Há no mesmo mundo da opulência uma verdadeira estratégia política da fome. A fome é resultado de decisões políticas. Porém, nada deveria ser mais ético, social, político e espiritual do que saciar a fome dos pobres da terra
Por Rafael dos Santos da Silva no Le Monde Diplomatique Brasil | 18/08/2025
As sociedades modernas e “civilizadas” avançaram na ciência e prolongaram a vida com a descoberta dos antibióticos. Criaram boas estruturas técnicas e até levaram o homem ao espaço. Em breve, pretendem habitá-lo. Na área tecnológica, é impressionante imaginar a rapidez da evolução das comunicações, das transações financeiras e do encurtamento dos espaços. Graças as novas tecnologias agrícolas, a produção de grãos a cada ano bate novos recordes. Segunda a FAO, 7,9 milhões de toneladas foram registradas a mais no estoque mundial de 2023[1]. A vida de quem pode acessar bens de consumo é cada vez mais prolongada. Como se pode ver, temos boas razões para acabar com a fome. Contudo, mesmo diante de muita incoerência, porque fazemos tão pouco para erradica-la? Já possuímos condições estruturais para superar a miséria, mas sua forma moderna conheceu, na desigualdade a fase mais perversa da pobreza que tem as digitais no sequestro da liberdade que o ser humano tem para realização do seu projeto de vida. A privação de liberdade, para usar a expressão de Amartya Sen[2], vai ganhar sentido quando a sociedade capitalista inventou a ideia de que somente nela pode haver plena liberdade. Isso se revelou uma meia verdade, especialmente, quando se tem ao fundo a lógica da competição e do crescimento infinito. Na prática, os parâmetros da sociedade capitalista baseada na competição e no crescimento resultou numa sociedade dos mais fortes. Uma rápida visita no sitio da Inequality.org vai revelar que a situação só piora. Segundo nossa fonte, a segunda década do Século XXI conheceu o 1% dos americanos mais ricos a sequestrar, em média, 40% de toda riqueza. Observamos que apenas 7,4 milhões de americanos possuíam pelo menos U$ 1 milhão em ativos investidos. No Brasil, esse número é de apenas 181 mil pessoas que segundo a OXFAN em 2024, acumularam juntos 63% de toda a riqueza produzida. Em tempo, esse mesmo grupo conta com a defesa incondicional do congresso nacional para evitar qualquer taxação de suas fortunas. Estou convencido de que sem compreender este contexto, não podemos problematizar o fenômeno da fome no mundo. Em outras palavras: o inferno da fome reside no mundo das opulências.
Análise da insegurança alimentar no mundo
Inicialmente, é justo anotar que os dados da fome disponíveis pela FAO é um documento institucional, cuja metodologia sugere não realizar comparações entre os países ou mesmo entre os dados do mesmo país para períodos anteriores. Essa recomendação, entretanto, não evita que estudiosos se arvore na teimosia intelectual posto que sua imprecisão não prejudica a tendência com que a realidade possa ser compreendida.
Contudo, há um alerta para se perceber que as coletas sendo de responsabilidade dos diversos países, possa fragilizar o argumento. Todavia, é louvável apresentar um indicador, por mais frágil que possa parecer, dada a possibilidade de manter vivo o debate e, sobretudo, torna possível observar a tendência do caminho que o fenômeno em tela está a percorrer. Neste sentido, sair do mapa da fome, não significa eliminar a fome em um determinado local. Mas, tornar seus níveis “controláveis” precisamente a patamares abaixo de 2,5% da população. Isso sem dúvidas revela o dinamismo da economia local, a disposição social e, principalmente, o apelo político/institucional para enfrentar as chagas abertas da fome.
Ao analisar o relatório da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo, publicado em julho de 2025 pela FAO, vimos que a proporção de pessoas em situação de Insegurança Alimentar Grave é estimada em 638 à 720 milhões de seres humanos. Importa observar que, a zona rural e o gênero feminino ajudam a localizar e a identificar a fome no mundo. Destes, mensura-se que 307 milhões são africanos; 323 milhões asiáticos e 34 milhões são latino-americanas.
Contudo, os dados mais recentes indicam estabilidade nos números da fome com leve tendência a redução deste à nível mundial. Para a Insegurança Alimentar Grave, as estatísticas registraram 15 milhões de pessoas a menos em relação ao período anterior. Nesse particular, mesmo a despeito dos esforços da comunidade mundial, estima-se que o mal uso da economia, especialmente o descontrole sobre a inflação nos alimentos, associada a guerras injustificáveis e a mudanças climáticas, condenaram à fome severa para 36 milhões de pessoas a mais em relação a 2015[3]. Quando se considera a escala de prevalência da Insegurança Alimentar Moderada, estima-se que 2,3 bilhões de pessoas estejam expostas a este tipo de realidade. Quando tomada somente este recorte da medida da fome, nota-se aumento de 335 milhões de pessoas em relação a 2019, e 683 milhões em relação a 2015. (FAO, 2025). Os dados podem ser acompanhados na tabela 01.

Como se pode ver, a evolução global da Insegurança Alimentar Severa se manteve praticamente inalterada com tendência para queda saindo de 10,74% para 10,29%. O mesmo fenômeno é observado na situação de fome moderada. Mas, chama atenção a quantidade de pessoas afetadas por essa modalidade da fome que pode alcançar quase a terça parte da população global.
Ao voltar olhar às regiões, é perceptível notar a queda dos números em todos os continentes e para as duas modalidades investigadas. A exceção vem da África que aumentou a fome severa em 1,44%, e a fome moderada em 3 pontos percentuais.
Chama atenção os dados da América Latina e do Caribe. De modo especial, a redução em 2,6% da fome severa, enquanto a fome moderada caiu 5,38%. Nessa região, é louvável os esforços vindos especialmente do Brasil, que mesmo a despeito de ainda registrar 7,1 milhões de pessoas na Fome Severa, e 28,5 milhões na Fome Moderada, conseguiu novamente sair do mapa da fome. Outro país latino digno de nota é o México, que conseguiu reduzir drasticamente a fome e seu território. Estatisticamente, o Chile continua livre da fome, mas com tendência de aumento.
Noutro polo, os dados vindos da Venezuela são sob certa medida surpreendentes. Nota-se que a despeito da sua economia fragilizada os números são menores quando comparados com a Guatemala, o Equador e o Peru. Os dados da Argentina, apesar de esperados são preocupantes, especialmente pela ausência de projeto político para este tipo de enfrentamento. O Haiti é um caso à parte, em função dos conflitos internos. Os detalhes da América Latina e Caribe, podem ser observados na tabela 02, disponível a seguir:

Em seguida, tem-se o continente asiático, que nos relatórios anteriores figurava como o continente mais afetado pela fome. Os dados recentes revelam um pequeno alívio nos seus registros, com a fome severa caindo em 1,05%, e a fome moderada em 1,27%. Contudo, há graves problemas em Myanmar, Afeganistão e Bangladesch. A exceção deste último, os dois primeiros casos têm na instabilidade política as principais motivações para a produção da fome. Isso faz com que esta área do globo ainda registre o maior número de pessoas em Insegurança Alimentar. A tabela 03, apresenta as principais situações asiática para o período de 2022/2025.

Na sequência, os dados revelam a fome no continente africano. Separamos os casos mais críticos para observar o fenômeno em questão e podemos perceber que as principais causas da fome neste continente ocorrem em países com graves conflitos bélicos internos, prolongadas tensões políticas, econômicas e até religiosas. O fato é que em locais como Libéria e Congo, a fome grave alcança à terça parte da população. Se o recorte for a fome moderada, então os dados percentuais são assustadores e alcançam entre 73 a 80 pontos percentuais desses lugares. Os detalhes estão disponíveis na tabela 04, a seguir.

Importa notar que, embora a fome grave tenha aumentado no continente africano, sua maior prevalência ainda se verifica na Ásia. Uma explicação imediata pode residir na elevada densidade populacional da região, que atualmente concentra 50,48% da população em situação de Insegurança Alimentar Grave. Não obstante, o continente africano abriga 40,7% do total de pessoas nessa condição. Consideradas em conjunto, essas duas regiões reúnem 91,18% das pessoas em situação de Insegurança Alimentar Grave.
Em tempo, é didática a disposição do mapa mundial – imagem 01 – apresentado pela FAO, onde é possível comprovar a existência daquilo que tenho chamado de “o perímetro mundial da fome”. Como é possível observar no grifo sobre o mapa, atualmente a concentração da fome ocorre entre o centro e o leste da África estendendo-se ao oeste da Asia, com prevalência na África subsaariana.
Imagem 01 – Distribuição geográfica da prevalência de Insegurança Alimentar Severa pelo total da população para os últimos três anos

Na sequência, a Oceania mereceu atenção especial devido a disparidade da realidade socioeconômica. Neste particular, ao tomar o bloco pelo conjunto é difícil perceber alterações significativas. Mas, ao retirar das estatísticas a Austrália e a Nova Zelândia, modifica-se totalmente à realidade. Os números dos pequenos países quando analisadas isoladamente, indicam grave insegurança alimentar, como são os casos de Papua Nova Guiné a registrar a prevalência de Insegurança Alimentar em torno de 28.7%, e da pequena ilha de Solomon Islands que chega a registrar níveis na ordem de 20%. Em geral, sem Austrália e Nova Zelândia, a Insegurança Alimentar na Oceania chega a níveis de dois dígitos, alcançando a média de 23,6%, da população. Sendo estes países considerados os números caem para 7,5% atingindo aproximadamente a 4,5 milhões de pessoas.[1]
Finalmente, tem-se a região da América do Norte e Europa, que historicamente registram baixas estatísticas da fome. Ali notou-se redução em ambas as modalidades da fome, caindo em 0,09%. Ainda assim, há aproximadamente 38,6 milhões de norte-americanos expostas a algum tipo de fome. Estima-se que destes, 3 milhões sejam vítimas da fome severa.
É digno notar a ausência de dados para países politicamente fechados, como é o caso da Coréia do Norte. Cuba ainda sofre um embargo injustificável, e sem maiores informações a Rússia registrou na fome grave 4 milhões pessoas. Para esses países a análise fica seriamente comprometida pela ausência de mais elementos.
Finalmente, não poderíamos deixar passar os registros mais emblemáticas de fome, causados por guerras. Na Ucrânia, este fato, forçou 14,7 milhões de pessoas à Insegurança Alimentar. Em comparação aos registros anteriores, anotou-se 2,3 milhões de pessoas a mais em relação ao período anterior. Lugares como Haiti e Palestina, especialmente este último, não há dados suficientes para uma análise mais rigorosa, mas estima-se que há ali uma verdadeira prática genocida, cuja fome é deliberadamente a arma utilizada.
A armadilha da fome é algo sistematicamente arquitetada por um projeto político de poder, cuja a prática dar-se pelo atrofiamento da democracia para a produção/acumulação das riquezas socialmente produzidas. Observar a história de cada país por trás desses números, nos faz lembrar que o colonialismo na sua dimensão econômica, ainda dá o tom do processo. Por outro lado, as estruturas patriarcais, hoje dominadas por ditaduras “legitimadas” pelo uso indiscriminado da força bélica também não foram superadas, e estão a provocar fome severa.
O colonialismo econômico de democracia raptada produz novas formas de produção e consumo, refazendo agora com viés tecnológico às estruturas do sistema de acumulação. Mesmo em países de elevada renda média, tal movimento tende a provocar a perda de direitos, a precarização do trabalho e a deterioração das economias, como é caso do Brasil de 2016 a 2022, e mais recentemente o emblemático caso da Argentina.
Como consequência, há um novo formato de exploração, talvez mais perverso, por adicionada a lógica da uberização das relações de econômicas desarticuladas de direitos fundamentas para a regulação do trabalho. Aqui há de se incluir os ataques institucionais as democracias atingindo fortemente suas políticas de proteção social.
Finalmente, chamo L. Boff para quem não pode haver “nada mais ético, social, político e espiritual do que saciar a fome dos pobres da terra[2]” A fome por ser uma decisão política é uma estratégia de poder, logo não podemos deixar de relacionar a sua presença a uma profunda ausência da ética.
De verdade, há muita incoerência na fome! Mas por que fazemos tão pouco para erradica-la? Por que convivemos com certa naturalidade com tanta opulência em meio a tanta miséria? A fome enquanto estratégia política deveria nos envergonhar e nos mover imediatamente.
Rafael dos Santos da Silva é professor na Universidade Federal do Ceará. Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra e autor do Livro A Dinâmica Social da Pobreza.
[1] Os dados agregados referentes a Oceania podem ser encontrados na tabela 01.
[2] BOFF, Leonardo: A Fome como um desafio Ético e Espiritual. Disponível em https://leonardoboff.org/2017/05/14/a-fome-como-desafio-etico-e-espiritual/
[1] FAO: Situação Alimentar Mundial, 2024.disponível em https://www.fao.org/worldfoodsituation/csdb/es/
[2] Sen, Amartya – Desenvolvimento como Liberdade. 1ª Edição. São Paulo – SP. Companhia das Letras 2008.
[3] Nessa estimativa são excluídos os dados da Palestina e Gabão cujo os conflitos não permitiram mensuração.
Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil
https://diplomatique.org.br/o-inferno-da-fome-no-mundo-das-opulencias/
