Gaza e o odor da fome

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Por Manoela Huck  e Alexandre Cesar Cunha Leite no Brasil de Fato | 16/08/2024

Rachel de Queiroz, romancista brasileira, nos contou em sua obra O Quinze, sobre um Sertão portador de sensações e afetos múltiplos. Ao descrever o cenário onde sua obra passaria, citou a fome em seu texto. A escrita de Rachel de Queiroz é evocativa e ilustra bem a riqueza sensorial do Sertão brasileiro: o cheiro do café torrado, a cozinha sertaneja, os cuidados femininos e tantos outros sentidos advindos da experiência “áspera, mas misteriosamente amada”, pois afinal “um espaço se dá a conhecer por meio de todos os cinco sentidos”. O Quinze retratou a situação de carestia do povo nordestino, lutando continuamente contra a fome e a miséria. 

Gaza […] é um imenso cemitério, onde sua população está completamente sujeita à fome 

Ademar Vidal, autor de uma série de artigos intitulada “O Nordeste na Geografia da Fome”, publicados nos Diários Associados no início da década de 1940, explorou profundamente aspectos pouco discutidos, como o papel do olfato nesse contexto. Vidal descreveu o terrível mau cheiro que exalava dos campos de concentração dos flagelados da seca — uma catinga pungente que saturava o ar dos amontoados de famintos. O elemento causador do odor relatado: a fome. 

Josué de Castro, o pesquisador da fome no Brasil, narra assim: É uma autofagia. As exalações fétidas dos corpos famintos refletem um estado de decomposição da proteína viva e de avançada acidose. É o terrível cheiro da fome, conhecido pelos aviadores da Segunda Guerra Mundial ao sobrevoarem, na escuridão, os campos de concentração na Alemanha, onde se sentia o odor de carne humana em decomposição.

Que cheiro exala em Gaza? 

No mês de junho deste ano, mais precisamente no dia 25 de junho de 2024, ocorreu a divulgação do relatório da Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC) — um monitor global da fome — que oficializou o que já sabíamos: Gaza não é apenas a maior prisão a céu aberto do mundo, é também um imenso cemitério, onde sua população está completamente sujeita à fome extrema e onde pelo menos 10 crianças são mutiladas por dia. Nesse contexto e à luz das narrativas de Rachel de Queiroz, Ademar Vidal e Josué de Castro, fica a reflexão: que cheiro exala em Gaza?

Fome no território Palestino

Atualmente, todo o território palestino está em estado de emergência alimentar (IPC Fase 4). Isso significa que 100% das famílias que lá vivem enfrentam obstáculos no acesso ao alimento e graves deficiências no consumo de alimentos. O que se traduz em altos níveis de desnutrição aguda e uma mortalidade excessiva, mitigadas apenas por meio de estratégias de subsistência de emergência, como a venda de roupas e a coleta de lixo para venda. Dentre essas famílias, 22% enfrentam níveis catastróficos de insegurança alimentar aguda (IPC Fase 5), caracterizados por condições críticas de desnutrição e uma taxa alarmante de mortalidade mesmo após o pleno emprego das estratégias de sobrevivência. O mesmo relatório citado acima indica que essa última situação tende a alcançar 96% da população sobrevivente na região nos próximos meses.

Philippe Lazzarini, chefe da Agência da ONU para os Refugiados Palestinos (UNRWA), ao apresentar o relatório, enfatizou que este é o maior número de pessoas já registrado pelo IPC em situação de fome catastrófica. Além disso, o conflito – que não cessou –  continua a causar danos generalizados a bens e infraestruturas que são essenciais para a sobrevivência. No final de maio, aproximadamente 60% de todos os edifícios, incluindo residências, lojas, hospitais e escolas, foram danificados ou totalmente destruídos pelos ataques. Além disso, quase 70% das instalações de água, saneamento e higiene (WASH) na Faixa de Gaza foram afetadas. As terras cultiváveis foram severamente comprometidas, com 57% delas destruídas ou gravemente danificadas, o que limita significativamente a capacidade do sistema alimentar local de operar adequadamente.

A fome não apenas resulta das condições adversas, mas também serve como meio pelo qual o Estado de Israel implementa seu projeto de extermínio. 

Esse agravamento significativo da fome num curto espaço de tempo, denunciado por Lazzarini, superando até mesmo as piores projeções feitas em dezembro de 2023, reforça a premissa de que a fome não apenas resulta das condições adversas, mas também serve como meio pelo qual o Estado de Israel implementa seu projeto de extermínio.

A fome como tática de guerra

Em um ensaio publicado em 22 de março de 2024 pela revista Foreign Affairs , cinco autores, incluindo três ex-secretários da agricultura dos Estados Unidos, afirmam categoricamente que “a comida é uma arma de guerra, tão poderosa quanto armas nucleares”. Esse método envolve a perturbação ou ameaça do abastecimento alimentar de uma população, a destruição de áreas agrícolas, a manipulação do fornecimento de alimentos e o uso de cercos e bloqueios projetados para causar fome entre civis enclausurados em um território. 

Na Palestina, isso se materializa na proibição da coleta de ervas silvestres nativas, apropriação das fontes de água, queima de oliveiras, sabotagem dos pesqueiros, interrupção de entrega de doações, bloqueios e destruição de passagens humanitárias entre outros exemplos que há anos se perpetuam. Esta prática sistemática de manipulação e controle dos recursos essenciais para a sobrevivência da população palestina não pode ser enfrentada apenas pela assistência humanitária ao território e pela restauração dos sistemas de produção e de mercado, como é recomendado pelos organismos internacionais. Embora devam ser implementadas de imediato para, ao menos, reduzir o risco de morte por inanição tais medidas de assistência não são suficientes para enfrentar e minorar a estratégia de extermínio. 

Para uma solução radicalmente eficaz, ainda são atuais as palavras de Fidel Castro (1979): “A base para uma paz justa na região começa com a retirada total e incondicional de Israel de todos os territórios árabes ocupados e implica, para o povo palestino, a devolução de todos os seus territórios ocupados e de seus direitos nacionais inalienáveis, incluindo o direito de retorno à sua pátria, à autodeterminação e ao estabelecimento de um estado independente na Palestina, de acordo com a resolução 3236 da Assembleia.”

Josué de Castro afirmava que o medo da fome e da guerra ameaça paralisar a capacidade criativa dos seres humanos e, portanto, pode levar ao colapso de toda a civilização. Para trilhar o caminho rumo à paz e à felicidade, que se encontram em uma economia de abundância, é essencial superar completamente esse temor e o risco imposto pela situação de fome extrema. 

A população sofre com a fome. O odor da dor mais aguda do corpo e da alma prevalece em Gaza: a fome.  

No caso de Gaza, o temor já é realidade. O relatório do IPC indica o número de 495.000 pessoas em situação catastrófica de insegurança alimentar (fase 5); 745.000 pessoas na fase 4 – que corresponde a um nível de emergência no que concerne à insegurança alimentar. Infelizmente, organismos internacionais parecem ser inoperantes diante da situação. Mesmo após a aprovação do cessar-fogo pelo Conselho de Segurança da ONU a situação não se altera e os ataques, as mortes, a estratégia de dizimar a população palestina permanece. A população sofre com a fome. O odor da dor mais aguda do corpo e da alma prevalece em Gaza: a fome. 

Manoela Huck é graduanda em Relações Internacionais na Universidade Estadual da Paraíba, membra do SACIAR (@_saciar).
Alexandre Cesar Cunha Leite é docente da Universidade Estadual da Paraíba e criador do SACIAR, coordenador do SACIAR LAB e membro do FomeRI (UFPB).

Publicado originalmente no Brasil de Fato
https://www.brasildefatopb.com.br/2024/08/16/gaza-e-o-odor-da-fome