E o preço? — Quatro pontos sobre economia e a questão alimentar

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Por Walter Belik no Instituto Ibirapitanga | 10/05/2024

Questão central no acesso à alimentação adequada e saudável, a cesta básica vem protagonizando uma série de discussões. Seja pela divulgação de sua nova composição, seja por recente pesquisa do Dieese — Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, que revelou que o preço da cesta básica aumentou em 10 capitais, o debate público está girando em torno de seus impactos na insegurança alimentar de populações que enfrentam situações de vulnerabilidade, em especial pessoas negras, periféricas e mulheres. 

Oferecendo um olhar mais aprofundado e sistêmico sobre o tema, Walter Belik, economista do Instituto Fome Zero, aborda quatro pontos sobre o atual cenário da relação entre políticas econômicas e do campo alimentar1

1. O aumento da cesta básica impacta diretamente na segurança alimentar das pessoas, mas a piora na alimentação da população é pressionada por outras despesas. 

Walter Belik: Esse aumento da cesta básica impacta diretamente na segurança alimentar das pessoas. Vamos lembrar que um dos elementos da insegurança alimentar, um dos níveis de insegurança alimentar, é a impossibilidade de fazer refeições regulares todos os dias, então muito embora você não tenha uma situação de fome absoluta, que seria insegurança alimentar grave, o fato de não ter refeições regulares deixa a pessoa numa situação de insegurança alimentar. Para além do aumento da cesta básica, há um aumento de preços generalizado, porque não foi só o alimento que subiu. O item habitação, por exemplo, aumentou muito mais do que o item alimentação. No caso do transporte nós tivemos um valor mais ou menos equivalente ao aumento da cesta básica nos últimos 12 meses.

Se percebe que muitas vezes essas despesas são incomprimíveis, a família não consegue ficar sem pagar aluguel. E na periferia isso se verifica de uma forma mais dramática, porque a gente sabe que os preços na periferia são mais elevados do que os preços nos bairros mais centrais. Tem uma pesquisa recente que foi feita em Belo Horizonte, por exemplo, que mostra que os preços nos mercados de periferia são 15% mais altos do que os preços para a população que habita os bairros centrais. Isso tem a ver com uma série de coisas, não é apenas uma questão de concentração do varejo, mas também da forma como essas pessoas pagam. Muitas vezes tem a lógica do “fiado”, então o preço é um pouco mais elevado. Como as quantidades que as pessoas compram são menores, as margens acabam sendo maiores desses comerciantes, então tem uma série de questões que estão ligadas a esses grupos que vulnerabilizam a situação deles muito mais. Obviamente que, quando falamos de periferia, estamos falando da população negra também.

Só para ilustrar o que eu estou descrevendo, o aumento acumulado nesses últimos 12 meses para alimentos e bebidas foi de 3,10%. Em habitação, o aumento acumulado foi de 4,00%. Em vestuário, 2,85%. Portanto, muito próximo de alimentos e bebidas. Em transporte, o aumento foi de 3,70%.

Então, vemos que o aumento da cesta básica está pressionando, sim, a inflação, está pressionando o orçamento das pessoas. Mas outras despesas, que eu chamo de incomprimíveis, elas acabam forçando uma situação de piora na alimentação das pessoas.

2. O olhar para o aumento da cesta básica suscita uma necessária reflexão sobre o salário mínimo que já atravessa anos e que requer atenção aos impactos também em outros benefícios sociais.

Walter Belik: Faz muito tempo que o salário mínimo não acompanha o custo de vida no Brasil. Houve um esforço muito grande no primeiro e segundo governo Lula de dar aumentos reais para que houvesse uma certa recuperação do salário mínimo. Isto é interessante, porque o salário mínimo no Brasil se coloca entre os mais baixos da América Latina. Então, comparado com os nossos pares, nós também temos um salário mínimo muito baixo. E com o agravante de que o salário mínimo interfere em uma série de outras questões, relações de trabalho, relações de previdência, custos de governo, tem uma série de coisas que estão indexadas e vinculadas ao salário mínimo. Já no governo Dilma e nos governos Temer e Bolsonaro, o salário mínimo não acompanhou a inflação. Ele não teve reajustes nem para repor a inflação. 

Agora é necessário voltar à política de reajustes reais do salário mínimo. De fato, essa situação do salário mínimo é uma situação que preocupa, não pelo lado das pessoas que recebem salário mínimo, porque a parcela da população que recebe salário mínimo vem diminuindo. Uma grande parte da população hoje, já foi metade e agora caiu um pouquinho, não tem registros na carteira. São pessoas que trabalham por conta própria ou na informalidade. Nesses casos, não é o salário mínimo que impacta. A preocupação é que certos benefícios sociais, como previdência, benefícios de prestação continuada e outras coisas, estão vinculados ao salário mínimo e, nesses casos, são de pessoas que, de fato, não têm outra renda. Estão dependentes completamente do salário mínimo. Então, isso nos leva a uma situação social bastante preocupante.

3. A discussão sobre isenção tributária e redução de alíquota de alguns itens considera aderir a dinâmicas como o cashback. Mas esses movimentos devem ser definidos com base na realidade da população que enfrenta vulnerabilidades. 

Walter Belik:  Esse tema entrou na moda. Então, durante a discussão sobre a reforma tributária se falou muito sobre cashback, mesmo porque uma série de questões ligadas à reforma tributária vai passar por legislação ordinária, portarias e uma série de outras questões ligadas à gestão do dia-a-dia do Ministério da Fazenda e das autoridades monetárias do governo. Então se falou muito em cashback para alimentos in natura, alimentos mais saudáveis. Essa é uma proposta, eu particularmente não gosto, eu acho bastante complicado trabalhar com essas formas de reembolsar ou de tentar equilibrar aspectos que são extremamente regressivos de uma reforma tributária.

O ideal seria você desonerar todos os produtos in natura ou minimamente processados e taxar pesadamente, eu diria, produtos ultraprocessados, como bebidas carbonatadas, alimentos congelados, carnes preparadas. Tudo isso deveria receber uma taxação pesada e o recurso extra da taxação deve ser destinado a programas de promoção de segurança alimentar.

ara, por exemplo, aumentar o per capita da alimentação escolar, da merenda, dado que atende 42 milhões de crianças diariamente; ou para trabalhar com programas de educação alimentar. O cashback é uma proposta que supõe que as pessoas têm conhecimento de como é que funcionam essas retribuições, se trata de uma financeirização, porque também vai entrar via cartão do bolsa família ou alguma outra forma de reembolsar as pessoas e isso é complicado porque muitas vezes as famílias não têm controle sobre esse recurso.

4. A diversificação das áreas de produção e a retomada da política de estoques reguladores são medidas cruciais na resposta ao problema do aumento do preço dos alimentos. 

Walter Belik: Resolver o problema do aumento de preços de alimentos no Brasil passa por um tratamento a duas velocidades. Nós temos flutuações normais do mercado, que têm a ver com sazonalidade, têm a ver com impactos do clima e que estão na base desse grande aumento de preços que nós tivemos agora no começo do ano. Lógico que essas oscilações podem ser em grau menor. Isso já aconteceu no passado. Atualmente as oscilações acontecem com uma ressonância muito grande para cima e para baixo. A gente teria que encontrar alguma forma de amortizar, de tornar mais chata essa curva de aumentos e reduções. Isso daí pode ser feito através da diversificação das áreas de produção que nós temos hoje em dia. Está muito ligado à nossa política agrícola e à ideia de que nós temos um mercado totalmente integrado, uma grande concentração na produção de alguns produtos em algumas áreas. Por exemplo, agora no começo do ano nós tivemos um aumento muito grande da batata. A batata tem sido apontada como uma das vilãs da inflação. Imaginem que nós temos basicamente duas áreas de produção de batata no Brasil, que é a região central de Minas e o Paraná, mas a batata poderia ser produzida em outras regiões. Próximo das regiões onde hoje são produzidas as batatas estão instaladas as grandes fábricas de industrialização da batata. Como boa parte dos bataticultores têm contratos com essas empresas, as empresas acabam levando a produção que pode sobrar no caso de um problema climático para o produto ser industrializado. Então sobra para colocar no mercado na forma in natura uma parcela muito menor. Foi o que aconteceu no recente caso da batata, cujo preço aumentou 39% nos últimos 12 meses. É um dos grandes aumentos que nós tivemos em termos de alimento. Do ponto de vista da sazonalidade, na primeira velocidade, que é essa velocidade de curto prazo, isso pode ser resolvido através da diversificação de áreas, intimamente ligada com a ideia de fomentar circuitos curtos de produção. As áreas teriam abastecimentos e sistemas de suprimento local, o que facilitaria em termos da dieta das pessoas, porque as pessoas iriam consumir produtos mais locais, iria ter uma economia em termos logísticos, redução de perdas e desperdício.

A segunda velocidade é a velocidade do longo prazo, em que temos de colocar em marcha algumas políticas que foram desativadas nos anos anteriores. Nós tivemos grandes aumentos de arroz e feijão — o arroz subiu 28% nos 12 meses acumulados.

Para resolver o problema dos cereais, temos que começar a trabalhar melhor a política de estoques reguladores, que foi desativada a partir de meados da década passada e até agora. A Conab — Companhia Nacional de Abastecimento forma estoque e não consegue intervir para segurar aumentos de preços.

No caso dos hortifruti, não tem muito o que fazer, mas é possível incentivar também que a população tenha algum tipo de informação nutricional sobre troca de alimentos. Nós temos uma alimentação muito monótona e é possível, incentivando dietas diferenciadas e troca de alimentos, ter uma dieta também completa com uma variedade maior de alimentos.

NOTAS

  1. Depoimentos de Walter Belik apresentados originalmente como base para entrevista ao Gife — Grupo de institutos fundações e empresas.

Publicado no site do Instituto Ibirapitanga
https://www.ibirapitanga.org.br/historias/preco-cesta-basica/