É ação social com repercussão macroeconômica
Por Flávia Oliveira no O Globo | 31/03/2023
O trimestre de debate menos dogmático e mais arejado sobre política econômica deu na (provável) substituição do teto de gastos atrelados à inflação por um regime que autoriza aumento de despesas numa proporção do crescimento das receitas. Bem ao gosto de Lula. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, gastou sola de sapato e saliva peregrinando por Palácio do Planalto, Esplanada dos Ministérios, Câmara dos Deputados, Senado Federal. O esforço rendeu reconhecimento tanto no mundo político quanto no financeiro. Prova disso foi que, em resposta à apresentação da nova âncora, o Ibovespa subiu ontem pelo quinto dia seguido, e o dólar caiu para R$ 5,09, menor nível desde o início de fevereiro.
Em aceno ao liberalismo, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, participou do anúncio do arcabouço fiscal. Não escondeu que as regras não visam à diminuição do gasto público e sinalizou melhora na qualidade dos desembolsos. Tocou numa dimensão inteiramente desprezada pelo governo anterior. A dupla Jair Bolsonaro-Paulo Guedes gastou não apenas muito — o teto de gastos foi arrombado ano sim, ano também —, como mal. Nos dois primeiros anos da pandemia, ex-presidente e ex-ministro empenharam uma década do orçamento habitual do antigo Bolsa Família e deixaram o país com 33 milhões de famintos e proporção de pobres quase inalterada, dada a inconsistência da política social. Na Saúde, 39 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 se perderam, num prejuízo de R$ 2 bilhões. Responsabilidade fiscal não é somente gastar menos, mas usar bem os recursos públicos.
O contraste é o Banco Central. Na última terça-feira, a ata da reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) foi peça exemplar de uma atuação quase religiosa, em que o contraditório é desprezado. A autoridade monetária, Roberto Campos Neto à frente, identifica, mas minimiza os efeitos da taxa básica de juros na atividade e no emprego, elementos também contidos na missão do BC autônomo. Os juros do crédito a empresas e pessoas físicas alcançaram o maior nível em cinco anos e meio, 44,2% ao ano. Há restrição de empréstimos a empresas, principalmente no varejo; a atividade perdeu força, vide a profusão de férias coletivas nas montadoras. Há pressões inflacionárias decorrentes de efeitos da pandemia nas cadeias produtivas, de choques nos preços de combustíveis e alimentos, por motivos que vão da guerra entre Rússia e Ucrânia aos extremos climáticos.
Os alertas atravessam empresariado, núcleo político do governo, integrantes não petistas da equipe econômica (de Tebet ao vice Geraldo Alckmin, ministro do Desenvolvimento), o Nobel de Economia Joseph Stiglitz e André Lara Resende, um dos pais do Plano Real. Nada. Ainda ontem, o BC atualizou projeções para o PIB (+1,2%) e o IPCA (5,8%) de 2023. Avisou que as chances de a inflação fechar, de novo, acima do teto da meta são de 83%. Mas o Copom seguirá abraçado aos juros básicos de 13,75% ao ano — e a Selic pode até subir.
Nada convence os cérebros do BC de que a taxa de juros não está servindo para derrubar uma inflação que sobe, mas não por demanda aquecida. Boa parte da queda do IPCA em 2022 foi decorrente não da Selic estacionada em 13,75% desde agosto, mas da desoneração da gasolina e da energia elétrica pelo corte no ICMS e pela desoneração de PIS/Cofins, ora parcialmente recomposta. A equipe econômica espera colaborar com a autoridade monetária implantando um regime fiscal que produza superávits e, com o tempo, reduza a dívida pública como proporção do PIB. Terá de fazer mais.
Num cenário de flagrante dificuldade para a Selic derrubar o IPCA, caberá a outras áreas do governo papel auxiliar à política monetária. Para um IPCA de 4,52% em 2020, 10,06% em 2021 e 5,79% no ano passado, o preço da alimentação no domicílio saltou, respectivamente, 18,16%, 8,23% e 13,21%. Sozinha, a inflação da comida contribuiu com 2 pontos percentuais no IPCA de 2022, sublinha Arnoldo de Campos, economista dedicado a estudos sobre inclusão econômica e segurança alimentar:
— A alta nos preços dos alimentos, em particular, feijão, arroz, hortaliças, frutas, leite, mandioca, batata, prejudica a população mais pobre, mas afeta toda a economia. Não há taxa de juros que resolva o problema. A política agrícola não deve se resumir às commodities para exportação, precisa se voltar à produção e à oferta de alimentos básicos, que estão estagnadas ou em queda no Brasil. As políticas de abastecimento precisam ser reinventadas, para fazer frente aos desafios da oferta e estabilizar preços.
Em resumo, o solo fértil da agricultura familiar, a política de abastecimento, estoques reguladores aniquilados em anos recentes podem fazer mais pela queda da inflação que o colegiado do Copom. É ação social com repercussão macroeconômica.
Publicado originalmente no O Globo
https://oglobo.globo.com/opiniao/flavia-oliveira/coluna/2023/03/politica-de-abastecimento-pode-ajudar-a-baixar-inflacao-mais-que-copom.ghtml