José Graziano da Silva no Jornal Meio Norte | 22/10/2023
Nada poderia ser mais encorajador do que voltar a Guaribas 20 anos depois da implantação do Programa Fome Zero, em janeiro de 2003. Ver de perto o resultado alcançado por meio de políticas públicas me fez reafirmar a certeza de que é possível, sim, vencer a fome e assegurar uma qualidade de vida melhor para todos os brasileiros. É um alento comemorar o fato de não haver mais mortes como consequência da fome, principal objetivo do Fome Zero. Merece ser celebrado também o fim da mortalidade infantil como decorrência da fome: a partir de 2020 não houve nenhuma morte de crianças com menos de 1 ano em Guaribas.
Não há dúvidas de que é necessário mantermos uma vigilância constante para revigorar e aprimorar iniciativas que ultrapassem o grande feito de zerar a fome e a mortalidade infantil, pois ainda persistem problemas resistentes ao tempo, entre os quais a falta de emprego e renda e a insegurança alimentar. Grande parte da população é dependente do Bolsa Família. O desejável é que a população sobreviva do seu próprio sustento. Isso não é de todo um mal, uma vez que com o Bolsa Família as pessoas não passam mais fome. Mas acende o sinal de que é preciso avançar, pois não é razoável que a população continue a depender desses recursos.
Uma das ocupações que poderia inverter essa lógica é a agricultura familiar, que hoje se ressente da falta de um mercado interno capaz de consumir os produtos gerados. As compras públicas estão concentradas apenas na merenda escolar. No entanto, não devemos ignorar as enormes dificuldades encontradas na cidade em 2003, quando Guaribas carregava o terceiro menor IDH do Brasil (0,214) e a mortalidade infantil era de 36 mortos por mil nascidos vivos. Uma em cada cinco crianças com menos de um ano apresentava quadro de desnutrição. A cidade não dispunha de serviços básicos como saúde e educação. Das 942 casas existentes, 99% não tinham banheiro, apenas 20% tinham luz e não havia água encanada. Mais de 90% dos moradores eram pobres ou muito pobres.
Superar tamanho desafio não foi uma tarefa fácil. O Programa Fome Zero foi o indutor de mudanças ao articular um conjunto de políticas públicas voltadas para atacar, no curto prazo, o problema emergencial do acesso à alimentação e, no longo e médio prazos, criar as condições de autossuficiência das famílias que viviam na indigência e na pobreza.
A meta de curto prazo foi alcançada, mas o município não conseguiu desenvolver-se tão bem economicamente a ponto de gerar emprego e renda para a população. Diante de uma cidade até então esquecida, era quase impossível criar todas as condições para libertar as famílias da miséria.
Ainda assim foram dados passos importantes, cujos resultados são igualmente alentadores. No setor de comércio e de serviços é perceptível o crescimento, seja pela expansão dos estabelecimentos, seja pelo aumento do consumo das famílias. No entanto, os novos negócios continuam sendo geridos como empresas familiares com a renda concentrada nas mãos de poucos. Segundo o IBGE, a proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 6%, em 2021. Os outros sobreviviam por meio dos recursos do Bolsa Família. Outro dado que chama atenção é a redução da população da cidade em quase 3%, de acordo com o Censo de 2022, que baixou de 4.814 pessoas em 2010, para 4.276, em 2022. Isso demonstra que parte dos moradores saiu de Guaribas em busca de melhores oportunidades.
Infelizmente, nem tudo o que foi conquistado conseguiu sobreviver. Houve um brutal desmonte de programas sociais como o Mais Médico, Brasil Sorridente, Farmácia Popular e Programa de Aquisição da Agricultura Familiar (PAA). Não se pode apagar também os efeitos dos dois anos de pandemia, quando toda a economia parou de crescer. E se nada for feito, aumentará o retrocesso e o fosso entre os que têm mais e os que quase nada tem. O PFZ conseguiu estancar a sangria da fome e da morte em consequência da miséria. Mas, passados 20 anos, fica claro que é urgente retomar o projeto de desenvolvimento econômico e social que promova uma melhor e mais justa distribuição de renda, não só em Guaribas, mas em todo o Brasil.
José Graziano da Silva é Diretor-Geral do Instituto Fome Zero
Publicado no Jornal Meio Norte, Teresina