Concentração de renda no país dá sinais de queda, mostra estudo

Parcela detida pelo 1% mais rico vai na contramão global e recua de 20,3% do total em 2019 para 19,7% em 2022, segundo projeto de Piketty

Por Marsílea Gombata no Valor Econômico | 06/03/2024

A concentração de renda pode ter caído no Brasil. Dados do projeto World Inequality Database (WID) indicam que a concentração da renda nacional pelo 1% e pelos 10% mais ricos pode ter diminuído nos últimos anos. Ainda que sejam dados parcialmente atualizados e necessitem de medidas complementares para análise mais ampla, os números apontam para a redução da desigualdade entre os mais ricos e a parcela mais pobre, que corresponde à maior parte da população.

Segundo dados do WID, projeto coordenado por economistas como Thomas Piketty, a concentração da renda nacional pelo 1% mais rico no Brasil passou de 20,3% em 2019 para 19,7% em 2022, na contramão da média mundial, que foi de 19,2% para 19,8%.

A parcela detida pelos 10% mais ricos, por sua vez, foi de 57,1% para 56,8%, enquanto a dos 50% mais pobres passou de 9,7% para 8,5% no período.

Apesar de, em um primeiro momento, parecer que houve queda da concentração também pelos mais pobres, o que ocorreu foi uma redução brusca com a pandemia – levando os 50% mais pobres a deter 8% da renda nacional em 2020 -, com posterior recuperação em relação ao patamar pós-covid-19. Esse fenômeno também ocorreu em outros países.

Já as camadas mais altas no Brasil passaram a concentrar mais renda em um primeiro momento pós-pandemia, e depois viram esse percentual cair.

No Chile, vizinho que disputa com o Brasil a posição de mais desigual na América do Sul, o 1% mais rico detinha 24,7% em 2019 e passou a deter 23,7% em 2022.

A parcela detida pelos 10% mais ricos passou de 60,5% para 59% no período. Já a dos 50% mais pobres foi de 6,8% para 6,3% entre 2019 e 2022.

Nos EUA, a total detido pelo 1% passou de 19% para 20,9% entre 2019 e 2022, e a dos 10% foi de 45,7% para 48,3%. A concentração pelos 50% mais pobres caiu de 13% para 9,8%.

Na China, o 1% mais rico detinha 14,7% da renda nacional em 2019 e passou a concentrar 15,7%. Os 10% também viram sua fatia crescer, de 42,4% para 43,4%, enquanto a metade mais pobre viu a sua parcela reduzir de 13,3% para 13,1%.

Até mesmo a França, menos desigual que os casos citados, viu a concentração de renda aumentar, com o detido pelo 1% mais rico indo de 11,4% para 12,7%. A dos 10% mais ricos foi de 34% para 34,8%. A dos 50% mais pobres passou de 19,8% para 19,6%.

Os dados atualizados recentemente são os primeiros que possibilitam mensurar o impacto pós-pandemia, ainda que de forma inicial e com limitações devido ao timing diferente de divulgação das cifras oficiais de cada país.

“A diminuição da concentração de renda entre os 10% mais ricos sugere uma melhora na qualidade de distribuição da renda nacional. Mas é necessário analisar para além do top 10% para avaliar a desigualdade de maneira mais completa”, afirma Ignacio Flores, pesquisador do WID responsável pela América Latina.

Flores argumenta que a corroboração dessa tendência através da concentração no 1% mais rico e a observação do índice de Gini reforçam a evidência de avanço em direção à menor desigualdade.

Segundo dados divulgados no meio do ano passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o índice de Gini passou de 0,544 em 2021 para 0,518 em 2022, o menor patamar da série história. O índice vai de 0 a 1. Leituras mais próximas de 1 indicam maior desigualdade.

Pedro Ferreira de Souza, sociólogo e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), lembra que 2020 foi um ano atípico por causa da covid-19 e que é preciso cuidado ao se ler os dados relativos ao período.

“A última publicação do Sistema de Contas Nacionais do Brasil foi de 2021, então os dados [apresentados pelo WID] fazem extrapolação”, diz, ao acrescentar que é necessário se levar em conta cifras sobre de renda por transferência, como o Auxílio Emergencial. “O grau de transferências aumentou de 0,5% do PIB para cerca de 6% a 7%”, lembra.

A expansão do Bolsa Família e a melhora de sua gestão foram passos importantes na direção da redução da desigualdade, diz. Uma outra frente nesse caminho seria a reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional.

“[A reforma] ajuda a corrigir distorções entre municípios e entre famílias pobres e ricas, com efeito positivo sobre redução da desigualdade, ao uniformizar alíquotas e distribuir recursos”, diz.

O próximo passo importante, argumenta, seria uma reforma tributária do imposto de renda, com tributação de renda e patrimônio, aumentando o que é renda tributável e diminuindo isenções. Ajustes do IR para empresas também serão necessários, acrescenta.

“Reduzir a desigualdade de renda demandaria várias coisas, e não há a menor chance de reduzi-la no curto prazo”, diz. “Pensar que em cinco anos vamos reduzir o Gini em 20%, 30%, 40% é impossível. O importante é dar pequenos passos, todos na mesma direção.”

Nesse sentido, Flores argumenta que, além da implementação de reformas tributárias progressivas que “assegurem que os mais ricos contribuam justamente ao fisco”, é necessário o fortalecimento dos sistemas de seguridade social para proteger os mais vulneráveis, investimento em educação e formação profissional para facilitar a mobilidade social.

Ele acrescenta ainda a necessidade de promoção de políticas que facilitem a criação de empregos dignos e melhora dos salários de trabalhadores de baixa renda.

Marcelo Medeiros, professor da Universidade Columbia, reforça que a redução da desigualdade deve ser pensada de maneira mais holística, do ponto de vista de políticas públicas.

“Não se cria um país tão desigual como o Brasil a partir de um pequeno conjunto de fatores. Pelo mesmo motivo, não se vai reduzir a desigualdade com um conjunto limitado de políticas”, afirma Medeiros, que é autor do livro “Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade” (Companhia das Letras).

“Toda política tem efeito sobre a desigualdade – do controle da inflação à assistência social. Toda política tem que ser desenhada tendo a desigualdade na mira. Não será somente a educação nem somente tributação ou qualquer outra panaceia. Vai dar muito trabalho, vai custar muito caro, vai consumir muito capital político”, conclui.

Publicado no Valor Econôico
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2024/03/06/concentracao-de-renda-no-pais-da-sinais-de-queda-mostra-estudo.ghtml