John Wilkinson – Texto para Discussão no. 84 / Fiocruz | 2022
A partir da segunda década do novo milênio, a literatura acadêmica e de políticas identifica a difusão de uma nova fronteira tecnológica e de inovação (Liao et al., 2017). Liderada pela digitalização, entendida como um conjunto que integra big data analytics, machine learning, inteligência artificial (AI), e robótica, ela inclui também avanços na genética, na nanotecnologia e em novos materiais, todos organizados sob a égide da digitalização. O centro de atenção tem sido a indústria e as implicações profundas para a realocação produtiva e de emprego, mas os seus impactos sobre o sistema agroalimentar não são menores. Um indicador do poder disruptivo dessas tecnologias é a entrada nos mercados agroalimentares de grandes players do mundo digital, aos quais se combinam os esforços das tradicionais empresas líderes para internalizar essas novas competências estratégicas. Em todos os elos da cadeia agroalimentar, IBM, Google, Microsoft, Amazon e empresas afins contestam a hegemonia de empresas líderes como a Monsanto/Bayer e a Deere a montante até a Walmart a jusante. A integração global do “consumidor” nessa dinâmica de inovação via telefones celulares individuais acelera processos de adoção e difusão em todas as atividades agroalimentares, seja no campo ou nas cidades (Wilkinson, 2019).
Por outro lado, durante mais de uma década, a China, e outros mercados emergentes, sobretudo na Ásia e no Oriente Médio, deslocam o eixo dos fluxos comerciais e da demanda alimentar da Europa e dos Estados Unidos. O mercado global das commodities agrícolas é hoje dominado pela demanda chinesa, sobretudo no que diz respeito aos produtos da dietary transition (carnes e rações), consequência da rápida urbanização por que a China está passando, mas também por demandas de produtos mais sofisticados da sua classe média, que já é calculada em 400 milhões de pessoas e se encontra ainda em vigoroso crescimento. Assim, o valor do consumo doméstico de alimentos na China já supera o dos Estados Unidos. Não se trata, portanto, apenas de mudanças fundamentais nos fluxos globais de produtos agroalimentares, mas de uma reorientação dos investimentos das grandes empresas líderes do sistema agroalimentar em direção à China e aos
outros países emergentes.
Como o Japão nas décadas de setenta e oitenta, mas agora numa escala que coloca em questão a hegemonia do sistema agroalimentar consolidada desde as últimas décadas do século dezenove, primeiro pelas empresas e políticas de Inglaterra e Europa, depois pelas dos Estados Unidos, a China não apenas se torna o maior mercado alimentar, mas contesta a liderança do sistema agroalimentar globalmente. Por um lado, empresas chinesas brigam pela liderança em todos os elos deste sistema (China Chem – insumos; COFCO – trader processadora; Suning Holding Group – varejo). Além disso, com as suas empresas Alibaba e Tencents, entre outras, a China também contesta a liderança na digitalização do varejo e da logística. Por outro lado, com base na iniciativa “Belt and Road”, a China está transformando os fluxos comerciais e abrindo novas oportunidades de fontes de abastecimento de commodities agrícolas, sobretudo na Ásia e na Rússia (Wilkinson, Garcia & Escher, 2022).
Mesmo que a China agora conteste a liderança do sistema agroalimentar, o novo modelo de inovação surgiu no contexto do Norte e com características muito específicas. Podemos identificar três grandes ondas de inovações no sistema agroalimentar. A primeira, a chamada “revolução verde”, foi conduzida por uma rede pública internacional de pesquisa agrícola visando a produtividade agrícola acoplada ao uso de insumos químicos e de irrigação. A segunda, a dos transgênicos, foi liderada pelo setor privado, mas também visando o desempenho agrícola num modelo que integra a genética e a química com novas práticas agrícolas, favorecendo a produção em grande escala. A terceira onda em curso hoje, porém, parte de empresas do tipo start-ups financiadas por capital de risco e cujas agendas são os desafios da alimentação e não necessariamente da agricultura. Assim, como prioridade nessa agenda temos a promoção de carnes alternativas, seja de proteínas vegetais, analisadas por sistemas big data, ou de clean meat, pela multiplicação de células sem a necessidade de abate ou de rações, substituídas por nutrientes. Temos também, em colaboração com pesquisadores e planejadores de “cidades verdes” e de smart cities, a exploração de sistemas de agricultura vertical, projetadas para o ambiente urbano.
Embora essas inovações tenham surgido no Norte e nos Estados Unidos, que detêm amplos recursos agrícolas, elas visam um contexto em que esses recursos já estão, globalmente, escassos (Oriente Médio, Cingapura), ou escasseando pelo avanço da urbanização e da interligação de sistemas viários e pelas mudanças climáticas (China). Alguns analistas avaliam que a partir da década de 2030, a capacidade de escala e a competitividade de preços desses exemplos radicais de alimentos sem agricultura vão colocar em questão sistemas tradicionais de produção de carnes e verduras (RethinkX, 2017).
As inovações apontadas acima podem encontrar barreiras nos movimentos sociais em torno do consumo, como aconteceu no caso dos transgênicos. Por outro lado, as tendências mais notáveis nas últimas décadas, em relação ao consumo, são os avanços de vegetarianismo e veganismo, motivados por considerações de saúde, mas amparados também numa preocupação crescente com os impactos da cadeia de proteína animal para as mudanças climáticas.
Sem recorrer aos cenários mais apocalípticos, é possível pensar que o conjunto das transformações apontadas aqui seja suficiente para modificar a dinâmica das tradicionais cadeias globais de commodities agrícolas. Assim, nesse capítulo examinamos a nova onda de inovações tecnológicas no contexto das transformações geopolíticas em curso no sistema agroalimentar, impulsionadas sobretudo pela centralidade que a China já assume. Um foco específico da nossa análise é o impacto dessas transformações sobre as cadeias globais de proteína animal, tão centrais para as Américas como um todo e muito especialmente para o Cone Sul e o Brasil.
JOHN WILKINSON tem Graduação pela Universidade de Bristol (1965), Mestre pela Universidade de Liverpool (1977) e Doutor em Sociologia pela Universidade de Liverpool (1982). Atualmente é Professor Titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ).
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