Fome e Algoritmo: a realidade invisível dos entregadores de comida por aplicativo em São Paulo e Rio de Janeiro

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Blog do IFZ | 06/04/2025

Duas palavras — Fome e Algoritmo — desvelam o paradoxo cruel que atravessa o cotidiano dos entregadores de comida por aplicativo em São Paulo e no Rio de Janeiro: enquanto alimentam a cidade com a velocidade e a precisão imposta pelos códigos das plataformas digitais, esses trabalhadores sobrevivem sob o peso da invisibilidade social e da insegurança alimentar, enfrentando jornadas exaustivas que frequentemente terminam com seus próprios pratos vazios.

Na metrópole onde tudo se move ao toque de um botão, entre buzinas, semáforos e pedidos, deslizam pelas ruas figuras vestidas de cores vibrantes — verdes, laranjas, amarelas. São entregadores de comida por aplicativo, silhuetas anônimas que costuram a cidade com suas mochilas térmicas, levando o jantar de alguém enquanto, muitas vezes, pulam o próprio. Essa imagem, tão banal quanto cotidiana, esconde uma verdade brutal que o estudo Entregas da Fome: Insegurança Alimentar Domiciliar em Trabalhadores de Aplicativos de entrega de comida nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro torna impossível ignorar: os trabalhadores que sustentam o conforto da entrega instantânea vivem, eles próprios, sob o espectro da fome.

O estudo traz à luz os corpos exaustos que alimentam a lógica de uma nova ordem econômica, onde o vínculo empregatício se dissolve sob a ilusão da “liberdade de ser seu próprio chefe”. A maioria desses trabalhadores é composta por homens negros, jovens, com ensino médio completo, morando em áreas periféricas, sustentando famílias com rendimentos inferiores a um salário mínimo por pessoa. Trabalham longas jornadas — em média, 9,4 horas por dia — e, mesmo assim, não conseguem garantir o alimento em suas mesas. Muitos relatam pular refeições, dormir com fome, substituir o almoço por um salgado, ou sequer ter o que cozinhar.

A comida, que deveria ser direito, torna-se privilégio. E o entregador, símbolo máximo da intermediação digital, é reduzido à engrenagem descartável. Ele transporta o prato quente, mas carrega um corpo frio de fome. Move-se pelas ruas como se não existisse: sem direitos, sem rede de proteção, sem amparo legal. Um trabalhador invisível — até que adoeça ou morra.

O relatório desdobra a precariedade em detalhes que ofendem qualquer noção de dignidade. Entregadores com rotinas alimentares interrompidas por falta de tempo ou dinheiro. Jovens que pulam refeições para “focar na meta”. Famílias que sobrevivem com arroz puro, macarrão sem molho, ou migalhas ofertadas por restaurantes solidários. A insegurança alimentar não é apenas ausência de comida; é a presença constante da incerteza — da ansiedade de não saber se haverá algo no prato amanhã.

A fome, aqui, não é fenômeno isolado: é sintoma estrutural. Está entrelaçada à informalidade radical imposta pelo capitalismo de plataforma. A lógica do algoritmo — implacável, silenciosa — premia a produtividade insana e pune a pausa. Entregar mais significa ganhar mais, mas esse “mais” raramente é suficiente para garantir o básico. O sistema exaure o trabalhador enquanto proclama eficiência. E nessa engrenagem, o corpo que entrega é também o corpo que se sacrifica.

A cidade segue indiferente, impassível em sua pressa, mas algo range sob a superfície. A precariedade não é acaso — é escolha política, projeto de sociedade. Os entregadores famintos não são exceção: são sintoma. E o sintoma revela uma doença mais ampla, onde a fome não é apenas falta de alimento, mas ausência de direitos, de futuro, de cuidado. Num país que já foi símbolo mundial de combate à fome, é preciso perguntar: quem se alimenta de quem?

O estudo “Entregas da Fome” cumpre o papel que o jornalismo e a ciência têm esquecido com frequência: escutar os silenciados, revelar o que a retórica do empreendedorismo esconde. Em vez de romantizar a resiliência, mostra sua crueldade. Em vez de celebrar a inovação dos aplicativos, escancara seu modelo de negócios baseado na externalização de todos os riscos — sociais, econômicos, humanos. A fome, aqui, não é acidente. É engrenagem.

Encerrar esse retrato exige mais do que indignação. Exige ação. Exige políticas públicas robustas que reconheçam os entregadores como trabalhadores com direitos, acesso à seguridade social, condições dignas de existência. Exige uma revisão profunda da forma como tratamos o trabalho no século XXI — e de quem está pagando o preço pelo conforto de apertar um botão e receber comida na porta.

Mas o estudo também aponta o caminho para a denúncia com potência de mudança. Reivindica a formulação urgente de políticas públicas que reconheçam a especificidade desse novo proletariado urbano. Exige a responsabilização das plataformas — gigantes do lucro digital — por condições mínimas de subsistência. Defnde uma legislação que garanta renda digna, acesso à seguridade social, tempo para o descanso e o direito mais elementar de todos: comer.

A pergunta que fica é incômoda, mas necessária: quantas calorias vale uma vida?

Enquanto ela não for respondida com justiça, os entregadores continuarão pedalando com o estômago vazio e o corpo exausto, levando o jantar de alguém enquanto pulam o próprio.

Baixe aqui o estudo “Entregas da Fome: Insegurança Alimentar Domiciliar em Trabalhadores de Aplicativos de entrega de comida nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro