Cada vez mais pessoas correm o risco de passar fome em função das alterações climáticas
Sergio Schneider e Marcela Donini no Le Monde Diplomatique Brasil | 04/12/2024
Já não é possível afirmar que as mudanças climáticas fazem parte de um imaginário de futuro próximo; elas estão presentes em diferentes partes do globo. Nesse sentido, é necessário que sejam formuladas e implementadas modificações em diferentes setores da sociedade e de suas instituições, visando à criação de um paradigma diferente do desenvolvimento baseado na exploração ilimitada da natureza, a fim de manter os níveis e modos de produção e consumo dos seres humanos.
Por se tratar de uma realidade ampla e complexa, ela exige respostas intersetoriais e abrangentes. Diferentes relatórios apontam os riscos do aquecimento global e, consequentemente, das mudanças climáticas e dos eventos climáticos extremos. As ações antrópicas são consideradas o principal fator para a elevação da temperatura terrestre, levando muitos pesquisadores a denominar esta era como Antropoceno (Steffen et al., 2015), ou mesmo Capitoloceno (Moore, 2022) — quando se leva em consideração o modo de produção e consumo capitalista. O relatório lançado pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) de 2023 alerta que são as atividades humanas as principais responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa.
Esse relatório também vincula as mudanças climáticas aos eventos climáticos extremos que vêm ocorrendo em todas as partes do globo, afetando a produção de alimentos. No que diz respeito à contribuição dos sistemas alimentares para a emissão de gases de efeito estufa, o relatório aponta que 22% dessas emissões foram oriundas da agricultura, silvicultura, mudança e uso da terra em 2019 (IPCC, 2023). Também é dada relevância às modificações necessárias nos sistemas alimentares para mitigar seus efeitos, incluindo práticas agroecológicas.
No que diz respeito à utilização de recursos hídricos, o relatório lançado pela ONU, denominado “O valor da água”, em 2021, evidencia que 69% dos recursos globais de água doce são utilizados para a produção alimentar (UNESCO, 2021). O aumento do uso dos recursos hídricos no setor agropecuário se deu por conta devido aos manejos utilizados, como, por exemplo, o aumento de cultivares irrigadas, principalmente com pivôs de irrigação em grandes extensões de monocultura. Ao contrário de práticas resilientes como consorciamento de culturas, onde o sombreamento faz com que seja menos necessária a irrigação, ou mesmo práticas de irrigação por gotejamento, onde há menor perda de água no sistema.
No contexto brasileiro, o relatório produzido pelo Observatório do Clima ressalta a estimativa de que 73,7% das emissões de dióxido de carbono em 2021 foram oriundas dos sistemas alimentares, sendo 78% somente da cadeia produtiva de bovinos de corte (SEEG, 2023). Este relatório evidencia a importância de modificações efetivas nos sistemas alimentares brasileiros para mitigação das mudanças climáticas. O meio ambiente e a sustentabilidade tornam-se, portanto, uma questão sociológica desde as ações antropogênicas e suas consequências.
Os impactos da relação entre mudanças climáticas e sistemas alimentares podem ser analisados sob diferentes óticas. No âmbito regional, as consequências se mostram mais rigorosas em regiões de clima tropical e subtropical, localizadas principalmente no sul global e em locais de maior vulnerabilidade socioeconômica. Essas regiões são, muitas vezes, como no caso do Brasil, produtoras de alimentos de relevância internacional, onde os regimes de chuvas, calor excessivo e pragas afetam diretamente o abastecimento. Já é possível observar a queda de 21% da produtividade agrícola global, desde 1961, devido ao clima.
Em consequência, é possível observar um maior desequilíbrio dos fatores econômicos e sociais, trazendo à tona mazelas já amplamente conhecidas. A instabilidade da produção por conta dos eventos climáticos extremos faz com que os preços dos alimentos aumentem e as populações, já vulnerabilizadas, passem por dificuldade em adquirir alimentos in natura. Assim, a comida de verdade é substituída por produtos ultraprocessados, colocando a segurança alimentar e nutricional da população cada vez mais em risco, ainda mais quando levado em consideração critérios de raça, gênero e classe.
Figura 1 – Relação Mudanças Climáticas e Sistemas Alimentares
O ano de 2024 foi marcado por eventos extremos no Brasil, como as constantes queimadas na região amazônica e a seca prolongada nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Norte, além das enchentes e inundações no Sul do país. No caso dos incêndios florestais estima-se um prejuízo de R$ 14,7 bilhões de reais, segundo a CNA (Confederação Nacional da Agricultura). Foram queimadas áreas de pecuária de corte e culturas temporárias e permanentes, provocando perda de qualidade de solo em uma área total de 2,8 milhões de hectares.
Especificamente, o estado do Rio Grande do Sul passou por um dos maiores desastres climáticos já registrados. Foram mais de 800 mm de chuvas em poucos dias, afetando diversas regiões. Mais de 5.000 km² foram atingidos, colocando 95 municípios em situação de calamidade e outros 323 em estado de emergência, totalizando 84% dos municípios do estado. Foram impactadas 2,398 milhões de pessoas, representando 22% da população total, além de 31 desaparecidos e 182 mortos. Muitos desses municípios se encontram em regiões interioranas, produtoras de alimentos, onde perdas de produção foram registradas de forma direta e indireta devido a enxurradas, deslizamentos e alta umidade no solo. Um total de 48.674 produtores de grãos perderam suas produções de soja, milho, arroz, feijão, canola e aveia; na área da fruticultura, 8.381 produtores foram afetados; e na olericultura, 8.049 produtores tiveram perdas, segundo a Emater. Já foram disponibilizados R$ 97 bilhões pelo Governo Federal para a reconstrução do estado.
Figura 3 – Impactos das cheias na zona rural do Rio Grande do Sul
Infelizmente, as projeções futuras não são as melhores. Pesquisadores diagnosticam que pontos de não retorno estão sendo alcançados em diversos âmbitos (Zurek et al., 2022; Rosenzweig et al., 2020). Outros estudos apontam que, devido ao contexto atual, cada vez mais pessoas correm o risco de passar fome em função das mudanças climáticas (Fanzo, 2023). Diante desse cenário, são necessárias modificações nos sistemas de produção, principalmente agropecuários, para que seja possível mitigar os efeitos das mudanças climáticas. As soluções propostas são das mais diversas, podendo ser voltadas à inserção de novas tecnologias, técnicas conservacionistas ou práticas agroecológicas, sendo necessário um esforço global para encontrar respostas locais.
Com o olho no futuro: a necessidade de um pacto global
Diante do cenário de mudanças climáticas, foram estabelecidos novos parâmetros de desenvolvimento, como um pacto global para definir e direcionar seus novos rumos. Assim, foi realizada a assinatura dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) por 193 países, no ano de 2015, em Nova York. Também conhecida como Agenda 2030, a iniciativa é pautada em 17 ODS e 169 metas, a serem atingidas até o ano de 2030. Seus princípios são baseados na sustentabilidade social, ambiental e econômica de maneira integrada e indivisível (ONU, 2015). Pesquisadores afirmam que, para que sejam alcançados seus objetivos e metas, é necessária a realização da transição para sistemas alimentares sustentáveis, por sua relevância não somente para seu objetivo específico, ODS 2 – Fome Zero e Agricultura Sustentável, mas também como um fator transversal aos demais.
Cada um dos países signatários tem autonomia para definir as formas de implementação em seus contextos particulares. Entretanto, no caso do Brasil, não houve políticas públicas formuladas de maneira explícita para a implementação da Agenda, sendo possível observar diversas descontinuidades no que diz respeito aos seus objetivos e metas, segundo relatórios de organizações da sociedade civil (Relatório Luz, 2024), com diferenças entre os governos ao longo do período. Ainda assim, é possível observar que existe engajamento em implementar a Agenda e direcionar o desenvolvimento para a sustentabilidade.
Nesse sentido, baseadas nos estudos de Hrabanski e Le Coq (2022), podem ser citadas três vertentes diferenciadas que estão sendo colocadas em prática: Agricultura Climaticamente Inteligente, Soluções Baseadas na Natureza e a Agroecologia. Cada uma delas compreende a transição para sistemas alimentares de formas distintas, mas todas podendo estar vinculadas ao ODS 2 – Fome Zero e Agricultura Sustentável e seu impacto perante as mudanças climáticas. Todas vem ganhando fôlego no meio acadêmico nas últimas décadas, principalmente a Agroecologia.
É possível observar, nas vertentes apresentadas, que existem diferentes caminhos a serem percorridos para mitigar os efeitos das mudanças climáticas nos sistemas alimentares e torná-los mais sustentáveis. Podem ser levados em consideração tanto produtores que visam o mercado externo quanto aqueles que atuam para o abastecimento interno. Há produções que apostam na tecnologia e outras que resgatam manejos milenares. Esse amplo panorama evidencia que as possibilidades existem, e são muitas. Depende da conscientização dos atores envolvidos, nas esferas públicas e privadas, diante da emergência climática e da necessidade de transição para sistemas alimentares sustentáveis, escolher o caminho a ser percorrido.
No âmbito brasileiro existem esforços atuais para chegar às metas de pactos globais, como as decididas no Acordo de Paris, reafirmadas a cada Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP). Em 27 de outubro de 2023, foi apresentado pelo Brasil a Primeira Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) onde está descrito o comprometimento em reduzir 48,4% das emissões líquidas de gases de efeito estufa em 2025, 1,32 GtCO2e, com relação ao ano de 2005. Já para 2030, há o compromisso com a meta absoluta de emissões líquidas de gases de efeito estufa de 53,1% em relação a 2005, 1,20 GtCO2e.
Mais recentemente, em novembro de 2024, houve a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP29) da UNFCCC, realizada em Baku, Azerbaijão, onde Geraldo Alckmin, vice-presidente da República e o Ministro de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, apresentaram novas metas. Primeiramente foi pensado a redução de 59%, mas acabou sendo firmado o compromisso em reduzir 67% das emissões de gases de efeito estufa até o ano de 2035 segundo a nova Contribuição Nacionalmente Determinada.
As expectativas agora estão voltadas à próxima COP30, em 2025, que será sediada na cidade de Belém, estado do Pará, colocando ainda mais em evidência a região amazônica. As negociações sobre as ações de mitigação e financiamento climático são atravessadas pelas guerras atuais e extremismos políticos, o que desvia o olhar do que realmente deveria ser levado em consideração para termos sistemas alimentares mais sustentáveis e segurança alimentar e nutricional em um mundo imerso em mudanças climáticas.
Sergio Schneider é professor Titular de Sociologia do Desenvolvimento Rural e Estudos da Alimentação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq, PQ1B. E-mail: schneide@ufrgs.br – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4353-6732
Marcela Donini de Lemos é professora de Sociologia e Doutoranda no programa de Pós-graduação em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mais: sociomarceladonini@gmail.com – ORCID: https://orcid.org/0009-0003-4788-0260
Referências
FANZO, Jessica. Achieving Food Security Through a Food Systems Lens. In: Béné, C., Devereux, S. (eds) Resilience and Food Security in a Food Systems Context. Palgrave Studies in Agricultural Economics and Food Policy. Palgrave Macmillan, Cham. (2023). https://doi.org/10.1007/978-3-031-23535-1_2.
GTSC A2030. VIII Relatório Luz da Sociedade Civil Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável Brasil. Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, Brasil, 2024.
HRABANSKI, Marie; LE COQ, Jean François. Climatisation of agricultural issues in the international agenda through three competing epistemic communities: Climate-smart agriculture, agroecology, and nature-based solutions. Environmental Science & Policy, v. 127, p. 311-320, 2022. https://doi.org/10.1016/j.envsci.2021.10.022
IPCC, 2023: Summary for Policymakers. In: Climate Change 2023: Synthesis Report. Contribution of Working Groups I, II and III to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Core Writing Team, H. Lee and J. Romero (eds.)]. IPCC, Geneva, Switzerland, pp. 1-34, doi: 10.59327/IPCC/AR6-9789291691647.001
MIRZABAEV, Alisher et al. Severe climate change risks to food security and nutrition. Climate Risk Management, v. 39, p. 100473, 2023.
MOORE, J.W. Antropoceno ou Capitaloceno. Natureza, história e crise do capitalismo, organizada. São Paulo: Elefante, 2022.
SEEG. Estimativa de gases de efeito estufa dos sistemas alimentares no Brasil. Outubro, 2023. Disponível em <https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2023/10/SEEG-Sistemas-Alimentares.pdf>
STEFFEN, Will et al. The trajectory of the Anthropocene: the great acceleration. The anthropocene review, v. 2, n. 1, p. 81-98, 2015.
UNESCO. O valor da água. Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos 2021. Colombella, Perúgia, Itália, 2021.
ZUREK, Monika; HEBINCK, Aniek; SELOMANE, Odirilwe. Climate change and the urgency to transform food systems. Science, v. 376, n. 6600, p. 1416-1421, 2022.
Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil
https://diplomatique.org.br/como-as-mudancas-climaticas-afetam-os-sistemas-alimentares/