamentais.

E, de todo modo, elaborar um programa para cem mil quintais não é mais do que um gesto simbólico, frente a uma demanda de pelo menos dois milhões de quintais.

Sem que isto tenha sido afirmado neste programa, a mera escolha de incentivar os quintais produtivos implica em definir um objetivo: aumentar a segurança alimentar das famílias mais pobres.

Por outro lado, não está claro como vão ser orientados estes quintais. Se, como acredito que seja o caso, a inspiração desta proposta tenha vindo das experiências de inúmeras ONGs e movimentos em vários biomas, mas com forte concentração no Nordeste, a orientação dos quintais será no sentido de uma produção muito diversificada e agroecológica.

Fica a pergunta: há um número suficiente de técnicas em ATER com experiência em quintais e em agroecologia?

Há algum material que tenha sistematizado estas experiências?
Algum manual metodológico e técnico?
Qual o cálculo do MDA em relação ao custo desta ATER?

Tudo depende do método de ATER que o MDA pensa impulsionar.
Coletivo ou individual?

Isto nos reporta aos problemas encontrados nas chamadas de ATER no governo Dilma, depois da lei de ATER. É um sistema que bloqueia qualquer metodologia participativa e qualquer iniciativa social coletiva.
E terá que ser revisado, se o MDA não quiser colecionar os mesmos resultados pífios das chamadas anteriores.
O que é preciso fazer, antes mesmo de rever as políticas anteriores, é definir os objetivos do governo no que diz respeito a públicos e impactos esperados e quais as prioridades a serem adotadas.

Para isto, o MDA precisa ter uma visão clara dos diferentes tipos de público que o termo agricultura familiar implica. Também implica em saber o tamanho de cada público e sua situação material.
Se o MDA tem como objetivo a questão da segurança alimentar (como eu acho que deveria) ele vai ter que trabalhar com duas situações extremas e várias intermediárias.

Em um extremo, temos perto de 2,2 milhões de famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza. São produtores de subsistência, com pouca terra, no mais das vezes desgastada, em geral em ecossistemas mais vulneráveis, como o semiárido nordestino, dependentes de auxílios públicos e de outras formas de apoio externo. Um programa turbinado de quintais produtivos agroecológicos teria o efeito de, no mínimo, melhorar o padrão alimentar das famílias e, no melhor dos casos, total suficiência alimentar e até a venda de excedentes nos mercados de vizinhança.

No outro extremo, encontramos perto de 400 mil agricultores capitalizados, com mais terras que a média dos AFs em suas regiões, com acesso a financiamentos bancários e integrados nas cadeias de comodities ou de agroindustrialização.

Se o governo colocar a prioridade na questão da segurança alimentar, este público não pode continuar a ser o mais beneficiado, como no passado.
O MDA deveria buscar uma política de reconversão da produção de comodities para a produção alimentar para o mercado interno. Isto implica em várias políticas que terão que ser alteradas.
O crédito para a produção de comodities deveria ser apenas um ou dois porcento menor do que aquele dirigido para o agronegócio.
Por outro lado, o crédito para produções alimentares deveria receber subsídios ainda mais generosos do que os atuais recebidos pela categoria do PRONAF (V). Além disso, o MDA deveria assegurar preços mínimos para os produtos alimentares equivalentes aos das comodities.
Finalmente, o MDA vai ter que assegurar a compra destes produtos, quer pela formação de estoques quer por programas como o PAA e o PNAE.

Sem estas três condições e mais o seguro safra, os produtores de comodities não deixarão as cadeias em que estão solidamente inseridos.
Se for possível induzir uma ampla conversão destes produtores para o abastecimento de alimentos para o mercado interno, teremos ainda que indicar qual o modelo produtivo a ser estimulado.

Desde logo, não acredito na possibilidade de se fazer a conversão agroecológica deste público nos próximos anos. O que se pode pretender é muito menos, mas mais palatável por este tipo de produtor.
Na oferta do crédito, o uso de adubos orgânicos e controles biológicos de pragas e doenças poderia ser estimulado por juros ainda mais baixos, e mesmo zero.

O mesmo vale para a substituição do uso de sementes transgênicas. A estratégia neste programa é atrair os produtores oferecendo mais vantagens para que operem uma conversão para uma produção menos química e não os punir por adotarem as técnicas ditas modernas. Para que esta conversão possa ser massiva, vai ser necessário mobilizar a EMBRAPA e outras agencias de pesquisa para fornecer material técnico para a extensão rural, eventualmente com cursos de formação intensiva. E, finalmente, vai ser importante estimular a produção de adubos orgânicos, sobretudo pela compostagem de lixo e lodo de esgoto, técnicas já amplamente estudadas pela FINEP no passado.

Entre estes dois extremos, vamos encontrar 1,1 milhão de famílias com uma enorme variabilidade de situações, segundo as condições ambientais, sociais e econômicas. Aumentar a oferta de alimentos desta(s) categoria(s) pode ser mais fácil do que converter a produção de comodities em alimentar.
Mas trata-se de um público muito diversificado e vai ser preciso estudar uma regionalização e uma tipificação de programas para atender esta realidade. Aqui também eu não acredito que seja possível promover uma transição agroecológica em massa.
Devem ser mantidos os princípios de substituir insumos químicos, no caso dos que os usam, ou introduzir insumos orgânicos, no caso dos que os desconhecem. E garantir fomento (para os mais pobres) ou crédito subsidiado (para os menos pobres), seguro, preços mínimos e compras públicas.

Uma última categoria, a menos numerosa, é a dos agricultores em transição para a produção orgânica ou agroecológica. Eu calculo que estes somam cerca de 200 mil famílias e que podem dobrar apenas adensando as adesões de vizinhos aos núcleos já existentes nos territórios.
Para este grupo, já existe um programa em curso, embora em dimensões muito menores do que o desejado. Trata-se do programa do BNDES/FBB, conhecido como Ecoforte. Este programa tem imensa importância para o futuro do desenvolvimento rural sustentável. Ele reúne em seu orçamento uma parte dos recursos necessários para o financiamento de projetos integrados de desenvolvimento agroecológico. Este programa merece ser avaliado para ampliar o escopo das políticas que vem incorporando, incluindo crédito, fomento, pesquisa, acesso a mercados e outros. E ele deve ser ampliado para atingir públicos mais amplos, em um processo de aumento de escala dentro dos territórios onde as organizações dos agricultores estão inseridas.

Dentro destes quatro marcos programáticos possíveis, todos dirigidos por uma lógica de aumento da segurança alimentar, muitos programas mais específicos poderão ser definidos, como programas para quilombolas, para indígenas, para seringueiros, pescadores, assentados e outros setores.

Quanto recurso vai ser destinado a cada um deles?

Isto depende de decisões dos movimentos sociais e do próprio governo. Os movimentos deverão definir suas prioridades e o governo suas possibilidades. É difícil que se consigam recursos suficientes para lidar com o público total da AF, mas será possível pelo menos deixar de privilegiar os mais privilegiados e redirecionar os recursos para outros públicos.

Deste modo, chegamos ao modelo de debate que foi proposto, onde se procura esclarecimentos do MDA em relação a seus objetivos, prioridades de público, prioridades de modelo de desenvolvimento. Pode ser que muito do que está sendo questionado já esteja estudado e formulado e será ótimo ouvir do MDA o que tem refletido e o que estão propondo. Mais ainda, uma grande parte deste questionamento deverá vir dos movimentos sociais. Os movimentos têm suas análises em relação a objetivos, a públicos prioritários e tipo de programas a serem implementados. Cabe ao governo explicar sua visão própria e cotejá-la com as visões oriundas da sociedade civil, no esforço necessário de encontrarmos um projeto comum.

Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971, fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983, ex-membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016. Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.