Indicadores de Segurança Alimentar e a condição da fome na emergência climática do RS

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Fala-se que o RS é o celeiro do país. De fato, estamos entre os 5 maiores exportadores de alimentos. Por que, então, temos insegurança alimentar?

Por Mirian Fabiane Dickel, Alvori Cristo dos Santos e Gabriela Coelho de Souza no SUL21 | 16/05/2024

Dentre os Direitos Humanos, o Direito à Alimentação Adequada é indispensável para a saúde e bem estar social. As normas internacionais reconhecem o direito de todos à alimentação adequada e o direito fundamental de toda pessoa a estar livre da fome, como pré-requisitos para a realização de outros direitos humanos. No Brasil, essa temática vem sendo desenvolvida desde a década de 1990, culminando em um processo de mobilização social entre sociedade civil e governo federal, que resultou na criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN, através da, Lei Orgânica de Segurança Alimentar Nutricional – LOSAN – Lei nº 11.346/2006. O conceito de SAN alterou-se no decorrer dos anos, ampliando-se especialmente no que se refere a questões socioeconômicas e culturais, levando-se em conta o contexto no qual os sujeitos de direitos estão inseridos, e reconhecendo a relevância dos saberes e práticas na construção da segurança alimentar e nutricional.

A agricultura enquanto atividade social e econômica é historicamente identificada com a função social de produzir alimentos. A partir do processo histórico de modernização da agricultura e industrialização, ela passa a assumir a função de produção de matérias primas, para diversas cadeias produtivas, portanto, agricultura e pecuária são incorporadas aos ciclos de produção de mercadorias. Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentos, Abia, o setor representa 10,8% do PIB nacional, processando cerca de 60,9% da produção agropecuária brasileira, com faturamento total, R$ 851 bilhões foram oriundos das vendas no mercado interno e R$ 310 bilhões das exportações. O aumento do faturamento da indústria de alimentos deve-se ao crescimento das exportações, que expandiram 5,2% em valor (dólar), alcançando o nível recorde de US$ 62 bilhões. Em 2023 cresceram 11,4% em relação a 2022 e atingiram 72,1 milhões de  toneladas, o que consolidou o Brasil como o maior exportador de alimentos industrializados do mundo, ultrapassando os Estados Unidos.

No RS, os principais produtos exportados em 2023 foram soja (R$ 4,1 bilhões), tabaco (US$ 2,4 bilhões), tortas e outros resíduos do óleo de soja (US$ 1,8 bilhão), carne de aves (US$ 1,4 bilhão) e pastas químicas de madeira (US$ 833 milhões). O agronegócio contribuiu com 67% das exportações, com faturamento de US$ 1,2 bilhão e 1,87 milhão de toneladas exportadas. 

Porém, esses números escondem um grande paradoxo, o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Brasil, lançado, pela Rede PENSSAN (2022), aponta que 33, 1 milhões de pessoas não têm o que comer. A pesquisa mostra que mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau– leve, moderado ou grave (fome), em números absolutos, são 125,2 milhões de brasileiros que passaram por algum grau de insegurança alimentar, um aumento de 7,2% desde 2020, e de 60% em comparação com 2018. No RS, 22,2% da população apresenta insegurança alimentar leve, 11,3% moderada e 14,1% grave, totalizando 47,6% da população gaúcha, em algum grau de insegurança alimentar, conforme esse inquérito de 2022. 

Muito se fala que o RS é o celeiro do país, de fato o estado está  na lista dos 5 maiores exportadores  de alimentos,  mas então, porque temos insegurança alimentar? No contexto atual, em um cenário de emergência climática,  esse paradoxo da superprodução e insegurança alimentar , se agrava, considerando a  destruição das áreas de produção de alimentos, sobretudo da agricultura familiar, a dificuldade de acesso a alimentos e avanço da fome , falar em Soberania e segurança alimentar é imprescindível.

Com base nos princípios da soberania alimentar, o Observatório Socioambiental em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (OBSSAN) desenvolveu um indicador de oferta municipal local potencial com a finalidade de avaliar a condição da soberania alimentar dos municípios. O indicador pondera dois parâmetros complementares: a qualidade ofertada de alimentos produzidos nos municípios, considerando a produção de grupos alimentares, e a quantidade produzida, a partir da relação per capita entre a produção local e o tamanho da população. O indicador mensura a oferta local potencial, ou seja se o município apresenta produção em quantidade e qualidade suficiente para abastecer sua população, tomando como referência a produção média necessária de consumo de alimentos por pessoa por dia.

O OBSSAN considerou 7 grupos alimentares para a construção do parâmetro qualitativo do indicador condição potencial de Soberania Alimentar dos municípios, a partir do Guia Alimentar a População Brasileira (BRASIL, 2014) e do Censo Agropecuário de 2017 (SIDRA/IBGE, 2022). A relação dos grupos alimentares presentes nos municípios com a soberania alimentar considera que a oferta local de alimentos desses grupos está relacionada à disponibilidade de alimentos, podendo potencialmente abastecer qualitativa e quantitativamente a população presente nos municípios, dependendo da quantidade produzida e do número de grupos alimentares presentes. Observando 7 grupos alimentares no Censo Agropecuário, (IBGE, 2017) diferenciamos 5 perfis de oferta alimentar e territorialidades. Os perfis de oferta alimentar são considerados para esta reflexão perfis diferenciadores de condições SSAN.

O primeiro perfil PSSAN-RS 1 é apresentado pelas áreas em cor branca (imagem da figura abaixo) e sua condição SSAN é considerada de insegurança alimentar para cerca de 41% da população do estado residente nos 46 municípios localizados nesta área.

Fig1 Perfil SSANS/RS

Os perfis PSSAN-RS 2, 3 e 4 estão representados pela área em cor verde e sua condição SSAN é satisfatória em alerta, respectivamente em 94, 192 e 142 municípios e 1, 2 e 3 grupos alimentares. O perfil PSSAN-RS5 de 22 municípios ocupando a área em cor amarela possui condição satisfatória de SSAN para 4 grupos alimentares. Observando os dados do Censo Agropecuário sobre a oferta de alimentos pela produção, no período agrícola 2016-2017, diferenciamos as 5 regionalidades ou territorialidades de perfil SSAN pelas quantidades da qualidade de 7 grupos alimentares importantes: HORTALIÇAS-LEGUMES-FRUTAS; FEIJÃO; ARROZ; TRIGO; MANDIOCA; BATATA; LEITE. 

Fig2 Distribuição geográfica dos perfis SSAN e população residente

Quando atribuímos quantidades para a qualidade nutricional SSAN, chegamos a um indicador de oferta entre os perfis acima apresentados, destaca-se a oferta de alimentos per capita dia conforme dados observados pelo OBSSAN-UFRGS sobre o Censo Agropecuário realizado pelo IBGE em 2017.

Quadro1 Oferta de grupos alimentareskgpessoadia

A trajetória histórica da oferta de diferentes grupos de alimentos, importantes no RS, permite observar a trajetória de crescimento da oferta pela produção no estado do RS, restrita aos produtos milho, arroz e soja, com decréscimo de oferta dos demais produtos e grupos de alimentos. Assim as tendências futuras de manutenção das trajetórias históricas qualificam a territorialidade pelos perfis PSSAN-RS observada pelo OBSSAN, permitindo a análise de tendências para cenários futuros sobre as afirmações de aumento da insegurança alimentar. Considerando as emergências climáticas, o Estado teve perdas substanciais de áreas de produção, danos severos as rodovias, afetando toda a logística de distribuição, assim compreende-se o rápido desabastecimento de vários grupos alimentares, nas territorialidades dos perfis 1,2 e 3.

Ao observarmos o indicador de oferta de alimentos à população para os grupos de produtos relacionados observa-se taxas de evolução contraditórias se observarmos a concentração nos produtos de exportação milho e soja. O quadro a seguir apresenta a oferta per capita (kg/pessoa/dia) para cada produto. De forma geral a oferta total nos anos 1970 de cerca de 7,14 kg passou para 9,09 kg representando um crescimento de cerca de 27,4% em 45 anos, diferentemente da taxa de evolução da produção total de cerca de 115% e de cerca de 250% para o grupo grãos.

Quadro2 Trajetória histórica da produção-oferta de alimentos no estado do RS em kg per cápita

A oferta de alimentos, não considerando o milho e soja, nos anos 1970 de 4,6 kg por pessoa por dia, após 45 anos, é de cerca de 3,28 kg por pessoa por dia, uma redução de cerca de 29,5%. Esses dados revelam a simplificação das dietas, com redução do consumo de hortaliças, verduras e legumes, e aumento de alimentos ultra processados.

O Rio Grande do Sul, segundo IBGE, nos anos 1970, produzia cerca de 17 milhões de toneladas de alimentos considerando 6 produtos e 3 grupos de produtos monitorados anualmente pelo IBGE e representando as maiores proporções da produção total (acima de 90%). Atualmente, passados 45 anos, a grande mudança que ocorreu no Brasil parece ter ocorrido parcialmente no estado do RS, estes mesmos produtos totalizam cerca de 37,9 milhões de toneladas produzidas anualmente. Um crescimento de cerca de 115% para a produção total e de cerca de 250% para o grupo dos grãos arroz, milho e soja.

Quadro3 Trajetória da diversidade no sistema de produção, estado do RS

Assim, ao associarmos a produção de alimentos indicadores de fome e de pobreza que impossibilitem o acesso à alimentação adequada a condição de segurança alimentar podem estar condicionados e/ou dependentes, historicamente, a segurança de renda. No entanto, ao observarmos a trajetória histórica dos grupos de alimentos da figura anterior, com oferta de milho e soja em crescimento e dos demais produtos em queda, a trajetória histórica da agricultura sugere um contexto atual e futuro de insegurança alimentar e perda da qualidade nutricional.

O modelo agroexportador, conduzido pelo agronegócio empresarial, articulado com o capital financeiro, industrial e o latifúndio produz para atender às necessidades dos mercados internacionais, que nem sempre condizem com as necessidades de alimentos para consumo da população, ou seja, a produção de commodities para exportação gera mais lucro aos grandes produtores, que contam com incentivos e recursos do Estado, flexibilizando a legislação ambiental tornando-a mais permissiva. O agronegócio se populariza através da comunicação de massa, disseminando uma noção de modernidade na produção de alimentos, na sustentabilidade ambiental e como o grande gerador de divisas no mercado internacional, gerando no inconsciente coletivo da sociedade a representação de que agronegócio é sinal de progresso, apostando na sua expansão e no progresso técnico para alavancar a economia do país, mas esse modelo agroexportador não garante a segurança alimentar da população brasileira.

Dados produzidos pelo MapBiomas mostram que, entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul perdeu aproximadamente 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa, o equivalente a 22% de toda cobertura vegetal original presente no Estado (em 1985), formada por florestas, campos, áreas pantanosas e outras formas de vegetação nativa, enquanto isso houve um aumento vertiginoso de lavouras de soja (366%), silvicultura e da área urbanizada do Estado. ⁠

Considerando todos os fatores acima mencionados, podemos inferir que a situação de insegurança alimentar está relacionada as mudanças que ocorreram na agricultura nos últimos 40 anos, a modernização da agricultura, mudanças nos parâmetros de uso do solo, sobretudo no bioma Pampa, fruto do processo de mecanização, que por um lado reduziu o uso da mão de obra, expulsando muitas famílias do campo, por outro aumentou a produtividade, fazendo uso de agrotóxicos, superexploração de áreas planas, beiras de rios, planícies de inundação, aterrando banhados.

Nestes tempos caóticos, políticas públicas fazem-se necessárias para estimular a produção de alimentos diversificados pela agricultura familiar, monitorar a condição de SSAN será fundamental para reestruturar a produção de alimentos, bem como políticas de geração de renda nas áreas urbanas, articulando agricultores e consumidores, para a produção e consumo de alimentos saudáveis, conservando os biomas, restaurando áreas degradadas e sobretudo, repensar o modelo de desenvolvimento do RS.

Artigo original que embasa este artigo:

Dinâmicas da soberania alimentar, segurança alimentar e nutricional no Rio Grande do Sul: indicadores e territorialidades, Segur. Aliment. Nutr., Campinas, v. 1-15.e022033. 2022.

Baixe aqui o artigo “Dinâmicas da soberania alimentar, segurança alimentar e nutricional no Rio Grande do Sul: indicadores e territorialidades

Referências bibliográficas

ABIA, Balanço econômico da indústria de alimentos 2023. Disponível em https://www.abia.org.br/vsn/temp/OnePage_2024_VF_VF.pdf.

IBGE, Censo Agropecuário IBGE 2017. Disponível em : https://censoagro2017.ibge.gov.br/

BRASIL, Lei nº 11.346/2006.Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11346.htm

MAPBIOMAS, Cobertura de solo 2022. Disponível em: https://plataforma.brasil.mapbiomas.org/cobertura

Mirian Fabiane Dickel é Doutoranda em Desenvolvimento rural, PGDR –UFRGS | mirianfabiane@
Alvori Cristo dos Santos é Pesquisador do OBSSAN-Observatório de Segurança Alimentar, Universidade Federal do Rio Grande do Sul | alvoricaelon@hotmail.com
Gabriela Coelho de Souza é Professora da Faculdade de Economia – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) | gabrielacoelho.ufrgs@gmail.com

Publicado originalmente no SUL21
https://sul21.com.br/opiniao/2024/05/indicadores-de-seguranca-alimentar-e-a-condicao-da-fome-na-emergencia-climatica-do-rs/