Por José Eli da Veiga no Valor Econômico | 17/05/2024
Este é um daqueles raros livros analíticos que, em vez de provocar desânimo, ajudam a apostar que a humanidade tem futuro. Está entre os poucos que permitem rejeitar um velho adágio do leste europeu: “o otimista é um pessimista mal informado”. Também é uma ótima prova de que o otimismo da vontade pode ser, sim, um excelente aliado do inescapável ceticismo da razão.
Poderia existir prática mais elevada que a filantropia ou o amor pela humanidade? Infelizmente, é pouco tratada em termos científicos e muito frequentemente confundida com a caridade, sendo o mais comum que seja vista, no máximo, como uma excentricidade amadorística à disposição dos ricos.
Demonstra cabalmente o contrário a meticulosa exposição do professor Marcos Kisil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Na verdade, a filantropia tende a ser altamente profissional e baseada em evidências objetivas. Tudo bem explicado por um intelectual com imenso acúmulo de conhecimento sobre o tema.
Com base na história do fenômeno e em biografias de notáveis expoentes, a fórmula proposta é de uma dialética enriquecedora da virtude. A riqueza torna-se meio de interação com problemas sociais e emergência de agentes de mudança entre os menos fortunados.
Nove entre dez adeptos da filantropia querem ser entendidos como empreendedores sociais à frente de uma ação com coerência estratégica, resultante de seu exercício de poder e liberdade. Ainda bem que um amplo leque de possibilidades permite que não sejam tangidos a fazer mais do mesmo.
Chegam a 16 as lógicas filantrópicas esmiuçadas no primeiro capítulo: gerencial, empresarial de investimento, produtiva, de consumo, derivativa, “noblesse oblige”, de troca, de mercado, catalítica, de contribuição, de adoção.
Já a ideia de filantropia “de risco”, em sua acepção mais recente — a espinha dorsal da obra — remonta a um depoimento de John Rockefeller III para uma comissão parlamentar sobre reforma fiscal, em 1969. Mas só ganhou força a partir de abril de 1997, pela influência de um artigo na “Harvard Business Review” liderado por Christine W. Letts. Seu título não poderia ter sido mais sugestivo: “Virtuous Capital: What Foundations Can Learn from Venture Capitalists”.
A tradução de venture capitalist só poderia ser “capitalista de risco”. Contudo, Kisil explica que os autores preferiram o sinônimo “venture” por ele estar relacionado ao afortunado rei português D. Manuel I (1469-1521), venturoso.
A tática naval do monarca era semelhante à hoje adotada por fundos de investimento: apostar em 10 iniciativas sabendo que entre seis e sete irão “afundar” ou, no máximo, “boiar”, duas “vão se salvar” e apenas uma mostrará capacidade de ser unicórnio, tipo Microsoft ou Google. O mesmo pode ser aplicado à filantropia. De 10 organizações apoiadas, o desempenho será ótimo se algumas poucas expandirem seu modelo, além de aumentarem sua eficiência e alcance em prol de um desenvolvimento sustentável.
Não poderia ser outro, portanto, o tema do miolo do livro, principalmente de seu terceiro capítulo: “Filantropia de risco e desenvolvimento sustentável”. A ênfase na imprescindível ponte com a Agenda 2030, que indica quais devem ser as 10 tendências para a filantropia num futuro próximo.
É provável que esteja cada vez mais baseada em confiança. Com certeza precisará ter foco no interesse do filantropo. Serão crescentes as doações coletivas. Haverá mais atração por financiamento para impacto. Aumentará a diversidade de pensamento entre seus agentes. Prioridades serão dadas à justiça social e às questões climáticas. A inteligência artificial dominará seus avanços tecnológicos. Uma nova geração de filantropos provocará mudanças mais relevantes. As famílias ricas tenderão a estar mais unidas e passará a ser dominante a doação em vida.
O livro também resgata, com muita ênfase, um outro e mais antigo decálogo, que nunca será suficientemente lembrado. Em 1996, na colina que oferece a melhor vista para o belo lago Di Como, a Fundação Rockefeller promoveu um histórico encontro internacional que gerou os “Princípios de Bellagio”.
Quase 30 anos depois, é surpreendente quanto permanecem adequados os singelos parágrafos voltados a melhorar, interpretar e comunicar indicadores de desenvolvimento sustentável. Ainda mais importantes para as práticas filantrópicas foram as conclusões de um segundo encontro similar em 2011, que ficou conhecido como “Bellagio Initiative”.
Hoje, o essencial é vislumbrar o quanto se torna estratégica a filantropia diretamente dirigida ao progresso da ciência. Daí a necessidade de que as entidades filantrópicas se antecipem em incentivos a pesquisas voltadas à superação da Agenda 2030. Claro, na dinâmica de revisão de objetivos, metas e indicadores, mas — principalmente — na busca de avanços conceituais condizentes com uma futura Agenda 2050.
São coisas que, infelizmente, mal começaram a engatinhar no Brasil. Mesmo assim, o livro descreve cinco experiências bem promissoras, além de também informar ter identificado uma dezena de centros ligados a hospitais com núcleos de pesquisa parcialmente financiados por recursos filantrópicos.
Este é um livro que vai contra a célebre tese de Isaac Asimov, para quem o ganho de sabedoria pela sociedade seria muito mais lento que o ganho de conhecimento pela ciência. Como diz o médico José Luiz Setúbal, em concisa apresentação, o esforço de publicá-lo faz parte de aposta diametralmente inversa: de que a sabedoria da sociedade possa vir a avançar em compasso comparável ao do conhecimento na ciência.
Dois reparos, que não podem deixar de ser feitos, nada têm a ver com o conteúdo, mas, sim, com aspectos editoriais. As referências bibliográficas estão espaçadas em incômodos apêndices aos capítulos, em vez de consolidadas no fim. Uma opção abandonada até por coletâneas de artigos. De resto, a ausência de um índice remissivo não poderia ter sido mais antifilantropica.
José Eli da Veiga é professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP