Políticas de Segurança Alimentar: Combate à Fome e à Pobreza Rural

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Maya Takagi, José Graziano da Silva e Walter Belik | 03/04/2002

Baixe aqui o livro síntese do Seminário “Políticas de Segurança Alimentar: Combate à Fome e à Pobreza Rural

Prefácio por Maria da Conceição Tavares

Participei do Seminário “Políticas de Segurança Alimentar: Combate à Fome e à Pobreza Rural“, realizado na Unicamp, nos dias 2 e 3 de abril de 2002. Foram dois dias proveitosos para discutir e avançar nas proposições e soluções de um problema que deve ser priorizado em todas as instâncias dos governos, pela sociedade civil e pelos pesquisadores.

Quero ressaltar três pontos que defendi no segundo dia do evento: 1) há recursos disponíveis no orçamento da Seguridade Social; 2) existem dois grupos de risco que devem ser priorizados: crianças e idosos; 3) devemos batalhar por outra instituição que cuide do assunto do crédito, que não esteja vinculada ao sistema financeiro.

Quando defendemos a ideia de uma Seguridade Social Universal que inclua a previdência, a assistência social e a segurança alimentar, defendemos isso para todos: idosos, crianças, mulheres, negros, indígenas. Nunca devemos recuar deste princípio da universalidade para políticas de focalização e políticas diferenciadas para cada grupo. Isso é um direito garantido pela Constituição.

Decorre disso que há um orçamento da Seguridade Social, mas que não está sendo integralmente aplicado para seus objetivos. Mais de R$ 100 bilhões disponíveis são desviados para a amortização da dívida, devido às políticas do FMI. O suposto déficit da previdência social é apenas mais um véu para encobrir esse descalabro.

Por que temos que lutar para manter o conceito de Seguridade Social Universal? Porque só assim podemos defender os dois grupos mais vulneráveis: crianças e idosos, sejam eles mulheres, negros ou indígenas. Se deixarmos ao sabor do mercado ou da decisão de cada família, seja no campo ou nas cidades, elas tenderão a alimentar primeiro o homem que traz renda para a família, depois a mulher, os filhos e, por último, os idosos. A menos que haja um sistema de seguridade. É por isso que precisamos de uma previdência social, qualquer que seja o grau de contribuição, mesmo que seja nulo; garantir o fornecimento de leite para as crianças. Tudo isso não é caridade. É um direito. Está na Constituição de 1988.

O mesmo vale para o sistema de crédito. Os assentamentos precisam de crédito para ajudar a solucionar o problema do leite para as crianças, por exemplo. O agricultor familiar precisa de crédito, mas o atual sistema financeiro não está interessado em oferecer crédito para ele. Se não mudarmos esse modelo, daqui a 10 anos estaremos discutindo o mesmo assunto e reclamando dos mesmos problemas.

Não se trata, portanto, de voltar ao passado, mas, pelo contrário, de avançar com um rumo diferente e estruturalmente mais equilibrado. Esta nova transição democrática requer a ruptura com o padrão patrimonialista de gestão estatal e com a submissão da acumulação interna à lógica do capital financeiro internacional. Não bastam apenas declarações de inversão de prioridades e “falsos consensos” sobre a necessidade de retomada do crescimento. Um novo modelo de desenvolvimento exige, sobretudo, a ruptura do pacto das forças conservadoras que vêm governando este país e deturpando sistematicamente a orientação social e o interesse nacional de nossa transição democrática inicial.

A prioridade social tem de ser a essência do desenvolvimento econômico e não um mero apêndice ou um suposto resultado natural do crescimento econômico. Os macro-objetivos e prioridades sociais são basicamente três: 1) a inclusão de 56 milhões de brasileiros, subcidadãos que sobrevivem em condições de extrema precariedade, sem acesso aos bens e serviços essenciais a uma vida minimamente digna, com atenção preferencial para os setores mais vulneráveis, como crianças e idosos; 2) a preservação do direito ao trabalho e da seguridade social de milhões de assalariados e pequenos e médios produtores rurais e urbanos, além da criação de novas fontes de emprego para jovens que buscam ingressar no mercado de trabalho; 3) a universalização dos serviços sociais básicos, com a elevação progressiva da qualidade dos serviços prestados e o crescente envolvimento da população na sua gestão, em coordenação com as várias esferas de governo.

A transformação do social no eixo do desenvolvimento não significa somente revalorizar, nos planos de governo, os chamados aspectos sociais — fome, educação, saúde, saneamento básico, habitação e cultura —, que são programas em si mesmos meritórios para ampliar o emprego e a cidadania. Significa ir além disso e conceber programas coordenados de investimento nesses setores, na infraestrutura e nos sistemas logísticos e de crédito interno, transformando-os em vetores do crescimento, da distribuição de renda e do emprego. Deve significar também uma ocupação mais racional do espaço, sobretudo dos recursos naturais e das fontes de água e energia, além de conceber e levar à prática uma geopolítica interna soberana, autosustentável e pactuada a todos os níveis da Federação.

A ampliação da produção de alimentos é essencial, já que a elasticidade da demanda frente a políticas redistributivas, em níveis baixos de renda, costuma ser extremamente elevada. A organização do abastecimento desses bens (que não passam pelas redes de exportação das grandes commodities agrícolas) é essencial, sobretudo no caso dos alimentos produzidos pelos assentamentos de uma reforma agrária ampliada, que é indispensável para assegurar a eficácia do esforço de aumento da produção, distribuição da renda e da propriedade.

As políticas redistributivas e de emprego também levarão a um aumento da escala dos setores de bens tradicionais que, além de atender ao aumento do consumo popular, permitirão uma especialização e diferenciação de produtos, favorecendo o aumento da eficiência de certos complexos agroindustriais que vão dos recursos naturais ao produto final. Assim, o aumento da escala de produção de bens de uso generalizado cria condições para o crescimento simultâneo do consumo interno e das exportações.

Finalmente, a expansão da renda e do emprego permite um aproveitamento seletivo da capacidade ociosa existente nos setores mais modernos da economia, que deixaram de ser dinâmicos. Estes voltarão a crescer pela demanda induzida de bens finais manufaturados mais complexos e componentes de suas cadeias produtivas. Aqui, o problema central é o da restrição externa, onde é necessário aumentar simultaneamente a produção, as exportações e a substituição de importações.

Os textos aqui publicados, apresentados e discutidos no seminário, permitem compreender como alguns países do nosso continente enfrentam o problema específico do direito à alimentação e como o Brasil vem tratando este problema na última década. Mas devemos reconhecer que cada país tem sua especificidade. Por isso, vemos aqui também uma proposição concreta de como avançar de forma estrutural e específica nesta área da seguridade social e alimentar, que tanto necessitamos neste país.

Maria da Conceição Tavares

Apresentação por José Graziano da Silva, Walter Belik e Maya Takagi

Quais são as alternativas?

O Brasil atravessa, neste ano, em função das eleições presidenciais de outubro, uma fase de debates sobre projetos alternativos. Um dos temas em discussão é o da “Segurança Alimentar e Combate à Fome”.

Estudos recentes demonstram que houve um aumento nos níveis de pobreza e vulnerabilidade à fome no período de 1995 a 1999, especialmente nas áreas metropolitanas, fruto, notadamente, dos crescentes níveis de desemprego e dos baixos salários. Assim, embora a pobreza esteja fortemente concentrada na região Nordeste (50% dos pobres), ela tem crescido em quase todas as regiões metropolitanas (a uma taxa de 5% ao ano no período de 1995/99), e ainda mais em estados ricos, como a Grande São Paulo (9,2% ao ano) e a Região Metropolitana de Porto Alegre (7,8% a.a.), segundo dados do Instituto Cidadania.

Existe um amplo consenso de que o principal problema da fome, hoje, não é a falta de produção de alimentos, mas sim a falta de renda para adquiri-los em quantidade suficiente e com qualidade adequada. As estimativas da FAO — organismo das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação — mostram que o Brasil tem uma disponibilidade de alimentos per capita equivalente a 2960 kcal/dia, muito acima do mínimo recomendado de 1900 kcal/dia. O problema é que o consumo de alimentos está diretamente relacionado à renda das famílias. E, como a renda é muito mal distribuída em nosso país, uma parte significativa da população não tem acesso a esses alimentos nem mesmo na quantidade mínima necessária para garantir a sobrevivência. No Brasil, há hoje uma grande parcela de subnutridos com um consumo médio de 1650 kcal/pessoa/dia, de tal forma que estamos classificados pela FAO na categoria 3 (de 1 a 5, para proporções crescentes de subnutridos), juntamente com países como Nigéria, Paraguai e Colômbia, por exemplo.

Não obstante, verificou-se que as políticas de apoio alimentar foram sendo desmontadas no país ao longo da década de 1990, e não há uma política que englobe ações diretas de combate à fome. As políticas existentes hoje encontram-se fragmentadas em várias ações e pautam-se, fundamentalmente, pela transferência de valores monetários insuficientes para alterar o quadro de miséria e desnutrição em que vivem as famílias beneficiadas.

Quais são as novas propostas existentes hoje para combater a fome e a pobreza?

Há um amplo leque de propostas que podem ser agrupadas em duas alternativas principais: por um lado, há uma visão que defende a existência de recursos e políticas suficientes, sendo o problema a necessidade de uma melhor focalização nos pobres. Para seus defensores, os recursos dos programas assistenciais não chegam aos realmente necessitados de forma eficiente. Daí decorre a substituição de diversas políticas (como aquelas ligadas à distribuição de alimentos, como o fornecimento de leite e cestas básicas) por políticas de assistência social embasadas em uma complementação de renda monetária às famílias pobres. Essa é a proposta subjacente às políticas do atual governo federal, defendida por alguns pesquisadores ligados ao Ipea e ao Banco Mundial.

Do outro lado, estão as propostas de políticas específicas de ajuda alimentar, associadas a políticas estruturais, como geração de renda e emprego, reforma agrária, políticas de apoio à agricultura familiar, aumento do salário mínimo e ampliação da previdência social, por exemplo. Para seus defensores, políticas diretas de segurança alimentar e combate à fome devem ser adotadas, fornecendo os meios básicos para a sobrevivência das famílias sem condições econômicas, mas, ao mesmo tempo, criando mecanismos dinâmicos em outras áreas da economia, como a produção e a distribuição de alimentos, servindo, também, como mecanismos educativos para a libertação da dependência dessas políticas específicas.

Na nossa opinião, limitar-se a políticas emergenciais ou assistenciais, sem considerar as causas estruturais da fome e da miséria, como o desemprego, o baixo nível de renda e sua altíssima concentração, fará apenas com que o problema e a necessidade de tais políticas assistenciais se perpetuem.

Dessa forma, a primeira grande questão a ser debatida no seminário será sobre a necessidade ou não de uma política específica de segurança alimentar e combate à fome para o Brasil. E também: quais as diferenças entre a eficácia das políticas específicas e a alternativa da substituição de diversas políticas sociais por uma transferência direta de renda, como os programas de renda mínima?

Com relação às políticas específicas, pretendemos recolher os ensinamentos das experiências internacionais, como a distribuição de bens em espécie (caso das cestas básicas e da distribuição de leite no México) e a distribuição de alimentos na forma de vales ou cupons (caso do Programa Food Stamp, nos Estados Unidos, e do tíquete do leite, no Brasil), além do papel das políticas de nutrição, políticas agrícolas e da reforma agrária para alcançar a segurança alimentar.

Convidamos a todos para este debate.

José Graziano da Silva, Walter Belik e Maya Takagi
Coordenadores do Projeto Fome Zero
Fevereiro de 2002

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