Os desafios de Guaribas depois de 20 anos de implantação do Fome Zero

Tudo o que é comparado com o que existia em 2003 é superlativo: pequenos avanços na cidade são grandes conquistas

José Graziano da Silva no Correio Braziliense | 10/10/2023

Acabo de voltar de Guaribas (PI) — cidade em que começaram as ações do Programa Fome Zero em fevereiro de 2003 — com a alegria de ter vivenciado avanços incontestes, o mais visível deles é que não há mais mortes como consequência da fome, principal objetivo do Programa. Mas vi problemas que estão resistentes ao tempo, como a falta de expectativa de emprego e a insegurança alimentar, sobre os quais será necessário a intervenção direta do Estado.

Em 2000, Guaribas carregava o terceiro menor IDH do Brasil (0,214). A mortalidade infantil era de 36 mortos por mil nascidos vivos. Uma em cada cinco crianças com menos de um ano apresentava quadro de desnutrição. A cidade não dispunha de serviços básicos como saúde e educação. Das 942 casas existentes, 99% não tinham banheiro, apenas 20% tinham luz e não havia água encanada. Mais de 90% dos moradores eram pobres ou muito pobres.

Essa Guaribas está no passado. O PFZ articulou um conjunto de políticas públicas voltadas para atacar, no curto prazo, o problema emergencial do acesso à alimentação e, no longo e médio prazos, criar as condições de emancipação das famílias que viviam na indigência e na pobreza. A meta de curto prazo foi alcançada, mas o município não conseguiu desenvolver-se tão bem economicamente a ponto de gerar emprego e renda para a população. Diante de uma cidade tão desprovida, era quase impossível criar todas as condições para libertar as famílias da miséria.

O setor de comércio e de serviços cresceu exponencialmente, mas os novos negócios são geridos como empresas familiares. A proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 6% segundo o IBGE em 2021. E é o Bolsa Família que assegura a sobrevivência de grande parte da população. O que traz alento, porque as famílias não passam mais fome, mas também a preocupação de que não podem viver eternamente desse repasse.

A falta de um “mercado interno próspero” se faz sentir, em especial, na agricultura familiar onde as compras públicas estão restritas à merenda escolar. A ausência de emprego e renda fez com que o êxodo, principalmente para São Paulo, reduzisse a população em quase 3%. O número baixou de 4.814 moradores, em 2010, para 4.276 pessoas no Censo de 2022. Esse fluxo migratório já foi invertido depois de 2003e foi exatamente o dinheiro vindo de outras cidades que financiou os maiores e melhores comércios de Guaribas.

Merece ser comemorado o fim da mortalidade infantil como decorrência da fome: a partir de 2020 não houve nenhuma morte de criança com menos de 1 ano. O cuidado com as gestantes e o acesso maior aos alimentos indicam que a junção dos programas de assistência médica com as políticas de segurança alimentar e nutricional salvam vidas.

Mas o desmonte de programas como o Mais Médico, Brasil Sorridente, Farmácia Popular e Programa de Aquisição da Agricultura Familiar (PAA) já mostra as más consequências. O município estava em sinal de alerta desde 2017, quando entrou em vigor a lei que criou o teto de gastos e que congelou por vinte anos os investimentos em políticas públicas. Também não se pode desprezar as décadas de clientelismo que orientavam a ação política no Brasil. A cultura enraizada pelo clientelismo em nada contribui para a emancipação dos usuários das políticas sociais. E não se pode apagar os efeitos dos dois anos de pandemia, quando toda a economia parou de crescer Se nada for feito, aumentará o retrocesso. O Brasil voltou ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em 2018. No final de 2022, 70 milhões de brasileiros passavam fome e outros 20% não se alimentavam o suficiente, segundo a FAO. E Guaribas, infelizmente, também contribui para essa conta!

No entanto, tudo o que é comparado com o que existia em 2003 é superlativo: pequenos avanços na cidade são grandes conquistas. Problemas persistem e é inaceitável que em um país tão rico como o Brasil continue existindo centenas de Guaribas.

O PFZ conseguiu estancar a sangria da fome. Ações interministeriais aplicadas no semiárido e nas periferias das grandes cidades melhoraram os indicadores. Mas passados 20 anos, fica claro que se faz necessário retomar o projeto de desenvolvimento econômico, que inclua os pobres no orçamento e promova melhor distribuição de renda.

José Graziano da Silva, Diretor-Geral do Instituto Fome Zero e ex-diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)

Publicado no Correio Braziliense
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