Blog do IFZ | 21/05/2025
Em um ambicioso esforço dos últimos anos para enfrentar a fome no país, o governo federal se prepara para lançar uma ferramenta que pode redefinir a forma como o Brasil identifica, compreende e combate a insegurança alimentar. Chamado de CadInsan, o novo indicador será apresentado até o fim de junho e representa uma tentativa de romper com décadas de invisibilidade estatística, que dificultaram a atuação eficiente do Estado nas periferias urbanas e nas regiões rurais mais esquecidas do território nacional.
A criação do CadInsan é uma resposta direta ao desafio de retirar o Brasil do Mapa da Fome das Nações Unidas — lista da qual o país havia saído em 2014, mas à qual retornou em 2021. Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), entre 2021 e 2023, o índice de subnutrição no Brasil foi de 2,8%, ligeiramente acima do limite de 2,5% exigido para que um país deixe de figurar entre aqueles onde parte da população não tem acesso regular a alimentos suficientes. A nova edição do relatório internacional será divulgada em julho, e o governo corre contra o tempo: a meta é sair da lista até 2026, último ano do atual mandato presidencial.
Embora o objetivo seja político e técnico, a estratégia passa, sobretudo, pela precisão. Até agora, as políticas públicas de combate à fome se baseavam principalmente em dados estaduais e regionais — recortes geográficos amplos, cuja heterogeneidade dificultava ações focalizadas. O CadInsan propõe inverter essa lógica: utilizará informações do Cadastro Único, cruzando dados sobre renda, composição familiar, localização e outros indicadores socioeconômicos, para estimar o risco de uma família estar passando fome — tudo isso em escala municipal.
Esse nível de detalhamento é inédito e representa uma mudança de paradigma. O CadInsan complementará ferramentas anteriores, como a Tria, que se baseia em apenas duas perguntas aplicadas em unidades básicas de saúde. Enquanto a Tria oferece um retrato pontual e limitado, o novo indicador permitirá uma cartografia contínua e refinada da fome, especialmente nos municípios com menor presença de políticas públicas.
O cenário da insegurança alimentar no Brasil continua alarmante. A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) mostrou que, ao final de 2023, 8,7 milhões de pessoas viviam em situação de fome — o equivalente a 4,1% dos domicílios. Embora esse número seja menor que os 33 milhões registrados em 2022, ainda está distante do patamar de 2013, quando a fome atingia 3,2% dos lares.
A realidade, porém, é profundamente desigual. No Norte do país, cerca de 40% dos municípios apresentam algum grau de insegurança alimentar; no Nordeste, são 38,8%. No Sul, o índice cai para 16,6%. O contraste entre os estados também é marcante: no Pará, 10% dos domicílios enfrentam fome; em Santa Catarina, apenas 1,5%. A geografia da fome ainda reflete desigualdades históricas e estruturais.
A infraestrutura pública de segurança alimentar também reproduz essas assimetrias. Bancos de alimentos existem em apenas 581 municípios — cerca de 10% do total — e mais da metade deles operam exclusivamente com recursos locais. Cozinhas comunitárias estão presentes em 512 cidades, e restaurantes populares, em 387. Essa cobertura limitada fragiliza a rede de proteção e evidencia a necessidade de uma coordenação nacional mais robusta.
É nesse contexto que o CadInsan se articula com outro eixo da estratégia governamental: o fortalecimento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Essa estrutura intergovernamental e intersetorial foi criada para articular políticas e programas voltados à garantia do direito humano à alimentação adequada. Segundo a Secretaria Extraordinária de Combate à Pobreza e à Fome, o SISAN é o principal mecanismo de governança pública para enfrentar a fome de forma sistêmica e sustentável.
Atualmente, menos de um terço dos municípios brasileiros — cerca de 1.600 — aderiram ao SISAN. No entanto, essas localidades concentram mais da metade da população nacional. Estudos mostram que, onde o sistema está implementado, os resultados no combate à fome são mais consistentes. A meta do governo é ampliar a adesão para 3 mil municípios até 2026, e avalia condicionar o acesso a determinados programas sociais à formalização dessa adesão, como forma de garantir continuidade às ações, mesmo com mudanças nas administrações locais.
A integração entre CadInsan e SISAN é o coração do Plano Brasil Sem Fome. O primeiro oferece diagnóstico e monitoramento; o segundo, organização e execução. Ambos se apoiam em programas como o Bolsa Família, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Também há incentivo à agricultura familiar, reconhecida como fundamental para a produção de alimentos saudáveis, diversos e próximos dos centros de consumo.
Com essas iniciativas, o governo busca mais do que atender às exigências de organismos internacionais. Trata-se de criar um modelo permanente de segurança alimentar, resistente a mudanças políticas e às oscilações econômicas. O retorno ao Mapa da Fome não foi apenas um dado estatístico — foi um alerta moral. E o CadInsan, se cumprir sua promessa, poderá ser a ferramenta que transforma dados em ação — e, sobretudo, em comida na mesa de quem tem fome.
O que é o CadInsan?
Nome: CadInsan (Cadastro de Insegurança Alimentar)
Lançamento: Previsto para junho de 2025
Objetivo: Estimar o risco de uma família inscrita no Cadastro Único estar passando fome
Uso: Direcionar políticas públicas com base em dados municipais
Por que o CadInsan é decisivo?
– Torna possível identificar com precisão os territórios onde a fome é mais crítica
– Aprimora a resposta emergencial do Estado ao permitir que recursos e ações cheguem primeiro às localidades mais fragilizadas
– Facilita o monitoramento contínuo e atualizado do quadro nacional de insegurança alimentar, reforçando a capacidade de planejamento a médio e longo prazo
Fonte: Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS)
