Blog do IFZ | 20/06/2025
A pandemia de COVID-19 não apenas paralisou o mundo com seu impacto sanitário, mas também arrastou milhões de pessoas para uma fome até então invisível, espalhada silenciosamente por casas, bairros e territórios inteiros da América do Sul. O estudo “COVID-19 pandemic exacerbated food insecurity in South American countries”, recém-publicado na revista Food Security, é um mapeamento rigoroso e inquietante de uma crise silenciosa, que avançava pelas cozinhas e mesas vazias enquanto os respiradores ocupavam as manchetes e os mercados financeiros oscilavam entre o pânico e a euforia.
Conduzida por uma extensa rede de pesquisadores, a investigação alcançou quase 19 mil domicílios em sete países sul-americanos, com uma metodologia que dialoga tanto com a precisão da estatística quanto com a urgência das emergências humanitárias. Os números recolhidos com o auxílio da Food Insecurity Experience Scale, da FAO, falam de um continente que entrou na pandemia já cambaleante, com 4,5% da população vivendo em insegurança alimentar moderada e 0,6% em insegurança severa. Ao longo de 2020, esses índices saltaram para 16,9% e 2,7%, respectivamente – uma multiplicação que transforma porcentagens em milhões de vidas atingidas.
Ao observar o detalhe dos dados, o Peru emerge como um epicentro particular dessa crise. Ali, o aumento da fome moderada foi de impressionantes 23,9 pontos percentuais, enquanto a fome severa subiu 4,6 pontos. Já no Uruguai, os dados revelaram um fenômeno que desafia estereótipos sobre o perfil socioeconômico do país: foi entre os lares de baixa renda que a escalada foi mais brutal, com um aumento de 40,4% na insegurança alimentar moderada.
O estudo propõe um olhar meticuloso, recusando-se a enxergar a insegurança alimentar como um fenômeno homogêneo. A desigualdade de renda emerge como fator estrutural incontornável: lares que sobrevivem com menos de dois salários mínimos mensais foram os mais vulneráveis em todos os países analisados. Mas a explicação não se esgota aí. O modelo agroexportador sul-americano, orientado para fora, continuou a expandir suas margens de lucro e a sua participação no PIB, mesmo enquanto a fome alastrava. Em 2020, o setor agrícola da região registrou crescimento e aumento nas exportações, enquanto 33,7 milhões de sul-americanos deslizavam para a fome.
Por trás dos gráficos e intervalos de confiança, o estudo revela a fragilidade estrutural dos sistemas alimentares da América do Sul. Países com históricos de desigualdade aguda, baixa proteção social e altos índices de informalidade laboral demonstraram ser os menos capazes de proteger sua população diante do choque sanitário e econômico. Peru e Equador, por exemplo, não apenas sofreram as maiores quedas de PIB no período, como também exibiram os maiores avanços na insegurança alimentar.
Embora reconheça limitações metodológicas – como o uso de coleta online, com acesso restrito em áreas rurais – o estudo se destaca por ser uma das primeiras tentativas de medir de forma comparativa e longitudinal o impacto da pandemia sobre a segurança alimentar na América do Sul. E ao fazê-lo, lança um alerta aos formuladores de políticas públicas: diante de choques futuros – sejam eles pandêmicos, climáticos ou econômicos – não bastará a resposta tardia e emergencial. O desafio, agora explicitado em números, é fortalecer a resiliência dos sistemas alimentares e ampliar as redes de proteção social, se a região quiser evitar que a próxima crise sanitária venha acompanhada de uma nova e ainda mais devastadora crise de fome.
Baixe aqui o estudo “COVID‑19 pandemic exacerbated food insecurity in South American countries“
