Ação Antecipatória e Proteção Social na Construção de Sistemas Alimentares Resilientes

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Blog do IFZ | 15/09/2025

Baixe aqui o relatório “Building Resilient Food Systems
Baixe aqui o “Building Resilient Food Systems – Executive Summary

O relatório Building Resilient Food Systems, elaborado pelo Painel de Alto Nível de Especialistas em Segurança Alimentar e Nutricional (HLPE-FSN), a pedido do Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CFS), surge em um contexto de múltiplas crises interligadas: mudanças climáticas, degradação ambiental, perda de biodiversidade, conflitos geopolíticos e choques econômicos. Tais fatores têm colocado em risco a capacidade dos sistemas alimentares de garantir segurança alimentar e nutricional (SAN) para todos.

Um dos eixos centrais do relatório é a necessidade de avançar para uma resiliência equitativamente transformadora (Equitably Transformative Resilience – ETR). Para isso, instrumentos como a proteção social e a ação antecipatória ganham destaque. Eles não apenas permitem responder a choques imediatos, mas também fortalecem capacidades adaptativas e transformadoras de longo prazo, reduzindo vulnerabilidades estruturais e promovendo equidade.

A Proteção Social como Pilar da Resiliência

A proteção social é apresentada como um dos instrumentos políticos mais críticos para a construção de resiliência em sistemas alimentares. O relatório destaca que esses mecanismos contribuem para quatro dimensões fundamentais: absorptive, anticipatory, adaptive e transformative capacities.

  1. Capacidade absorptiva: ao oferecer transferências monetárias, apoio alimentar ou subsídios, a proteção social permite que famílias resistam ao impacto imediato de crises sem recorrer a estratégias prejudiciais, como a venda de ativos produtivos ou a redução da qualidade da dieta.
  2. Capacidade antecipatória: sistemas de proteção social robustos podem integrar mecanismos de resposta antes que o choque se concretize. Programas de transferência condicionados a gatilhos climáticos, por exemplo, podem liberar recursos quando previsões meteorológicas indicam seca ou inundação iminente.
  3. Capacidade adaptativa: ao fornecer apoio contínuo, a proteção social facilita a diversificação de meios de vida, a adoção de práticas agrícolas mais resilientes ao clima e o investimento em capital humano (educação, saúde, capacitação).
  4. Capacidade transformadora: políticas sociais podem ajudar a corrigir desigualdades históricas e estruturais, promovendo inclusão produtiva, acesso a mercados, direitos territoriais e participação cidadã, criando bases para um sistema alimentar mais justo e sustentável.

O relatório insiste que a proteção social não deve ser vista como medida emergencial isolada, mas como parte de um sistema integrado de políticas que conecta nutrição, emprego, adaptação climática e realização de direitos humanos.

Ação Antecipatória: Preparar-se Antes da Crise

A ação antecipatória (anticipatory action) aparece no relatório como um conceito-chave para reduzir os impactos de crises previsíveis. Diferentemente das respostas emergenciais tradicionais, que ocorrem após o choque, a ação antecipatória busca atuar de forma preventiva, acionando mecanismos antes que o desastre se materialize.

Essa abordagem se apoia em três pilares:

  • Previsão e sistemas de alerta precoce: uso de dados climáticos, epidemiológicos e econômicos para identificar riscos iminentes.
  • Planos de contingência pré-estabelecidos: protocolos que permitem a rápida mobilização de recursos financeiros, estoques alimentares e logística.
  • Integração com proteção social: vincular os sistemas de transferência de renda, alimentação escolar e compras públicas a indicadores de risco, garantindo que os recursos cheguem às populações vulneráveis de forma automática e previsível.

O relatório cita exemplos práticos: sistemas multirrisco de alerta precoce (MHEWS), reservas regionais de alimentos na África Ocidental e programas de transferência baseados em previsões meteorológicas. Em todos os casos, a ênfase está em evitar que famílias adotem estratégias de sobrevivência nocivas, como reduzir a alimentação de crianças ou contrair dívidas.

Interseção entre Ação Antecipatória e Proteção Social

O ponto de convergência mais forte do relatório é a defesa de que a proteção social pode ser o veículo mais eficaz para operacionalizar a ação antecipatória. Programas de transferência de renda, alimentação escolar ou subsídios agrícolas, quando desenhados com mecanismos de gatilho, conseguem responder a crises antes que seus efeitos se aprofundem.

Alguns elementos centrais desse vínculo incluem:

  • Expansão da cobertura: garantir que programas alcancem populações tradicionalmente excluídas, como trabalhadores informais, migrantes, povos indígenas e mulheres.
  • Adequação dos benefícios: assegurar que o valor transferido seja suficiente não apenas para evitar fome imediata, mas também para permitir investimentos em adaptação.
  • Confiabilidade e previsibilidade: criar confiança entre os beneficiários de que o apoio estará disponível em momentos críticos, incentivando decisões produtivas de longo prazo.
  • Integração com políticas climáticas: alinhar programas de proteção social a estratégias de mitigação e adaptação, incentivando práticas agrícolas sustentáveis, diversificação de renda e gestão responsável dos recursos naturais.

Exemplos de Políticas e Programas

O relatório apresenta diversos exemplos de países e iniciativas que ilustram a integração entre proteção social e ação antecipatória:

  • América Latina: o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), no Brasil, garante compras de agricultores familiares, funcionando tanto como rede de segurança alimentar quanto como estímulo econômico local. Em momentos de crise, como durante a COVID-19, adaptações rápidas permitiram manter a entrega de alimentos às famílias.
  • África Ocidental: a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) implementou uma estratégia de três níveis de estoques alimentares (local, nacional e regional), usada em múltiplas ocasiões desde 2017. Essas reservas se articulam a programas de proteção social para mitigar crises alimentares.
  • Índia: o modelo de agricultura natural comunitária de Andhra Pradesh, com forte apoio governamental, vincula práticas agroecológicas a políticas de subsídios e proteção social, fortalecendo a resiliência local e antecipando impactos climáticos.
  • África Subsaariana: programas de proteção social vinculados a gatilhos climáticos têm sido testados em países como Quênia e Etiópia, onde transferências de renda são liberadas automaticamente quando secas são previstas, reduzindo perdas produtivas e insegurança alimentar.

Preparação, Planejamento e Previsão

A construção de resiliência requer também sistemas robustos de preparação e planejamento. O relatório destaca a importância da articulação entre ação antecipatória, proteção social e políticas de redução de riscos de desastre. Entre os instrumentos mencionados estão:

  • Planos de contingência nacionais e locais, que definem papéis e responsabilidades antes da crise.
  • Investimentos em coleta e uso de dados, fundamentais para acionar gatilhos de forma transparente e legítima.
  • Coordenação intersetorial, para que setores de agricultura, saúde, educação, infraestrutura e assistência social operem de maneira integrada.
  • Capacitação comunitária, garantindo que beneficiários entendam os mecanismos e possam reivindicar seus direitos.

Essa abordagem se ancora nos princípios PANTHER (participação, prestação de contas, não discriminação, transparência, dignidade humana, empoderamento e estado de direito), garantindo que os mecanismos de resiliência sejam justos e inclusivos.

Limitações e Desafios

Embora o relatório seja otimista quanto ao potencial da proteção social e da ação antecipatória, ele também aponta desafios significativos:

  • Cobertura insuficiente: milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade ainda não estão inseridas em sistemas formais de proteção social.
  • Financiamento instável: muitos países dependem de apoio externo para sustentar programas, o que limita previsibilidade.
  • Fragmentação institucional: a ausência de coordenação entre ministérios e níveis de governo reduz a eficácia das políticas.
  • Capacidade técnica limitada: nem todos os países possuem sistemas de dados, modelagem climática e infraestrutura logística para acionar medidas antecipatórias de forma confiável.
  • Risco de captura corporativa: sem salvaguardas, subsídios e transferências podem reforçar estruturas de poder existentes em vez de reduzir desigualdades.

Recomendações Principais

O relatório apresenta um conjunto de recomendações para fortalecer o papel da proteção social e da ação antecipatória na resiliência alimentar:

  1. Expandir a cobertura da proteção social, priorizando grupos marginalizados e em risco.
  2. Integrar mecanismos de ação antecipatória aos programas existentes, especialmente aqueles baseados em transferências de renda e alimentação escolar.
  3. Assegurar adequação e confiabilidade dos benefícios, alinhando-os a indicadores de risco climático, sanitário e econômico.
  4. Promover sinergias entre políticas de proteção social, adaptação climática e mitigação, estimulando práticas agroecológicas e diversificação de meios de vida.
  5. Fortalecer reservas alimentares públicas e regionais, articulando-as a redes de proteção social.
  6. Investir em sistemas de alerta precoce e dados abertos, conectando-os a protocolos de resposta rápida.
  7. Garantir participação social e transparência na governança das políticas, seguindo os princípios PANTHER.

Conclusão

O relatório Building Resilient Food Systems reafirma que a resiliência alimentar não pode ser construída apenas com respostas emergenciais. É necessário um processo contínuo de transformação que reduza vulnerabilidades estruturais e promova equidade. Nesse caminho, a proteção social e a ação antecipatória surgem como instrumentos estratégicos, capazes de proteger vidas, sustentar meios de subsistência e apoiar transições justas diante das mudanças climáticas e crises globais.

Ao alinhar políticas de assistência social a mecanismos de alerta precoce e planejamento de longo prazo, governos e comunidades podem “pular para frente” (bouncing forward), em vez de simplesmente retornar ao estado anterior após um choque. Essa mudança de paradigma é essencial para assegurar o direito humano à alimentação e construir sistemas alimentares verdadeiramente resilientes, inclusivos e sustentáveis.

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