Diálogos Socioambientais: Segurança Alimentar

  • Tempo de leitura:18 minutos de leitura

Grupo de Acompanhamento e Estudos de Governança Ambiental (GovAmb) | Abril 2024

Uma questão estrutural

José Raimundo Sousa Ribeiro Junior, editor deste volume da Revista Diálogos Socioambientais 

De acordo com os dados disponibilizados pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) a produção atual de alimentos é mais do que suficiente para satisfazer as necessidades alimentares de todos os habitantes do mundo. Apesar disso, entre os triênios de 2004-2006 e 2020-2022 a quantidade de pessoas em situação de fome (insegurança alimentar moderada e grave) no mundo saltou de aproximadamente 1,6 bilhões de pessoas (21,9% da população mundial) para cerca de 2,3 bilhões de pessoas (29,5% da população mundial). Esses e outros dados explicitam que a fome não é um fenômeno pontual, transitório ou extraordinário. Pelo contrário, eles nos fazem refletir sobre como a fome é um fenômeno estrutural. 

No mesmo intervalo coberto pelos dados acima, pudemos observar no Brasil duas tendências opostas em relação à evolução da fome no país. Entre 2004 e 2013, houve uma redução da proporção de pessoas em situação de fome no país, que passou de 21,5% para 10,3%. Essa redução, que não foi desprezível, foi conquistada mediante uma política alimentar estruturada em torno do Programa Fome Zero e do Programa Bolsa Família (carro-chefe do primeiro), assim como de políticas econômicas mais amplas como a valorização do salário-mínimo. Esse esforço tirou o Brasil do mapa da fome da ONU, algo inédito na história do país. No entanto, é preciso destacar que a ONU utiliza uma medida bastante restritiva (prevalência de desnutrição crônica) na elaboração do mapa. Além disso, é preciso reconhecer os limites de uma política que, em consonância com os preceitos colocados por organizações internacionais como o Banco Mundial, consegue fazer a gestão da fome por meio de políticas públicas, mas não é capaz de erradicá-la. 

A segunda tendência, por sua vez, evoluiu no sentido inverso e apresentou um crescimento expressivo da fome e do risco de fome no Brasil. Mesmo antes da pandemia, um projeto ultraliberal e autoritário reverteu os resultados obtidos em anos anteriores levou a um aumento da quantidade de domicílios sofrendo com a privação de alimentos no país. Em 2018, a proporção de pessoas em situação de fome já tinha passado para 15,9% e, dada a condução desastrosa do país durante a pandemia essa situação tronou-se ainda pior. Em 2022, mais de 30% da população brasileira estava em situação de fome e outros 30% em risco de fome. 

Por tudo isso, é importante reforçar que a fome é um fenômeno estrutural. Não apenas por conta de sua magnitude, mas porque historicamente ela foi e continua sendo um elemento central da desestruturação de outros modos de vida, assim como da estruturação e reestruturação das relações sociais capitalistas. A fome e o risco de fome aceleram e intensificam os processos de expropriação, pois as pessoas que estão submetidas à privação de alimentos estão muito mais sujeitadas a ter de se desfazer de seus bens para continuar sobrevivendo. A fome e o risco de fome impelem ao trabalho e fazem com as pessoas se submetam às piores condições laborais por remunerações irrisórias explicitando assim coerção muda das condições econômicas. 

O sentido de afirmar que a fome é produzida pela combinação de variados processos de expropriação e exploração inerentes à reprodução social capitalista não é o de fornecer uma resposta simples e definitiva para a compreensão desse fenômeno. Pelo contrário, o objetivo é identificar os fundamentos da crise alimentar em que estamos inseridos (muito desigualmente inseridos, é verdade), para que possamos nos contrapor a soluções ilusórias ou ideológicas que ao invés de erradicarem a fome, reiteram e reforçam as relações sociais responsáveis por sua existência. Neste sentido, somente um projeto político emancipador que reivindica a soberania alimentar pode nos livrar da fome. 

Por tudo isso, o presente número da Revista Diálogos Socioambientais é publicado em um momento muito pertinente. Passados os momentos mais críticos da pandemia de Covid 19 e a comoção gerada pelo crescimento intenso e acelerado da fome nesse período, parece que adentramos aquilo que cedo foi anunciado como o “novo normal” ao qual teríamos que nos acostumar. Debruçando-se sobre diferentes objetos e a partir de diferentes perspectivas teórico-metodológicas os textos reunidos neste número trazem uma amostra do rico debate que se desenrola em diversos campos do saber acerca da fome e de outros problemas relativos à alimentação. 

Conjuntura 

Livia Cangiano Antipon parte da indagação acerca da possibilidade de o circuito inferior da economia urbana amparar as pessoas em situação de fome nas cidades. Interpretando a realidade vivida pela população mais empobrecida de São Luís (MA), a autora aponta para a conformação e densificação de uma economia organizada para a “sobrevivência”, comum nas metrópoles do Sul Global. Dentro desse circuito da economia, as atividades relacionadas à alimentação ganham destaque, como demonstra a difusão e adensamento no centro histórico de São Luís de restaurantes, bares, ambulantes com carrinhos e caixas de isopor, vendinhas, mercados e quiosques, que servem primordialmente a uma classe trabalhadora precarizada e faminta. Além disso, a autora identifica que nas ocupações urbanas deste recorte espacial é recorrente à preparação de alimentos a serem comercializados nas redondezas, explicitando assim como nesses casos o trabalho de alimentar a cidade se concretiza a partir da luta pela moradia popular. 

Yamila Goldfarb e Osvaldo Aly Junior trazem uma crítica contundente ao projeto de inserção do Brasil na economia internacional por meio do crescimento e fortalecimento do agronegócio, indicando que este é “um modelo que planta fome”. Em sua análise os autores indicam que nas últimas décadas as políticas agrícola e fundiária do governo federal tiveram como principal objetivo elevar exportação de commodities, o que não apenas favoreceu os atores hegemônicos do agronegócio como resultou no aumento do desmatamento e grilagem de terras públicas. Para além, das consequências socioambientais destacam que especialização produtiva agroexportadora, aliada às políticas de redução da regulação estatal no abastecimento de alimentos, tornou o país vulnerável às oscilações dos preços dos alimentos no mercado mundial, sendo um dos fatores responsáveis pelo aumento exponencial da fome e do risco de fome. Por fim, argumentam que somente por meio de uma Reforma Agrária que altere a estrutura fundiária altamente concentrada é possível o Brasil superar a fome e atingir a soberania alimentar. 

Thiago Lima e Julia Rensi analisam as desigualdades alimentares internacionais, chamando atenção para o fato de que entre 2015 e 2022 a insegurança alimentar moderada e grave cresceu em todas as regiões do globo, com exceção da América do Norte e Europa. Dentro deste quaro, os autores explicitam as disparidades entre a proporção de pessoas em situação de insegurança alimentar moderada e grave no campo e na cidade e concluem que, novamente com exceção do que ocorre nos países da América do Norte e Europa, são as pessoas que vivem no campo que estão mais sujeitadas à fome. As disparidades entre os índices de insegurança alimentar moderada e grave no mundo é explicada tanto pelo fato dos países de maior desenvolvimento estarem melhor preparados para enfrentares crises (como aquela provocada pela pandemia de Covid-19), como pelo fato de os países de menor desenvolvimento serem aqueles que mais dependem da importação de alimentos básicos. Deste modo, ou autores concluem que a compreensão desta realidade passa necessariamente pela consideração da hierarquia de poder das relações internacionais. 

Dirce Maria Lobo Marchioni invoca a necessidade de transformação dos sistemas alimentares, uma vez que esses são identificados como responsáveis por graves ameaças globais à saúde humana e planetária. Por um lado, a autora descreve um cenário complexo, no qual mesmo tempo em que cresce a insegurança alimentar, verifica-se um aumento em níveis epidêmicos de problemas como a obesidade e doenças não transmissíveis relacionadas com a alimentação. Ou seja, os sistemas alimentares mostram-se incapazes de oferecer uma dieta saudável para a população. Por outro lado, estes mesmos sistemas alimentares provocam danos ambientais diversos, entre eles aqueles que contribuem com as mudanças climáticas. Neste sentido, a autora conclui que é necessário o envolvimento de todos e políticas públicas que promovam as ações necessárias. 

Lilian Rahal, Erick Brigante Del Porto e Márcia Muchagata tratam da retomada das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional a partir da mudança na Presidência da República em 2023 e do desafio de novamente tirar o Brasil do “Mapa da Fome” da Organização das Nações Unidas. Primeiramente, o artigo se debruça sobre a rápida e intensa desestruturação de um trabalho iniciado com a Constituição de 1988 e intensificado durante os anos 2000. Esse desmantelamento, que atingiu políticas de proteção social ligadas direta e indiretamente à alimentação, foi acompanhado de mudanças na estrutura de gastos do governo federal (a Emenda Constitucional 95 ou chamado “Teto de Gastos”) o que impede que o atual governo destine o mesmo volume de recursos que estiveram disponíveis para essas e outras políticas nos mesmos patamares crescentes do período de 2003 a 2014. Frente a essa realidade, destacam que na tentativa de superar esse conjunto de desafios, foi lançado em 2023 o Brasil sem Fome com ações de combate à fome e à pobreza envolvendo 24 ministérios e que têm o objetivo comum de garantir que o Brasil saia definitivamente do Mapa da Fome. 

O artigo de Ricardo Abramovay tem como objeto lugar das carnes no sistema agroalimentar global. Partindo da divergência em torno da Declaração de Dublin (resultado de uma conferência em que reconhecidos pesquisadores defenderam a importância dos produtos animais para o consumo e para os serviços ecossistêmicos) o autor aponta para os riscos da contaminação do debate sobre o sistema agroalimentar pelo ambiente da polarização. Para Abramovay, o maior desafio que enfrentamos atualmente remete à superação da monotonia dos sistemas agroalimentares que se manifesta na perda de diversidade de cultivos agrícolas, na produção animal e na importância crescente dos ultraprocessados nas dietas. Ecoando as palavras do mais importante protagonista da Revolução Verde (Norman Borlaug), o autor defende uma redução da quantidade de proteínas da dieta, a realização da pecuária bovina em áreas de pastagens naturais e a busca por caminhos que regenerem os serviços ecossistêmicos nas áreas de pastagem da Amazônia (métodos regenerativos). Assim, segundo Abramovay, os mercados consumidores receberiam a sinalização de que a diversidade do que se come é mais importante que a ingestão ilimitada de produtos animais. 

Luiz Beduschi Filho e María Ignacia Hadad defendem a necessidade de um enfoque integral na transformação dos sistemas agroalimentares, que empodere as comunidades e busque a equidade nas decisões para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, especialmente àquele que remete à erradicação da fome. Os autores reconhecem que dada a disponibilidade global de alimentos, a persistência dos níveis atuais de insegurança alimentar revela um problema estrutural. Tomando como recorte espacial da análise a América Latina e o Caribe, indicam que os eventos climáticos extremos têm complicado ainda mais o acesso de comunidades vulneráveis a alimentos saudáveis. Neste sentido, defendem a atuação da FAO no sentido de impulsionar sistemas agroalimentares mais eficientes, inclusivos, resilientes e sustentáveis. 

Engajamento 

O artigo de Adriana Salay Leme nos convida a pensar as cozinhas comunitárias e solidárias, como equipamentos que questionam a lógica que separa a assistência e dos direitos. Dada a diversidade de projetos existentes e a dificuldade em propor uma diferenciação precisa e restrita entre eles, a autora denomina essas iniciativas como cozinhas coletivas e explicita como elas se configuram como um “lugar do fazer político cotidiano”. Sua interpretação é informada por sua experiência no projeto Quebrada Alimentada e aponta para a possibilidade de pensarmos a potência política de ações que promovem o acesso aos alimentos sem a mediação do dinheiro. 

André Luzzi de Campos, Bruna Rocha e Roberta Moraes Curan trazem uma problematização acerca do papel da participação e do controle social em São Paulo a partir da atuação do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (COMUSAN). A partir de uma análise que vai do local ao global e que considera desde depoimentos de conselheiros do COMUSAN, passando pela legislação referente ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), até a adesão do município de São Paulo ao Pacto de Milão, os autores concluem que os ambientes institucionais de governança da Segurança Alimentar e Nutricional ainda possuem dificuldade de incorporar os saberes, tecnologias e conhecimentos distintos. Ao mesmo tempo, identificam várias ações ou práticas recentes do COMUSAN que têm como objetivo promover uma perspectiva holística das políticas públicas. 

Jovem Pesquisador 

Beatriz Gomes Cornachin se debruça sobre o cenário alimentar da América Latina e Caribe e busca interpretar, a partir do passado colonial, as semelhanças e diferenças existentes entre os países que compõem esta parte do mundo. Utilizando dados de um relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) sobre o panorama segurança alimentar e da nutrição no referido recorte espacial, a autora demonstra que de maneira geral os países estão muito distantes de acabar com a fome e assim atingir as metas do segundo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável até 2030. Em seguida, a autora analisa a situação do Caribe, onde os indicadores são muito mais graves que na América Latina, chamando atenção para as enormes diferenças existentes entre Cuba e Haiti. A autora conclui que, em que pesem as dificuldades impostas pelos Estados Unidos aos dois países (do bloqueio à imposição da cartilha neoliberal), a situação do Haiti é hoje muito mais grave dada sua falta de soberania. 

Entrevista 

Na entrevista com Luci Aparecida Uliana Serra, Secretária Adjunta de Segurança Alimentar de Diadema, temos a oportunidade de acompanhar diferentes momentos da trajetória de uma gestora-militante que em muitos sentidos explicita os desafios para a efetivação das políticas alimentares no Brasil, particularmente na escala municipal. Tendo atuado em diferentes gestões públicas municipais da Grande São Paulo desde o fim dos anos 1980 e início dos anos 1990, Luci consegue explicitar a abrangência e complexidade das ações que buscam garantir uma alimentação saudável em uma metrópole atravessada pelo empobrecimento de sua população. A partir de um olhar informado pelo território em que atua, ela articula diferentes aspectos que seriam imprescindíveis para a superação dos problemas alimentares, passando pela importância da relação entre as diferentes esferas de governo (do federal ao municipal) até a conscientização da população de que a alimentação é um direito básico. 

Artes 

Na seção de Artes se apresentam quatro formas de abordar a temática da Segurança Alimentar. Marco Toresin e Marília Simão apresentam fotos do filme Vida em Mutirão; sobre o Rural Metropolitano, Maria Lucia Bellenzani mostra a temática da produção e comercialização agrícolas, com fotografias que ilustram sua experiência de pesquisa de doutoramento; Gabriel Machado, em Bisneto da Cota: Trajetórias imateriais das Folias de Reis e transformações territoriais rurais dos últimos 25 anos em Presidente Olegário, MG, apresenta imagens do seu Trabalho de Conclusão de Curso na UFABC; por fim, Pablo Vieira nos traz Marmita, uma obra produzida a partir da reflexão sobre a sua experiência com distribuição de comida para população de rua durante a pandemia de COVID-19 na região chamada de Cracolândia, no centro de São Paulo. 

Baixe aqui a “Revista Diálogos Socioambientais: Segurança Alimentar” 

Edição | Vol. 07, n. 18 – abril/2024 
ISSN 2596-2183 
jornalismomacroamb@iee.usp.br 
https://periodicos.ufabc.edu.br/index.php/dialogossocioambientais 


Esta publicação é uma produção do Grupo de Acompanhamento e Estudos de Governança Ambiental (GovAmb) sediado no Instituto de Energia e Ambiente (IEE/USP), e do Laboratório de Planejamento Territorial, sediado na Universidade Federal do ABC. Ela nasceu vinculada ao Projeto Temático FAPESP 2015/03804-9 “Governança Ambiental da Macrometrópole Paulista face à Variabilidade Climática — MacroAmb”, parte do Programa FAPESP Mudanças Climáticas Globais, coordenado pelo professor Pedro Roberto Jacobi (IEE/IEA/USP), e que reuniu docentes da Universidade de São Paulo, da Universidade Federal do ABC (UFABC), do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e da Universidade São Judas Tadeu. Com o título “Diálogos Socioambientais na Macrometrópole” foram publicados 12 números. Com o término do projeto temático, o projeto editorial passou a tratar de novos territórios e temas e isso resultou em uma mudança de título. A partir do número 13, a revista passou a se chamar Diálogos Socioambientais.