Solução passa por uma política tributária que isente (ou até mesmo subsidie) os alimentos saudáveis e pelo estabelecimento de uma política de segurança alimentar e nutricional enraizada nos municípios
Por José Graziano da Silva no Correio Braziliense | 19/05/2024
Há alguns dias, o IBGE trouxe boas notícias: a fome no Brasil diminuiu significativamente no ano passado. Os dados mostram que a insegurança alimentar grave diminuiu de 33 milhões para menos de 9 milhões de pessoas entre o início de 2022 e o fim de 2023 e que a somatória da insegurança alimentar grave e a moderada — ou seja, o total de pessoas que não se alimentam o suficiente para ter uma vida normal — reduziu de 65 milhões para menos de 21 milhões de pessoas no mesmo período.
A maior parte dessa queda foi reflexo das políticas macroeconômicas implementadas em 2023, em especial, o aumento real do salário mínimo, somado à redução do desemprego, ao controle da inflação de alimentos e ao impacto positivo da melhoria de programas sociais, como o Bolsa Família.
Apesar desses avanços, é necessário não se esquecer que quase 21 milhões de pessoas — número que se aproxima à população da região metropolitana de São Paulo — ainda passavam fome no Brasil, no período analisado. E que a fome persiste não pela escassez de alimentos, mas principalmente pela falta de poder aquisitivo dos mais pobres, ou seja, a falta de dinheiro para adquirir os produtos básicos.
A situação ainda é preocupante no Nordeste e, principalmente, na Amazônia, cuja insegurança alimentar está diretamente ligada à devastação causada pelo desmatamento e às atividades do garimpo ilegal, afetando não apenas as terras indígenas, mas também áreas de preservação e terras de pequenos agricultores familiares. Convém destacar que a fome hoje não está mais concentrada nas zonas rurais, como há 20 anos, quando implantamos o Programa Fome Zero. A fome hoje é fundamentalmente urbana — metropolitana, para ser mais preciso, pois está concentrada nas grandes cidades do país.
Infelizmente, o problema hoje não é apenas a fome daqueles que não comem o suficiente, mas também daqueles que comem mal. Na falta de dinheiro, as famílias comprometem a qualidade dos produtos que compram, trocando, por exemplo, a carne por salsicha ou ou o arroz com feijão por macarrão instantâneo. E cortam frutas, verduras e legumes, que, infelizmente, vêm tendo uma inflação muito superior à média, sendo substituídos basicamente por ultraprocessados.
A pesquisa do IBGE confirmou que os que comem mal, que têm uma insegurança alimentar chamada de leve, são 14 milhões de domicílios — cerca de 20% do total. Isso significa que um em cada cinco domicílios no Brasil sacrifica a qualidade da sua alimentação porque não tem poder aquisitivo para comprar produtos adequados. E nós sabemos as consequências disso: sobrepeso, obesidade e doenças associadas, como diabetes, hipertensão e problemas cardíacos, entre outras.
Para erradicar de vez a fome e também a má alimentação, precisamos fazer mais e melhor do que já fizemos, pois trata-se de um desafio mais complicado do que foi antes. As equipes dos ministérios do Desenvolvimento Agrário, do Desenvolvimento Social e da Saúde, que compõem a linha de frente do combate à fome do atual governo Lula, precisam estar empenhadas nisso de forma conjunta. Para tanto, é necessário lançar mão de duas outras políticas públicas da maior importância.
A primeira é a política tributária, que, hoje, contribui para ampliar a desigualdade ao impor os mesmos impostos sobre alimentos tanto para os ricos quanto para os pobres. A proposta apresentada, recentemente, pelo governo se limita a isentar os produtos da cesta básica (e também as contas de água, luz e gás) de impostos federais e oferecer reembolsos via cashback para os mais pobres. Precisamos ir muito além disso. É fundamental também taxar mais os produtos ultraprocessados e isentar (ou até mesmo subsidiar) os saudáveis, especialmente os frescos, como frutas, legumes e verduras, para que sejam acessíveis aos mais pobres.
A segunda é o estabelecimento de uma política de segurança alimentar e nutricional enraizada nos municípios, semelhante às de educação e saúde. A integração das estruturas de assistência social, saúde e segurança alimentar em nível municipal é essencial para alcançar esse objetivo. Isso garantiria uma porta de entrada local para o acesso à alimentação adequada, evitando que situações extremas se tornem casos de polícia — relembrando o recente caso de um adolescente de Minas Gerais que recorreu à central do 190 para alertar que sua família estava passando fome.
pesar dos avanços, ainda precisamos dar esses passos concretos para erradicar a fome no Brasil de forma definitiva. É necessário um compromisso contínuo com políticas de segurança alimentar e nutricional juntamente com programas de transferência de renda às famílias mais vulneráveis. Essas têm que ser políticas permanentes de Estado, e não transitórias de governos. Essa é a dura lição que podemos tirar diante da volta do país ao Mapa da Fome da FAO, com a descontinuação das políticas logo após termos saído desse cenário em 2015.
Somente por meio de um esforço coordenado e sustentado, com a sociedade civil em um papel central, podemos garantir que todos os brasileiros tenham acesso a uma alimentação adequada e digna.
Publicado originalmente no Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2024/05/6860020-o-que-ainda-falta-para-tirar-o-brasil-do-mapa-da-fome.html