Como melhorar a vida dos agricultores familiares?

Por José Graziano da Silva | 25/07/2023

A Agricultura familiar vem passando por grandes transformações nos últimos anos no Brasil. Infelizmente não dispomos de informações atualizadas a respeito desde o censo agropecuário de 2017. Certamente muita coisa mudou desde então e vale a pena especular um pouco a respeito das tendências atuais. 

 Inicialmente é preciso distinguir pelo menos 2 grandes grupos entre os 3,9 milhões de estabelecimentos familiares registrados no último censo agropecuário. O primeiro, aqueles enquadrados no PRONAF B, ou seja, os produtores familiares que têm renda bruta anual até 20 mil reais, ou seja, menos de 1,3 salário mínimo mensal. Esse grupo, que vamos chamar de agricultores familiares de menor renda (AF-), representava 2,7 milhões de estabelecimentos no censo de 2017, mais da metade dos 5 milhões de estabelecimentos recenseados no país. Os AF- possuíam 12% da área total e respondiam por apenas 3% do valor da produção bruta. No entanto, ocupavam 6,7 milhões de pessoas, o que representa 44% do total de ocupados registrados em 2017. Trata-se, portanto, de um grupo que embora aporte uma pequena contribuição na produção, tem um papel central na ocupação das pessoas que trabalham no mundo rural. Por isso vamos considerá-los mais como uma “casa de moradia da família rural” que um estabelecimento agropecuário no sentido tradicional. A distribuição regional dos AF- mostra uma concentração na região Nordeste que também abriga quase a metade de toda a agricultura familiar do país. Como a região foi afetada por secas rigorosas nesses 5 anos que nos separam do último censo, assim como na região Sul, pode-se esperar que seu número venha diminuindo significativamente.

O segundo grande grupo de agricultores familiares é o dos enquadrados no PRONAF V com limite de renda bruta de até 360 mil reais por ano (menos de 2,3 salários mínimos mensais), que poderíamos chamar de “remediados” (AF+-). Em 2017, eram cerca de 1,1 milhão de estabelecimentos, 22% do total, possuíam 11% da área, geravam 20% do valor da produção e respondiam por 22% da mão de obra ocupada. 

Havia ainda outro pequeno contingente de 26 mil estabelecimentos familiares no Censo de 2017 que superavam o limite superior de renda do PRONAF de 360 mil reais por ano, que chamaremos de AF+. Eles representavam apenas 1% do total de estabelecimentos recenseados bem como da mão de obra ocupada, mas aportavam 4% do valor da produção, o que é significativo considerando que o total da contribuição da agricultura familiar era de 23%. Os AF+ são produtores bastante tecnificados, usando insumos químicos (defensivos e fertilizantes) como os estabelecimentos não-familiares, com elevados índices de produtividade da terra e do trabalho, pelo que já foram chamados de “agronegocinhos”. São os AF+ e parte dos AF+- que mais se beneficiam das atuais políticas agrícolas de crédito rural subsidiado que remontam ao século passado!  

É fundamental destacar que esses 2 grandes grupos AF- e AF+- vinham apresentando tendências de crescimento opostas quando se compara 2017 com o censo anterior de 2006:  os AF- mostraram uma taxa de crescimento negativa de quase -2% a.a.; mas os AF+- tiveram uma altíssima taxa de crescimento de quase 3% ao ano, compensando em parte a queda da agricultura familiar como um todo teve um crescimento negativo de quase -1% a.a. no mesmo período. É possível que parte desse crescimento dos AF+- se deva ao “sucesso” da política agrícola de crédito rural altamente subsidiado no período, mas infelizmente não se sabe que proporção deles realmente “subiram de patamar” de renda nesse período intercensitário. No mesmo sentido, não se sabe se a queda no número de estabelecimentos AF+ entre os censos se deve ao fato de terem “subido ou descido” de patamar…

Se projetarmos os dados de 2017 para 2023 usando essas mesmas taxas de crescimento do período intercensitário, vamos obter que o total de agricultores familiares teria se reduzido em cerca de 200 mil;  os AF- em quase 300 mil ; e os AF+- aumentariam em mais de 150 mil. Mas o que queremos destacar é  que,  se confirmada essas mesmas tendências nos últimos 5 anos (2017/23), pode ter acontecido uma redução expressiva de cerca de 600 a 900 mil de pessoas ocupadas na agropecuária familiar, considerando-se a mesma média de pessoas por estabelecimento existente em 2017. Nada indica que essa tendência vá se reverter “naturalmente” nos próximos anos, muito pelo contrário!

Essa queda do número de pessoas ocupadas na agricultura familiar – em particular do segmento mais pobre, é ainda mais preocupante do ponto de vista das políticas públicas. Primeiro porque são pessoas que não tem um nível de qualificação que lhes facilite encontrar melhores postos de trabalho no mundo urbano. Seria preciso um grande esforço de qualificação da parte jovem dessa população que deixaria o campo para habilitá-los a encontrar um trabalho digno. 

Mas não é apenas um problema da qualificação: esses migrantes rurais teriam que encontrar uma nova moradia urbana, com pelo menos acesso às condições básicas de sobrevivência que já possuem. E, sem entrar em detalhes, os custos de melhorar as atuais moradias rurais é muito menor do que construir novas moradias na cidade para essa população, ainda mais porque estamos encontrando cada vez mais dificuldades de oferecer moradias dignas para a população que já mora nas cidades. Ou seja, se não queremos que essa população rural hoje precariamente ocupada nos AF- venha a engrossar as nossas favelas urbanas, será preciso implementar políticas públicas para que fixem essa população no meio rural, dando-lhes uma condição de vida digna.

A ameaça dos próximos anos é que tenhamos um novo fluxo de êxodo rural dessa população mais pobre do campo à medida que melhorarem as condições econômicas de crescimento econômico do país buscada pelo atual governo Lula. Seria o que poderíamos chamar de “uma nova questão agrária de sinal trocado”, ou seja, uma liberação acelerada de mão de obra de baixíssima produtividade retida nos segmentos mais pobres da AF que não encontrará ocupação digna nos centros urbanos. Trata-se, portanto, de formular políticas públicas diferentes para esses segmentos de pobres rurais ameaçados de perder sua casa de moradia. 

Faço questão de dizer aqui que não se trata de buscar novas políticas de estímulo produtivo para esse segmento. Não que eles não tenham capacidade de produzir. As experiências avaliadas pelo IPEA do Programa Inclusão Produtiva Rural do Brasil Sem Miséria levadas a cabo no governo Dilma, mostram resultados positivos quando esses agricultores familiares pobres são assistidos por programas de extensão rural focalizados, além de incluídos no CadÚnico para conseguir acesso a outros programas do governo federal. Mas aos programas que ainda mantém um “viés agrícola” no sentido de que procuram basicamente estimular esses pequenos produtores (em particular as mulheres) a terem uma horta ou uma produção de subsistência para melhorar a sua própria alimentação e venderem os excedentes, preferencialmente em mercados cativos de compras públicas como o PAA ou para a merenda escolar nos municípios.

 Chegou a hora de ter um programa para “urbanizar o campo” tendo como carro chefe os investimentos em habitação rural cujo objetivo seja simplesmente a melhoria das condições de vida dessa população para que ela possa continuar a residir no campo. Obviamente terá que ser considerado como facilitar o acesso a saúde e educação em áreas periurbanas próximas através de melhoria nos transportes públicos, bem como levando os serviços básicos de água, luz e internet que se tornou um dos elementos básicos para os jovens continuarem morando nas áreas rurais.

Antes que me acusem de estar querendo fazer apenas mais uma política social para uma parte desse contingente de agricultores pobres, gostaria de recordar que um dos elementos importantes do dinamismo das áreas rurais hoje é a criação de empregos não agrícolas tanto no campo, como nas áreas urbanas próximas. E são esses jovens filhos de agricultores familiares pobres que, se receberem uma capacitação adequada, podem ser os novos empregados rurais não-agrícolas, especialmente as mulheres jovens. Trata-se em última instância de buscar um segmento de estabelecimentos de moradores rurais que não trabalham todos na agricultura ou que pelo menos onde a produção agropecuária não é o determinante fundamental de sua renda familiar. E para esse grupo que cresce a cada dia, não há políticas públicas ainda definidas. É isso que precisamos com urgência neste momento, entre outras tantas urgências que o país enfrenta.

Ter crédito para investimento não para a produção, mas para melhorias na moradia, crédito de consumo não para a compra de insumos agropecuários, mas para melhorar as condições de consumo dessa população rural, são alguns dos parâmetros básicos dessa nova política que romperia com a nossa tradição agrária de pensar como agrícola essa parte do novo rural que temos hoje. Ou seja, precisamos deixar de tratar uma parte desse segmento da agricultura familiar pobre como produtores agrícolas potenciais, procurando facilitar o acesso aos mesmos pacotes de insumos da revolução verde com o que conseguiremos – quando muito – se tivermos sucesso, transformá-los em mais alguns membros do “agronegocinho”.

José Graziano da Silva é Diretor-Geral do Instituto Fome Zero

Publicado no UOL
https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2023/07/25/como-melhorar-a-vida-dos-agricultores-familiares.htm