Publicação sistematiza mais de uma década de experiências nas escolas públicas de Copenhague e detalha como a refeição coletiva se tornou um laboratório vivo de aprendizagem, cidadania e combate às mudanças climáticas
Blog do IFZ | 20/08/2025
Guia recém-publicado pela Prefeitura de Copenhague promete mudar a forma como pensamos a alimentação escolar. O Copenhagen Food School Guide sintetiza mais de dez anos de experimentos pedagógicos, práticas nutricionais e gestão sustentável em dezenas de escolas públicas da capital dinamarquesa. O resultado é um documento robusto, fruto da colaboração entre a Administração de Crianças e Juventude da cidade, as próprias escolas e o centro culinário Meyers Madhus, com financiamento parcial da União Europeia via programa Horizon 2020.
Não se trata, no entanto, de um compêndio de boas intenções. O guia apresenta evidências, metas mensuráveis e instrumentos concretos de gestão. Nele, a refeição escolar deixa de ser um serviço de apoio para se converter em laboratório vivo, onde ciência, saúde pública e educação se encontram no prato das crianças.
A escola inteira à mesa
As chamadas food schools — hoje vinte em funcionamento — atendem estudantes de 6 a 15 anos. Todas possuem cozinhas de produção local e amplos refeitórios, projetados não apenas para servir comida, mas para integrar cozinha, sala de aula e comunidade.
Nessas escolas, cozinhar é parte do currículo. Grupos de alunos participam do preparo das refeições diariamente, assumem tarefas que variam do corte de vegetais ao planejamento do cardápio, e aprendem, entre panelas e ingredientes, noções que vão da matemática aplicada às medidas, passando por biologia, química e até idiomas, quando exploram culinárias de outros países.
O guia organiza essa filosofia em dez dogmas pedagógicos, formulados em um manifesto de 2017. Entre eles, três são considerados a espinha dorsal do modelo: “a escola de comida é a escola inteira”, “todos comem juntos” e “as crianças cozinham”. Esses princípios sintetizam a ideia de que a alimentação escolar não é periférica, mas estruturante da vida pedagógica e social.
Alfabetização alimentar como prática cotidiana
Um dos capítulos mais densos do guia dedica-se à chamada food literacy — a alfabetização alimentar. O conceito, apoiado em definição do Ministério da Educação da Dinamarca, ultrapassa a noção de educação nutricional tradicional: trata-se da capacidade de fazer escolhas críticas e conscientes sobre a comida, embasadas em conhecimento técnico, sensorial, ético e ambiental.
A alfabetização acontece na prática, quando os alunos aprendem a identificar aromas, texturas e sabores em exercícios sensoriais; quando percebem, em laboratório, que um litro de fermento natural corresponde a mil mililitros e dez decilitros, aplicando matemática em situações concretas; ou quando discutem o impacto climático de diferentes formas de produção de alimentos.
Esses exercícios não só ampliam a linguagem dos sentidos como reforçam a autoconfiança dos estudantes para experimentar novos ingredientes. Relatos de gestores citados no guia mostram que, ao “brincar” com alimentos antes de ingeri-los, as crianças ganham coragem para provar pratos que normalmente rejeitariam.
Metas ambientais e nutricionais com resultados mensuráveis
A estratégia das escolas de comida está alinhada à Política Alimentar de Copenhague, de 2019, que estabelece objetivos claros: reduzir em 25% a pegada de carbono das refeições até 2025, alcançar 90% de alimentos orgânicos nas cozinhas públicas e cortar pela metade o desperdício de comida até 2030.
Essas metas não ficaram no papel. Hoje, em média, as escolas já atingem mais de 90% de ingredientes orgânicos. Além disso, cozinhas trabalham com cardápios sazonais, ampliam o uso de proteínas vegetais e exploram cortes menos nobres de carne, sem perda de sabor ou valor nutricional. O aproveitamento integral dos alimentos é prática recorrente — da polpa da beterraba ao caule do repolho — transformando o que antes seria resíduo em aprendizado e refeição.
O guia apresenta ainda dez benchmarks científicos, elaborados em parceria com a Universidade Técnica da Dinamarca (DTU), que orientam a composição de cardápios equilibrados e sustentáveis. Entre eles, recomenda-se servir legumes coloridos em todas as refeições, utilizar leguminosas e sementes com frequência, priorizar gorduras vegetais e evitar carnes bovinas e ovinas, de maior impacto climático.
Organização escolar com rigor científico
Por trás de cada refeição servida está uma engrenagem cuidadosamente descrita no manual. Cada escola organiza-se em torno de um Comitê de Alimentação, formado por gestores, professores, cozinheiros, técnicos e até representantes de alunos e pais. Esse comitê planeja o calendário anual, integra a cozinha ao currículo e monitora tanto os indicadores pedagógicos quanto a saúde financeira do programa.
A figura do Coordenador da Escola de Alimentação é crucial: ele garante a ponte entre sala de aula e cozinha, articula a logística do dia a dia e conduz a comunicação com famílias e comunidade. Para assegurar viabilidade econômica, o guia introduz ferramentas de gestão como a Food School Calculator, que projeta receitas, despesas e índices de adesão, tratando a operação escolar com o rigor de um restaurante profissional, mas sem abrir mão de sua função pedagógica e social.
Essa estrutura não é apenas administrativa: é pedagógica em si mesma, pois envolve alunos em processos de planejamento, decisões coletivas e até na resolução de problemas, transformando gestão em exercício de cidadania.
A refeição como experiência social e cultural
No centro de tudo está a refeição compartilhada. Mais que um momento de saciar a fome, o almoço coletivo é tratado como um ritual de convivência. Crianças e adultos dividem o mesmo prato e a mesma mesa, em uma dinâmica que estimula diálogo, respeito e curiosidade.
O guia sugere formas concretas de valorizar esse momento: organizar o espaço de refeição em zonas mais silenciosas e outras de maior movimento; usar pictogramas para orientar fluxos; ajustar acústica para favorecer a conversa; e propor que professores e cozinheiros atuem como anfitriões, guiando as interações à mesa.
As conversas não se limitam ao gosto da comida. Elas exploram sabores básicos — doce, salgado, ácido, amargo, umami —, texturas, combinações e origens dos ingredientes. Assim, cada refeição se torna também um exercício de linguagem, ciência e cultura.
Um convite aberto à transformação
Embora nascido em Copenhague, o Food School Guide oferece materiais e ferramentas abertas, disponíveis para qualquer cidade interessada. O apêndice inclui modelos de políticas alimentares escolares, planos de menu, exercícios sensoriais e apresentações para reuniões com pais.
“O guia não é uma lista de desejos, é um relato de resultados”, resume o documento. Mais do que um manual técnico, ele se apresenta como uma proposta de transformação cultural: fazer da alimentação escolar não um detalhe logístico, mas um eixo estruturante da vida pedagógica, comunitária e ambiental.
Para quem deseja compreender como refeições podem se tornar ferramentas de aprendizado e sustentabilidade, baixe aqui o Copenhagen Food School Guide
