Dos Ministérios da Alimentação aos Comitês Nacionais de Sistemas Alimentares

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Blog do IFZ | 16/10/12025

Baixe aqui o artigo “From Ministries of Food to National Food System Committees: A Global Mapping and Typology of Multisectoral Food System Governance Institutions

1. Contexto e Objetivos

O estudo “Dos Ministérios da Alimentação aos Comitês Nacionais de Sistemas Alimentares: Mapeamento Global e Tipologia das Instituições Multissetoriais de Governança dos Sistemas Alimentares” (From Ministries of Food to National Food System Committees: A Global Mapping and Typology of Multisectoral Food System Governance Institutions), conduzido por Dori Patay e colaboradores, apresenta o primeiro mapeamento global abrangente das instituições nacionais de governança multissetorial dos sistemas alimentares.

Parte-se do diagnóstico de que a fragmentação institucional entre ministérios — como os de agricultura, saúde, meio ambiente, comércio, educação e desenvolvimento social — resulta em políticas incoerentes, desperdício de recursos públicos e contradições entre metas econômicas, sociais e ambientais.

A pesquisa analisa 197 países para compreender como os governos vêm estruturando mecanismos de coordenação capazes de integrar esses setores e atores em torno da agenda dos sistemas alimentares sustentáveis. O trabalho se fundamenta em duas premissas centrais:

  1. Transformar a governança é condição essencial para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em especial o ODS 2 — Fome Zero;
  2. Não existe um modelo único de governança, mas sim diferentes combinações de funções e estruturas, adaptadas a contextos políticos e institucionais específicos.

Os principais objetivos do estudo foram:

  • Mapear as instituições nacionais multissetoriais voltadas à governança alimentar;
  • Elaborar uma tipologia dessas instituições (mecanismos e ministérios);
  • Identificar os blocos constitutivos (building blocks) que descrevem suas funções ao longo do ciclo das políticas públicas — da formulação à implementação e ao monitoramento.

2. Metodologia

O estudo adota uma abordagem qualitativa baseada nas teorias da governança administrativa (Croley, 2008) e da ação coletiva institucional (Feiock, 2013). Essas abordagens explicam como múltiplas agências governamentais podem cooperar sem perder autonomia e como evitar o chamado “fracasso da coordenação”.

Foram consultados bancos de dados internacionais (FAOLEX, UN Food Systems Hub, One Planet Network) e analisados documentos oficiais de ministérios e conselhos em 197 países. Ao todo, foram revisados 502 documentos, e os resultados foram submetidos à validação de 968 especialistas e funcionários públicos.

As instituições foram classificadas de acordo com os seguintes critérios:

  • Forma: ministério/unidade ou mecanismo colegiado;
  • Autoridade: setorial (ex.: agricultura) ou suprassetorial (vinculada à presidência ou ao gabinete do primeiro-ministro);
  • Funções: definição de agenda, decisão, implementação, monitoramento;
  • Composição: exclusivamente governamental ou com participação de atores não estatais (sociedade civil, setor privado, agências internacionais).

3. Resultados Globais

3.1. Panorama

Dos 197 países analisados, 34 (17%) possuem uma instituição formal de governança multissetorial dos sistemas alimentares. Esse número vem crescendo rapidamente desde 2021, quando a Cúpula da ONU sobre Sistemas Alimentares (UNFSS) impulsionou reformas administrativas em dezenas de governos.

A presença dessas instituições é mais expressiva em países de baixa renda (32%) do que em países de alta renda (8%), refletindo a necessidade de coordenar múltiplos doadores, programas internacionais e ministérios fragmentados.

Metade das instituições foi criada nos últimos 10 anos, sendo que 16 delas — quase todas africanas e latino-americanas — surgiram após 2021. Em Camarões, Malta e Indonésia, novas estruturas estão em fase de implementação.

Observa-se também uma evolução semântica: mecanismos antes voltados à “segurança alimentar e nutricional” vêm sendo rebatizados como voltados a “sistemas alimentares sustentáveis”, refletindo a integração entre produção, consumo e meio ambiente.
Exemplo: em Serra Leoa, a unidade Scaling Up Nutrition passou a se chamar Scaling Up Nutrition & Food Systems Coordination Unit (2024).

4. Tipologia das Instituições

As 34 estruturas identificadas foram divididas em duas categorias principais:

  • Mecanismos multissetoriais (30 países) — comitês, conselhos, plataformas ou grupos de trabalho que articulam ministérios e, em muitos casos, atores não estatais;
  • Ministérios ou unidades dedicadas (4 países) — órgãos com mandato formal e autoridade suprassetorial sobre as políticas alimentares.

4.1. Mecanismos

Dez países possuem mecanismos exclusivamente governamentais, voltados à coordenação interministerial.
Outros vinte combinam governança multissetorial e participativa, envolvendo sociedade civil e setor privado.

O modelo mais complexo identificado é o tri-modal, que integra:

  • (a) um fórum político de alto nível;
  • (b) um conselho participativo (com governo e sociedade civil);
  • (c) um órgão executivo responsável pela implementação — formato exemplificado pelo sistema brasileiro (CONSEA–CAISAN–Conferências).

Exemplos:

  • Nepal – Comitê Diretivo Nacional de Sistemas Alimentares (2021), com representação paritária entre ministérios, setor privado e ONGs;
  • República Dominicana – Conselho Nacional de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, apoiado por uma Secretaria Técnica que produz evidências e monitora políticas;
  • Etiópia – Comitê Multissetorial de Sistemas Alimentares, com secretariado permanente;
  • México – Sistema Nacional Intersetorial de Alimentação e Sustentabilidade, com relatórios públicos anuais.

4.2. Ministérios e Unidades Dedicadas

Quatro países elevaram a coordenação alimentar ao nível ministerial:

  • BangladeshMinistry of Food, existente desde 1971, com novas divisões dedicadas à nutrição e à sustentabilidade;
  • IndonésiaCoordinating Ministry for Food Affairs (2024), criado com autoridade direta do presidente;
  • IsraelMinistry of Agriculture and Food Security, responsável por um sistema integrado de monitoramento;
  • Áustria – Centro de Coordenação para Sistemas Alimentares Sustentáveis, vinculado à Agência Nacional de Saúde e Segurança Alimentar.

5. Blocos Constitutivos da Governança

O estudo identifica nove funções centrais (building blocks) distribuídas ao longo do ciclo das políticas públicas:

  1. Definição de agenda — criação de fóruns de concertação e consultas amplas.
    Ex.: Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Brasil); Rede Dominicana de Soberania Alimentar.
  2. Formulação e decisão — coordenação interministerial e harmonização de políticas.
    Ex.: CONSEA e CAISAN (Brasil); Comitê Nacional de Segurança Alimentar do Iraque.
  3. Implementação — unidades técnicas e secretariados permanentes.
    Ex.: Secretariado Técnico da República Dominicana.
  4. Monitoramento e avaliação — elaboração de relatórios públicos, definição de indicadores e prestação de contas.
    Ex.: México e Timor-Leste publicam revisões anuais de impacto socioeconômico.

5–9. Outras funções incluem mobilização de recursos, coordenação territorial, inovação legislativa, comunicação pública e gestão de conflitos de interesse. Nenhuma instituição cobre integralmente todos esses blocos.

6. Padrões e Tendências

Três tendências estruturais se destacam:

  • Governança multissetorial mais concentrada em países de renda média e baixa, onde a insegurança alimentar e a dependência de ajuda externa demandam maior coordenação;
  • Expansão após a UNFSS (2021) — em quatro anos, o número de países com arranjos formais praticamente dobrou;
  • Participação social crescente, ainda que desigual: países como Brasil, México e Equador priorizam agricultores familiares e movimentos sociais, enquanto outros (Nepal, Gabão) buscam equilíbrio com o setor privado.

7. Exemplos Regionais

América Latina
É a região mais avançada em governança alimentar participativa.
Brasil, México, Equador e República Dominicana adotam estruturas em múltiplos níveis (nacional, estadual e municipal).
Bolívia e Equador incorporaram o conceito de Soberania Alimentar em suas constituições, com fóruns interculturais de povos indígenas.
Chile e Colômbia estão em transição de mecanismos de segurança alimentar para sistemas alimentares sustentáveis com foco em nutrição.

África
Etiópia, Chade e Gabão estruturaram comitês com presença de ONGs e agricultores.
Serra Leoa e Nigéria adaptaram unidades de nutrição para incorporar o enfoque sistêmico.
Cabo Verde criou, em 2024, um Conselho Interministerial para Sistemas Alimentares Sustentáveis.

Ásia e Oceania
A Indonésia criou um ministério coordenador;
Bangladesh mantém longa tradição institucional;
Nepal aposta em comitês descentralizados;
Timor-Leste institucionalizou o Conselho Nacional de Soberania Alimentar e Nutricional, inspirado no modelo brasileiro.

Europa
A Áustria estabeleceu um centro interministerial na área de saúde;
Israel e Malta reformaram estruturas agrícolas para incorporar o tema alimentar como direito social.

8. O Caso do Brasil

O relatório reconhece o Brasil como referência internacional em governança multissetorial e participativa dos sistemas alimentares. Desde 2003, o país consolidou uma arquitetura institucional singular, articulando Estado e sociedade civil em três níveis interdependentes:

  • CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, criado em 2003 (e reinstalado em 2023, após ter sido extinto em 2019). Reúne governo e sociedade civil em igual proporção, assessora diretamente a Presidência da República, propõe diretrizes e acompanha a implementação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN);
  • CAISAN – Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, órgão executivo composto por 19 ministérios, responsável pela articulação de políticas e orçamentos federais, coordenação de planos nacionais e monitoramento de indicadores como o Mapa da Fome e o inquérito EBIA (2024);
  • Conferências Nacionais de SAN – espaços de deliberação participativa que reúnem milhares de representantes da sociedade civil, prefeituras e governos estaduais. Suas propostas orientam planos plurianuais e relatórios do ODS 2.

Esse tripé (CONSEA–CAISAN–Conferências) constitui o chamado modelo tri-modal de governança alimentar, que combina:

  • representação social e política (via conselho);
  • coordenação administrativa (via câmara interministerial);
  • e deliberação popular (via conferências).

Segundo Patay et al. (2025), o Brasil foi o único país entre os 34 analisados a apresentar integração plena entre as três funções de governança — agenda, decisão e monitoramento — com autoridade supraministerial vinculada à Presidência da República.

A eficácia desse modelo ficou evidente nos anos 2000, quando programas como Fome Zero, Bolsa Família, PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) foram coordenados sob o mesmo sistema, criando um ciclo virtuoso de inclusão social, fortalecimento da agricultura familiar e melhoria da dieta alimentar.

Mesmo após o desmonte institucional ocorrido entre 2019 e 2022, a recomposição do CONSEA e da CAISAN em 2023 é apontada como exemplo de resiliência institucional, demonstrando a capacidade do Estado e da sociedade de restaurar mecanismos democráticos essenciais para o combate à fome.

O modelo brasileiro também inspirou outros países — como Timor-Leste, República Dominicana, Paraguai e Moçambique — e influenciou a criação da Rede Latino-Americana de Conselhos de Segurança Alimentar e das Frentes Parlamentares contra a Fome.

O relatório observa que, embora o Brasil ainda enfrente desafios — como o aumento da obesidade e o alto custo das frutas e hortaliças —, seu arranjo institucional continua sendo um exemplo de governança capaz de integrar políticas sociais, agrícolas e ambientais sob uma estratégia nacional coerente.

Essa coerência é apontada como essencial para a transição do combate à fome quantitativa para a garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável, considerado o novo horizonte das políticas alimentares globais.

9. Mensagens-Chave do Relatório

  • A governança multissetorial tornou-se eixo central das políticas alimentares globais.
    Após 2021, o tema passou da retórica para a institucionalização.
  • O Estado mantém papel insubstituível.
    A participação de atores privados e sociais é vital, mas cabe ao governo assegurar equidade e coerência entre interesses divergentes.
  • Participação não é sinônimo de efetividade.
    Sem regras claras de engajamento, a inclusão pode reproduzir desigualdades e favorecer a captura corporativa.
  • A customização é fundamental.
    Cada país deve adaptar os “blocos constitutivos” à sua realidade, evitando a importação acrítica de modelos.
  • Transparência e monitoramento são a nova fronteira.
    Relatórios públicos e mecanismos de accountability tornam-se elementos estruturantes das instituições.
  • Aprendizado Sul–Sul.
    A cooperação entre Brasil, Indonésia, México e Etiópia mostra que soluções eficazes emergem de contextos semelhantes, e não apenas de países do Norte.

10. Conclusões

O relatório de Patay et al. (2025) demonstra que a transformação dos sistemas alimentares requer reformas institucionais profundas. A transição de ministérios setoriais para comitês e conselhos nacionais representa uma mudança de paradigma: de políticas agrícolas isoladas para políticas integradas de alimentação, saúde, meio ambiente e inclusão social.

Embora não exista um modelo universal, o estudo identifica tendências convergentes, como:

  • fortalecimento da coordenação interministerial;
  • criação de mecanismos participativos permanentes;
  • integração de indicadores de sustentabilidade e nutrição.

O Brasil ocupa posição singular nesse panorama global, não apenas por ter criado uma das primeiras estruturas multissetoriais funcionais do mundo, mas também por demonstrar que a governança democrática pode gerar resultados concretos — redução drástica da fome (2003–2014), melhoria na qualidade da alimentação escolar e reconhecimento internacional de suas políticas sociais.

O estudo conclui que fortalecer as instituições de governança alimentar é condição indispensável para alcançar o ODS 2 e articular justiça social e transição ecológica.
Mais do que produzir alimentos, trata-se de governar coletivamente o sistema que define o que, como e para quem se produz e se come.

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