Conjunto de favelas soma mais de 70 mil pessoas, e parte delas não sabe se terá alimento suficiente para chegar ao fim do mês
Por Thayná Rodrigue no O Globo | 16/10/2023
RIO DE JANEIRO | A moradora da comunidade da Zona Norte do Rio se refere à insegurança alimentar que enfrenta ao lado dos dois filhos, Maria Isadora e Enzo Gabriel, de 4 e 9 anos. Desempregada, ela é mãe solo e faz parte do grupo de 8.676 entrevistados que responderam a uma pesquisa do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) que indica que 75% das famílias com crianças de até 6 anos que moram no conjunto de favelas convivem ou conviveram com algum dos níveis de insegurança alimentar de moderada a grave nos últimos três anos. A divulgação dos dados será hoje, no Dia Mundial da Alimentação, uma referência à criação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 1945.
“A minha expressão não muda”, diz Glauce da Costa, de 29 anos, ao explicar por que, ao posar para as fotos desta reportagem numa laje no Complexo do Alemão, onde vive, seu semblante de preocupação se mantém. — A gente dorme e acorda sem saber o que vai acontecer no outro dia — lamenta.
— A gente contava com as doações de cestas básicas de igrejas, como a de Inhaúma. Eu comecei a ter benefício do Bolsa Família depois que meu filho nasceu. Me lembro de uma vez que disseram que eu só tinha R$ 27 para receber. Não valia nem a pena descer o morro para buscar. Mas era aquilo ou nada — lembra Glauce.
Bicos para somar
Atualmente, ela vende lingerie e tem outro trabalho informal que ajuda a colocar comida em casa: a pé, leva e busca crianças em escolas públicas da região. Às 7h, Glauce já se prepara para a peregrinação pelas ruas do Complexo do Alemão, que tem 70 mil habitantes, de acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
— Por criança, eu ganho R$ 60 do responsável num mês. Se levar e buscar, o valor dobra — explica ela, que acrescenta: — Para conseguir comida, volta e meia eu e mais mulheres fretamos uma Kombi para catar verduras e legumes na Ceasa de Irajá. Tem gente que faz durar três meses.
Classificações variam
De acordo com Juliana Lignani, professora do Departamento de Nutrição Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), segurança alimentar é quando todas as pessoas de uma casa têm acesso à comida em quantidade suficiente ao longo dos meses. Já insegurança leve é quando, dentro dos domicílios, as pessoas têm a preocupação que o fim do mês vai chegar e elas não terão dinheiro para adquirir uma alimentação de qualidade e em quantidade suficiente.
— A insegurança moderada envolve domicílios em que as pessoas estão fazendo mudanças na qualidade para que se mantenha a quantidade de alimentos ou que já tem adultos que começam a comer menos ou deixam de comer para que a comida dure mais tempo. A grave é quando, além da restrição da qualidade da alimentação, essas pessoas já começam a não ter o que comer. E, quando tem criança no domicílio, esse quadro já a atinge — explica a professora.
Glauce, atualmente, recebe Bolsa Família de R$ 800 e é uma das pessoas do Alemão na categoria de insegurança alimentar moderada, mas já passou por outro nível:
— Da pandemia para cá, já houve dia de faltar comida, situações em que eu diminuía a minha quantidade para dar aos meus filhos. Até hoje, eu compro pé de galinha, moela, pescoço… Carne vermelha é mais cara.
O estudo do Ibase em parceria com o Instituto Raízes em Movimento e a ONG Educap foi feito com pessoas com mais de 15 anos em locais de alto fluxo de pedestres em 13 regiões internas do Complexo do Alemão: Nova Brasília, Reservatório, Alvorada, Morro das Palmeiras, Casinhas, Fazendinha, Pedra do Sapo, Mineiros, Morro do Adeus, Morro da Baiana, Matinha, Grota e Morro do Alemão.
Cerca de 20 pessoas da própria comunidade, entre 142 que se inscreveram, foram treinadas para o trabalho de campo. Joice Lima, socióloga e pesquisadora do Ibase, explica:
— Estatísticos deram orientações técnicas e de segurança. Tudo era feito em pontos com maior circulação de pessoas.
Uma pesquisa nacional feita pela Rede Penssan (Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) em 2022 indica que lares com crianças têm mais fome.
“A fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos, passando de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Na presença de três ou mais pessoas com até 18 anos de idade no grupo familiar, a fome atinge 25,7% dos lares. Já nos domicílios apenas com moradores adultos a segurança alimentar chegou a 47,4%, número maior do que a média nacional”, informa o relatório.
Liliane de Castro, de 30 anos, é outra mãe do Complexo do Alemão que enfrenta dificuldades para levar comida para casa. Ela tem Luiz Fernando e Lara Vitória, de 13 e 8 anos, e trabalha informalmente fazendo faxina em eventos esportivos no Ginásio Gilberto Cardoso, o Maracanãzinho, na Zona Norte do Rio.
— Não posso perder meus R$ 140 por dia. É pouco, mas está ajudando. Só que nem sempre eles chamam. Meus filhos estudam numa escola pública em Olaria. Ontem teve tiroteio e eles não puderam ir. Eu digo para eles comerem lá porque o prefeito dá as refeições, mas eles respondem que a comida não é boa, não tem sal, não tem gosto — diz a auxiliar de serviços gerais.
Impacto da pandemia
Questionado sobre que políticas públicas municipais podem minimizar esse quadro, Adilson Pires, secretário de Assistência Social da prefeitura, diz que as escolas públicas servem refeições para 619 mil crianças, café, almoço e lanche, e que debates sobre o tema estão na agenda para que haja melhorias:
— No Rio, demos posse ao Conselho de Segurança Alimentar, que antes não havia, e vamos participar de conferências, entre elas a estadual. O agravamento da pobreza desde a pandemia é um fato real. A saída para essas ações envolve o poder público municipal, mas também o federal.
Banco de alimentos
Pires diz ainda que a pasta está desenhando um projeto piloto que propõe a criação de um banco de alimentos no Ecoparque do Caju e que ele pode inspirar atendimento para outras regiões. Batizado de Alimenta Rio, a iniciativa inclui doação de frutas, legumes e verduras a mil famílias inscritas no CadÚnico e a catadores que trabalham no local. Trata-se de um acordo de cooperação internacional entre as cidades de Colônia, na Alemanha, e do Rio de Janeiro. Previsto no Decreto Municipal 50.703, ele terá a participação da Comlurb, que cederá o espaço, e do supermercado Zona Sul, que doará alimentos.
— Nesse caso específico, o programa vai atender o Caju. Mas vamos buscar ampliar para que outras redes façam essa parceria conosco. Essa iniciativa começará a funcionar na segunda quinzena de novembro. E pode ser o caminho para uma política persistente da secretaria, com parcerias com o setor privado. A gente pode, por exemplo, pensar nessa estratégia para o Complexo do Alemão — afirma o secretário.
Publicado originalmente no O Globo
https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2023/10/16/pelo-menos-75percent-das-familias-com-criancas-vivem-inseguranca-alimentar-no-complexo-do-alemao-revela-pesquisa.ghtml