Temos 21,1 milhões de famélicos em um país cuja produção agrícola bate recordes consecutivos; Brasil tem também o segundo mais alto índice de crescimento de milionários, atrás apenas da China
Por Luís Eduardo Assis no Estado de S.Paulo | 27/08/2023
Dois relatórios divulgados recentemente elucidam com muita clareza o paradoxo em que temos chafurdado nos últimos anos. A FAO, órgão ligado à ONU, publicou um alentado documento (The State of Food Security and Nutrition in the World, 2023) em que avalia a evolução do estado nutricional da população de praticamente todos os países do mundo. O Brasil saiu mal na foto.
O porcentual da população brasileira com insegurança alimentar saltou de 18,3% no período 2014-2016 para 32,8% nos anos 2020-2022. Ou seja, quase um terço da população não se alimenta suficientemente. Estamos falando de 70,3 milhões de pessoas, 33 milhões a mais do que na medição anterior.
O porcentual para o Brasil é bem maior que, por exemplo, o atribuído à África do Sul, 20,3%, país com renda per capita 11% menor que a brasileira. A parcela de brasileiros com insegurança alimentar severa (definida no documento como ausência de refeições por um dia ou mais) passou de 1,9% para 9,9%. Temos 21,1 milhões de famélicos em um país cuja produção agrícola bate recordes consecutivos.
Mas há também notícias boas — só para alguns. Nessa foto o Brasil aparece sorrindo, com todos os dentes, de bem com a vida. Relatório de 2023 do banco suíço UBS (Global Wealth Report 2023) mostra que entre 2021 e 2022 fomos o país onde mais cresceu o número de milionários — literalmente, pessoas com patrimônio superior a US$ 1 milhão. Passamos de 293 mil em 2021 para 413 mil felizardos no ano passado.
No mundo, a quantidade de milionários caiu 5,6% nesses últimos dois anos. Aqui subiu 41%. Na estimativa do banco, a parcela de 1% dos mais ricos brasileiros detém 48,3% da riqueza total da população, o maior porcentual dentre todos os países analisados (na França e no Reino Unido o número é 20%). O índice de Gini para a distribuição da riqueza — o mais comum é falar desse índice para a distribuição de renda — alcançou 88,4% no ano passado, o maior entre os países analisados.
O contraste entre os dois relatórios é vexatório e desenha o pântano em que nos metemos. A estagnação da economia, a baixa qualidade do gasto público e o uso exclusivo da Selic como instrumento de combate à inflação transformaram o País em uma usina de iniquidades. É preciso entender que ou vamos todos juntos ou não chegaremos a lugar algum.
Luís Eduardo Assis é economista e ex-diretor de Política Monetária do Banco Central
Publicado no Estado de S.Paulo
https://www.estadao.com.br/economia/luis-eduardo-assis/esta-ruim-para-quase-todos/