Parece comida, mas será para comer? Os perigos dos alimentos ultraprocessados

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Abundam nos anúncios televisivos, nas prateleiras dos supermercados e nas nossas despensas. São baratos, práticos, saborosos e não conseguimos parar de os comer. Um retrato da comida que de alimento tem pouco – e cujo consumo em Portugal está aquém do resto da Europa

Por Inês Loureiro Pinto, Carlos Esteves e Cristiano Salgado no Expresso | 22/01/2025

Se o conceito de ultraprocessado fosse uma pessoa, seria uma das mais jovens da geração Z.
Surgiu em 2009 no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo, liderado pelo professor Carlos Monteiro, que estuda a alimentação dos brasileiros desde os anos 80 e procurava as causas do aumento galopante da obesidade no país.
Na época, 49% da população com mais de 20 anos tinha obesidade ou excesso de peso; entretanto, essa porcentagem subiu para 56%. Bolachas, batatas fritas, refrigerantes, sucos açucarados, snacks ou comidas prontas para levar (delivery) seriam os principais culpados. O que têm em comum? Altos valores de açúcar, sal e gorduras, baixo custo, embalagens apelativas e praticidade no consumo. Sua proliferação foi concomitante ao aumento da prevalência de doenças associadas à alimentação.
Esses produtos existem no mercado desde os anos 80 e já eram chamados de highly processed foods (alimentos altamente processados) pela agência da Organização Mundial da Saúde para a pesquisa do câncer. No seu livro “O Dilema do Onívoro”, de 2006, Michael Pollan os descreve como “substâncias comestíveis parecidas com comida”. Mas foi o batismo do termo por Carlos Monteiro que chamou a atenção acadêmica para o tema.

O que não se encontra na despensa de casa

O processamento de alimentos está presente em nossas vidas há milhares de anos — pelo menos desde a descoberta do fogo — e é necessário. Aquecer, congelar, cozinhar ou fritar é processar. “É importante não demonizar o processamento”, indica Sara Rodrigues, pesquisadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) e professora da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (FCNAUP). Recentemente, foi a pesquisadora-líder de um projeto da FCT dedicado à relação entre o consumo de ultraprocessados, perigos nutricionais e obesidade em Portugal. “Já o ultraprocessamento pode ser evitado, e há muitas coisas de que, com certeza, não precisamos para ter bons produtos alimentares”, afirma.

Pensemos no milho, cereal relevante para a sobrevivência humana. Milho em conserva é considerado processado. Um aperitivo embalado de tiras de milho com sal — já muito longe do pequeno grão amarelo — é ultraprocessado. “Os processos que permitem a produção de alimentos ultraprocessados incluem o fracionamento de alimentos inteiros em substâncias, modificações químicas dessas substâncias, combinação de substâncias alimentares modificadas e não modificadas, uso frequente de aditivos cosméticos e embalagens sofisticadas”, expõe Carlos Monteiro, em comentário publicado na revista Public Health Nutrition em 2019.

Se está embrulhado em plástico e tem pelo menos um ingrediente que não se encontraria normalmente em uma cozinha doméstica, é um ultraprocessado“, observa Chris van Tulleken no livro Pessoas Ultraprocessadas, publicado em outubro pela Lua de Papel. O médico infectologista decidiu ser cobaia da sua própria pesquisa e submeteu-se a uma dieta repleta de produtos ultraprocessados durante quatro semanas. Passou a ter excesso de peso e desenvolveu insônia, azia, sentimentos depressivos, ansiedade, falta de energia, baixa libido e hemorroidas devido à prisão de ventre. “Sentia-me 10 anos mais velho. Não percebi que era tudo por causa da comida até ter deixado a dieta“, relatou à BBC.

A classificação brasileira divide os alimentos em quatro grupos principais: os ingredientes culinários (azeite, sal, açúcar), os não processados ou minimamente processados (como frutas, vegetais, leite), os processados (como atum em lata, pão, queijo, iogurtes) e os ultraprocessados.
A análise observa a extensão e o propósito do processamento. O último é relativamente fácil de avaliar, diz Sara Rodrigues. Contudo, a falta de informações disponíveis sobre o primeiro dificulta a análise pelos cientistas. Isso se deve à pouca informação fornecida pela indústria alimentícia e às possíveis composições de um mesmo produto. Por exemplo, um iogurte pode ser considerado:

  • Minimamente processado (um iogurte natural integral cujos ingredientes são leite pasteurizado e fermentos lácteos);
  • Processado (iogurte natural açucarado, com açúcar e leite em pó);
  • Ou ultraprocessado (iogurte natural açucarado com base de preparado de café, com corantes, espessantes, aromas e conservantes).

Dois iogurtes com a mesma descrição para o consumidor, de marcas diferentes, podem se enquadrar em categorias distintas.

Essas classificações também dependem da geografia, aponta Sara Rodrigues. “Por exemplo, nosso pão em Portugal é geralmente feito na padaria com os ingredientes tradicionais, portanto, é apenas processado. Nós só consideramos ultraprocessado o pão embalado, mas, na maioria dos países europeus, mesmo o pão da padaria já é considerado ultraprocessado.”

Para que servem os ingredientes “incompreensíveis” que lemos nos rótulos? “Alguns têm um propósito nobre”, como a vitamina C (ácido ascórbico) em sucos, que permite que não oxidem tão rapidamente. Em contrapartida, estão os ingredientes que a pesquisadora denomina cosméticos: “São seguros, aprovados, a indústria nos habituou a eles, mas, na realidade, são desnecessários”, como o corante para tornar o iogurte de morango cor-de-rosa, exemplifica Sara Rodrigues.

“Esses ingredientes adicionados não trazem nutrientes e, por isso, reduzem a qualidade e a densidade nutricional dos produtos. São rapidamente processados pelo organismo e, portanto, não saciam — deixam-nos querendo sempre mais.” Outro fator (e talvez o mais relevante) é o custo. A própria definição de Carlos Monteiro diz: “Os processos e ingredientes usados para fabricar alimentos ultraprocessados são desenvolvidos para criar produtos altamente lucrativos (ingredientes de baixo custo, longa durabilidade, promoção da marca), convenientes (prontos para consumo) e hiperpalatáveis, capazes de substituir os outros grupos alimentares.”

“Açúcar, gordura ou sal, que os ultraprocessados geralmente contêm em grande quantidade, são ingredientes mais baratos que o produto-base”, observa Sara Rodrigues. “Percebemos que os engenheiros alimentares sabem muito pouco sobre nutrição e saúde, e os nutricionistas também poderiam saber mais sobre tecnologia”, reflete a docente da FCNAUP.

A pesquisa atual sobre ultraprocessados avalia um produto em sua totalidade. Sara Rodrigues considera que é preciso mais tempo para conhecer os impactos específicos de alguns componentes. “Não é possível dizer que, sempre que um produto tem determinado ingrediente, ele é prejudicial, e, sempre que tem outro, é benéfico”, pondera. “O propósito de um mesmo ingrediente pode ser considerado cosmético em um produto, mas essencial em outro.”

“Ainda assim, essa classificação tem permitido associações com resultados de saúde que são muito evidentes.”

Mais jovens e mais pobres são os mais vulneráveis

A dificuldade em medir o impacto desses produtos se estende, no caso português, à carência de dados disponíveis sobre o consumo alimentar.
O único estudo expressivo atual da dieta dos portugueses é o Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física 2015-2016, do qual a equipe de Sara Rodrigues concluiu que os alimentos ultraprocessados representam 24,4% da dieta dos portugueses. Bebidas não alcoólicas, produtos lácteos, carnes ultraprocessadas, como chouriços e presuntos, e produtos açucarados, como gomas e bolos, são os mais consumidos.
O peso desses produtos é mais acentuado em faixas etárias mais jovens: 37% entre crianças, 36,3% entre adolescentes, 23,8% entre adultos e 16% entre idosos. Apesar disso, os alimentos não processados ou minimamente processados ainda são os mais prevalentes na dieta de todas as faixas etárias, com valores entre 39,5% e 42,7%.

Um estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge publicado em dezembro aprofunda a preocupação sobre a dieta dos mais jovens. A grande maioria de um amplo grupo de ultraprocessados direcionados a crianças (com embalagens coloridas e decoradas com personagens de desenhos animados) não atende ao perfil nutricional saudável e contribui para a “crescente e preocupante prevalência de excesso de peso”. Dados de 2022 indicam que uma em cada três crianças portuguesas tem excesso de peso, das quais 13,5% apresentam obesidade.

As estratégias de marketing não se limitam aos produtos infantis. Muitas embalagens de ultraprocessados exibem mensagens percebidas pelos consumidores como saudáveis — “light”, “0% gordura”, “sem adição de açúcar”, “enriquecido com vitaminas e minerais” e outras. Além disso, o preço competitivo pode levar as famílias, especialmente as que enfrentam vulnerabilidade financeira, a optar por esses produtos em vez de processados de melhor qualidade ou alimentos frescos.

Do Mediterrâneo para o ocidentalizado

Um estudo que avaliou a participação de ultraprocessados nas compras domésticas de 19 países europeus concluiu que Portugal é um dos países com menor consumo (10,2%), em comparação com países como Alemanha (46,2%) ou Reino Unido (50,4%) — este último o segundo país com maior consumo de ultraprocessados no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Uma análise recente da Universidade Johns Hopkins revelou que cerca de 60% das calorias consumidas em casa por adultos norte-americanos vêm de produtos ultraprocessados (70% entre os mais jovens).

Percentagem de alimentos ultraprocessados nas compras domésticas em 19 países europeus

Obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, perturbações mentais, doenças neurológicas ou câncer (doenças crônicas não transmissíveis), que a pesquisa associa ao consumo prolongado desses produtos, são as principais responsáveis por mortes prematuras evitáveis. Segundo a Comissão Europeia, elas representam 80% das doenças na União Europeia.

As mudanças nos padrões alimentares refletem um abandono gradual da dieta mediterrânea nos países do Sul da Europa ao longo dos últimos 40 anos. De acordo com a Balança Alimentar Portuguesa 2016-2020, publicada pelo INE, o baixo índice de adesão em Portugal se deve à diminuição no consumo de vegetais, frutas e leguminosas e ao aumento do consumo calórico proveniente de produtos que não fazem parte da dieta mediterrânea, especialmente carne, gorduras animais e alimentos ricos em açúcar. Sara Rodrigues considera que o abandono “preocupante” da dieta mediterrânea está relacionado tanto ao aumento dos preços dos alimentos tradicionais quanto ao desinvestimento em prevenção. “A prevenção, tanto em nível nacional quanto europeu, é o parente pobre do investimento na área da saúde.”

A transição para uma alimentação mais ocidentalizada acompanha o estilo de vida urbano, que privilegia lanches rápidos a refeições caseiras e planejadas. O relatório “Como Comemos o Que Comemos”, de 2023, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, confirma: “À pergunta sobre como comemos o que comemos em Portugal no século XXI, a resposta mais imediata e mais precisa seria: comemos fora. Não tanto pelo local das refeições, mas porque comemos alimentos que são preparados fora de casa.”

Enquanto o impacto dos ultraprocessados continua sendo estudado, surgem apelos para a taxação desses produtos. Em 2014, o Ministério da Saúde do Brasil foi o primeiro país a incorporar o nível de processamento dos alimentos em suas diretrizes oficiais de saúde, seguindo a classificação de Carlos Monteiro. O professor, hoje com 77 anos, recentemente sugeriu que os alimentos ultraprocessados deveriam ter advertências semelhantes às dos produtos derivados do tabaco.

Curiosamente, as grandes indústrias de tabaco estadunidenses estão ligadas aos primeiros passos da indústria de ultraprocessados nos EUA.

Sara Rodrigues destaca que a população deve assumir responsabilidade e buscar reduzir o consumo. Apesar de os dados em Portugal serem menos alarmantes em comparação a outros países, a pesquisadora ressalta que a pesquisa no país “é uma fotografia, não um filme”, já que não acompanha indivíduos ao longo do tempo. “A obesidade que observamos agora se deve ao padrão alimentar de 10 anos atrás. Os ultraprocessados que estamos consumindo hoje terão reflexos na saúde dentro de 10 anos.”

Publicado originalmente no Expresso
https://expresso.pt/revista/fisga/2025-01-23-parece-comida-mas-sera-para-comer–os-perigos-dos-alimentos-ultraprocessados-c5f205d9