Blog do IFZ | 11/06/2025
XANGAI, 11 de junho de 2025 | Em um auditório atento, sob o emblema do New Development Bank (NDB), o ex-Diretor-Geral da FAO e Diretor-Geral do Instituto Fome Zero, Dr. José Graziano da Silva, apresentou um conjunto de reflexões sobre as preocupações mais prementes da comunidade internacional engajada no combate à fome. Sua palestra, intitulada “A promoção da Segurança Alimentar e o papel da avaliação”, integrou a série de conferências promovidas pelo Escritório de Avaliação Independente do NDB (IEO NDB Lecture Series) e ofereceu ao público uma análise de um paradoxo que define nosso tempo: a persistência da fome em um mundo que produz alimentos em abundância.
Embora configurado como um alerta, o discurso de Graziano também foi um apelo lúcido à ação coletiva e coordenada, sustentado por dados concretos, experiências bem-sucedidas e propostas viáveis.
A fome como fracasso da humanidade, não da agricultura
Logo nas primeiras frases, Graziano foi direto ao ponto: “Não é falta de comida, é falta de acesso.” Essa sentença reverberou como um refrão ao longo de sua fala, orientada pelo relatório State of Food Security and Nutrition in the World (SOFI) 2024, divulgado em meados do ano passado. Os números são alarmantes: 3,1 bilhões de pessoas não conseguem pagar por uma dieta saudável, o que representa 42,2% da população mundial. Esse quadro, paradoxalmente, convive com a escalada da obesidade — entre 2012 e 2022, a taxa global subiu de 12,1% para 15,8%, com projeção de 1,2 bilhão de adultos obesos até 2030.
Na América Latina, o retrato é ainda mais preocupante. Uma dieta saudável custa, em média, US$ 4,08 por dia, valor inacessível para 133 milhões de pessoas. Enquanto nas zonas rurais a insegurança alimentar tem raízes históricas, a urbanização acelerada trouxe novos desafios: cerca de 90% dos alimentos consumidos nas cidades são adquiridos em mercados informais ou redes de fast-food, o que agrava o consumo de produtos ultraprocessados.
Bilhões de dólares e milhões de vidas, este é o preço da inércia
A palestra não se limitou ao diagnóstico. Graziano apresentou os custos da inação. Para erradicar a fome até 2030, estimam-se investimentos entre US$ 1,1 trilhão (para enfrentar a subnutrição) e US$ 15 trilhões, considerando uma abordagem mais ampla que inclua dietas saudáveis e práticas agrícolas sustentáveis. Contudo, o custo de não agir pode ser ainda mais elevado: só na América Latina, a fome representa perdas equivalentes a 6,4% do PIB anual, chegando a 8,6% na América do Sul.
Os argumentos ganham força com exemplos práticos. O Chile, ao adotar rótulos de advertência em alimentos ultraprocessados, conseguiu reduzir em 37% o consumo de açúcar. Já programas de proteção social — como transferência de renda e alimentação escolar — apresentam retorno econômico de até 7:1, especialmente quando articulados a políticas climáticas antecipatórias. “Investir em proteção social não é caridade; é racionalidade econômica“, destacou Graziano.
A Aliança Global é uma resposta coordenada, à altura do desafio
Em um dos momentos mais inspiradores da conferência, Graziano destacou a criação da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, lançada em 2024 sob a presidência brasileira do G20. Composta por 148 membros, entre governos, bancos de desenvolvimento e organizações da sociedade civil, a Aliança se estrutura em três pilares: compromissos nacionais, financiamento sustentável e produção e compartilhamento de conhecimento técnico.
O Brasil surge como exemplo positivo, com programas como o PRONAF, que apoia a agricultura familiar e fortalece cadeias alimentares locais. No campo do financiamento, o próprio New Development Bank compromete-se a apoiar a infraestrutura rural e a resiliência climática. No entanto, Graziano chamou a atenção para a necessidade de integração mais efetiva dos ODS 1 (erradicação da pobreza) e ODS 2 (fome zero) nas estratégias do banco.
Quem paga a conta? A geopolítica do financiamento
Uma pergunta incômoda pairou no ar: de onde virão os US$ 350 bilhões anuais necessários para preencher a lacuna de financiamento em segurança alimentar? Para Graziano, parte da resposta reside na reorientação de instrumentos financeiros já existentes, como os Direitos Especiais de Saque (SDRs) do FMI, que poderiam ser canalizados para países em situação de maior vulnerabilidade.
Ele defendeu ainda a adoção de programas de proteção social adaptativa, inspirados no modelo do Bolsa Família, mas com componentes climáticos integrados, como seguros agrícolas voltados a pequenos produtores diante do aumento de eventos extremos.
“Chegou a hora de romper com a lógica de projetos-piloto. Precisamos de financiamento direto aos governos e ações estruturantes de longo prazo,” afirmou, com a autoridade de quem já liderou a principal agência das Nações Unidas para a alimentação.
Exemplos que inspiram e práticas que preocupam
Na parte final da palestra, Graziano compartilhou casos emblemáticos de sucesso. Países como o México e a África do Sul conseguiram ampliar o acesso à alimentação saudável por meio de subsídios diretos, demonstrando que é possível agir com eficácia quando há vontade política.
No entanto, também houve espaço para alertas. O Brasil, sua terra natal, tornou-se em 2021 o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, com 719 mil toneladas aplicadas. O número é alarmante e representa riscos graves à saúde pública e aos ecossistemas, revelando um paradoxo para um país com tradição em políticas alimentares inovadoras.
O papel da avaliação: medir para transformar
Ao longo da conferência, ficou evidente a ênfase no papel estratégico da avaliação de políticas públicas. Graziano defendeu a necessidade de métricas claras, sistemas independentes de monitoramento e mecanismos eficazes de prestação de contas. Segundo ele, os grandes bancos de desenvolvimento e organismos multilaterais precisam adotar uma cultura de avaliação rigorosa, sob pena de desperdiçar recursos e tempo em iniciativas ineficazes.
Um chamado à ação coletiva
A palestra encerrou-se como começou: com um chamado à mobilização global, com a defesa de que a segurança alimentar seja reconhecida como um bem público planetário, à semelhança da saúde ou do meio ambiente, o que exige:
- Coordenação política internacional eficaz, para evitar a duplicação de esforços entre as 12 iniciativas globais atualmente em curso;
- Investimentos maciços e articulados em infraestrutura rural, proteção social e agricultura resiliente;
- Avaliação sistemática e transparente, com foco em impactos reais sobre as populações mais vulneráveis.
“O custo da fome é intolerável — mas a solução está ao nosso alcance“, concluiu Graziano.
Baixe aqui a apresentação “Promoting Food Security and the Role of Evaluation“
