Revolucionário, Guia Alimentar chega aos dez anos como exemplo para o mundo e apontando contradições

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Documento apresentou nova classificação dos alimentos e criou o conceito de ultraprocessados, prejudiciais à saúde

Por Flávia Mantovani na Gama |11/12/202

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Consumir frutas, verduras, legumes e alimentos naturais. Moderar a quantidade de açúcar, sal e óleo utilizados nas preparações. Preferir restaurantes que servem refeições feitas na hora ao fast-food. Comer com regularidade, variedade e atenção. Recomendações como essas, presentes no Guia Alimentar para a População Brasileira, são tão simples que parece não ser necessário que exista um documento oficial para validá-las. Mas por trás da aparente simplicidade do guia, que completou uma década neste ano, existem inovações que transformaram a forma como pensamos a alimentação no país e fizeram do documento uma referência mundial, inspirando manuais semelhantes em outros países, políticas públicas e pesquisas científicas pelo mundo.

Lançado pelo Ministério da Saúde em um contexto de crescimento da obesidade no país, o guia traz diretrizes sobre o que é uma alimentação saudável e adequada para a população brasileira, com uma linguagem acessível mesmo para quem não é profissional da saúde. O Brasil já tinha lançado uma primeira versão do documento, em 2006. Mas foi a segunda edição, de 2014, que ganhou destaque e repercussão, por classificar os alimentos de uma maneira diferente da que se fazia até então.

Pelo paradigma vigente, a qualidade da alimentação era avaliada de acordo com nutrientes isolados: era esse o raciocínio por trás da famosa pirâmide alimentar, que define as porções recomendadas de carboidratos, proteínas e gordura, por exemplo. O guia, por sua vez, classifica os alimentos de acordo com seu grau de processamento industrial e resume suas orientações em uma “regra de ouro”: “prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados” — categoria que engloba produtos como refrigerantes, biscoitos, salgadinhos de pacote, salsicha e mesmo o pão integral de forma que parece saudável, mas pode estar cheio de aditivos.

Foi a necessidade de investigar os motivos da epidemia [de obesidade] que nos levou à hipótese do ultraprocessamento

Essa divisão dos alimentos, batizada de “classificação Nova”, havia sido proposta cinco anos antes por um grupo de pesquisadores do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde), da Faculdade de Saúde Pública da USP, liderados por Carlos Augusto Monteiro, hoje professor emérito da instituição. Naquela época, o Nupens tinha vasta experiência com pesquisas sobre desnutrição. “Observamos que a queda da desnutrição no Brasil, no início dos anos 2000, era vinculada aos programas de proteção social que melhoraram a renda familiar e o acesso aos serviços públicos de saúde. Ao mesmo tempo, percebemos o aumento da obesidade, e foi a necessidade de investigar os motivos da epidemia que nos levou à hipótese do ultraprocessamento”, contou Monteiro em entrevista a Gama.

Ao buscar explicações para essa epidemia, os pesquisadores perceberam que a população comprava menos sal, açúcar e óleo do que antes, mas consumia mais produtos industrializados com alto grau de processamento — ou seja, o tradicional arroz com feijão estava sendo substituído por opções prontas como macarrão instantâneo e lasanha congelada. Surgiu, ali, o termo “ultraprocessado”, hoje amplamente citado dentro e fora do meio científico, no Brasil e no exterior.

Testada em uma série de estudos, a pesquisa do Nupens serviu de base para a elaboração do Guia Alimentar e se desdobrou em uma série de políticas públicas como, por exemplo, o decreto 11.936/2024, que vetou os ultraprocessados na cesta básica. Além disso, o modelo brasileiro inspirou países como Uruguai, Equador, Peru, Chile e México a desenvolverem guias semelhantes. O último foi a Índia, em 2024. Hoje, Bélgica e Canadá também adotaram o conceito de ultraprocessados em suas recomendações alimentares.

Outro termômetro da relevância da Nova é o fato de Carlos Monteiro ser, atualmente, o pesquisador brasileiro mais citado em periódicos científicos no mundo, considerando todas as áreas do conhecimento. Para Monteiro, o nascimento da classificação foi possível graças a uma combinação de fatores, como ter sido gestada em uma faculdade de saúde pública, de natureza transdisciplinar, e contar com financiamento público, livre do conflito de interesses com a indústria de alimentos.

É muito raro que uma inovação desse tamanho venha de um país periférico como o Brasil. Isso dificultou que esse conceito fosse incorporado de imediato

Suas conclusões, porém, foram muito questionadas, especialmente nos primeiros anos. Várias críticas vieram, e ainda vêm, de entidades representativas da indústria e de cientistas que atuam como consultores do setor. Mas parte da resistência pode ser explicada pelo fato de uma teoria que desafia paradigmas estabelecidos no meio científico ter surgido fora do Norte Global, observa André Degenszajn, diretor-presidente do Instituto Ibirapitanga, que apoia iniciativas voltadas para a construção de sistemas alimentares saudáveis, justos e sustentáveis. “É muito raro que uma inovação desse tamanho venha de um país periférico como o Brasil. Isso dificultou que esse conceito fosse incorporado, de imediato, pela comunidade científica e por governos de outros países”, afirma.

A publicação de pesquisas europeias e americanas comprovando os achados brasileiros alçou a Nova e o guia a outro patamar. Uma delas, considerada um divisor de águas para a chancela internacional à Nova, foi liderada pelo americano Kevin Hall, do National Institute of Diabetes & Digestive & Kidney Diseases. Inicialmente um cético em relação aos conceitos do Nupens, ele utilizou uma metodologia considerada padrão-ouro no meio científico.

“Ele fez um experimento randomizado, com um grupo comendo uma dieta baseada em ultraprocessados e outro, alimentos in natura, e equiparou de forma muito rigorosa a quantidade de calorias e de nutrientes entre as duas dietas”, explica Degenszajn. “A conclusão foi que o primeiro grupo ganhou peso e piorou a saúde e o outro, não.”

Mais recentemente, em fevereiro deste ano, foi publicado no “British Medical Journal” outro artigo emblemático: uma revisão de estudos que encontrou “evidências convincentes” da associação entre o consumo de ultraprocessados e 32 problemas de saúde — de doenças cardiovasculares, câncer e obesidade à depressão.

O Nupens também seguiu investigando os efeitos do consumo de ultraprocessados sobre uma série de indicadores, do risco de sobrepeso em bebês ao hábito de “beliscar” entre as refeições. Uma das pesquisas mais recentes tem relação direta com o Guia Alimentar. “O estudo mostrou que indivíduos que seguem as orientações do guia têm dietas mais saudáveis e identificam mais facilmente os ultraprocessados como prejudiciais à saúde”, diz Carlos Monteiro. “Isso comprova que a adesão às práticas recomendadas pelo guia tem um impacto direto na saúde das pessoas.”

Cuscuz e açaí

Além da divisão dos alimentos pelo grau de processamento, o guia traz dicas de refeições completas para café da manhã, almoço e jantar, com ingredientes comuns em diferentes regiões do Brasil, como cuscuz ou açaí. O texto também traz considerações sobre sustentabilidade dos sistemas alimentares e sobre a dimensão sócio-cultural da comida.

“Ele apresenta os aspectos nutricionais, mas também a conversa sobre o hábito de comer. Se você está comendo sozinho, em frente a uma tela, isso repercute na mastigação, na digestão, na sensação de saciedade, na capacidade de regular o que está comendo. Isso tudo interfere na saúde”, diz Daniela Cierro, consultora da Asbran (Associação Brasileira de Nutrição), que participou de campanhas e cursos para difundir o documento entre os profissionais da área.

Cierro aponta o reconhecimento da regionalidade e a linguagem acessível para o público como outros trunfos do documento. “Ele tem embasamento científico, mas não é preciso ser um profissional especializado para compreender.” Apesar disso, ela considera que falta divulgação. “Nas palestras que dou para a população leiga, quando pergunto quem conhece o guia em uma sala com mais de cem pessoas, quase ninguém levanta a mão. Era assim lá em 2015 e, neste ano, aconteceu a mesma coisa.”

Para a nutricionista Laís Amaral, coordenadora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), o Guia tem dupla função: é tanto um instrumento de educação alimentar individual quanto uma base para a construção de políticas públicas. “Ele é super versátil e serve como uma diretriz muito clara para a formulação de políticas públicas. Claro que há limitações, a gente ainda não conseguiu furar a bolha como gostaria. Mas acho que nesses dez anos a gente tem bastante a comemorar”, afirma.

Amaral considera que as diretrizes do documento seguem atuais. “O guia não caducou, não ficou velho. Quanto mais evidência sai na literatura nacional e internacional, mais a gente comprova que as recomendações são super atuais e de fato deveriam ser seguidas.”

Na prática

Autor de livros sobre história e genealogia da alimentação, o jornalista americano Michael Pollan costuma dizer: “Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida”. Na prática, porém, não é tão simples. Altamente disponíveis, os ultraprocessados são vendidos como alimentos práticos, convenientes, muitas vezes baratos e com uma intensidade de sabor que dificulta o controle da quantidade consumida. Além disso, é fato que cozinhar exige tempo, algo raro para quem trabalha o dia todo, e que a transmissão de habilidades culinárias entre gerações vem se enfraquecendo.

O guia dedica um capítulo a analisar esses obstáculos e a dar dicas para superá-los. Em alguns casos, a solução passa por ações governamentais que tornem possível que a população acesse o direito à alimentação adequada, como o incentivo às feiras livres e à criação de restaurantes populares e cozinhas comunitárias.

Há quem passe quatro horas por dia nas redes sociais e diz que não tem tempo de cozinhar. Sempre falo que para cada escolha existe uma renúncia

Mas também são propostas mudanças baseadas na reflexão sobre o valor da alimentação na vida. “Há quem passe quatro horas por dia nas redes sociais e diz que não tem tempo de cozinhar. Sempre falo que para cada escolha existe uma renúncia, uma consequência”, diz Cierro, da Asbran, que lista algumas possíveis soluções. “Você pode separar uma parte do fim de semana para cozinhar e congelar a comida da semana. Pode fazer compras e pagar uma vizinha que está desempregada para ela cozinhar para você. Muitos feirantes hoje entregam frutas e vegetais em casa. E dentro de um aplicativo de delivery tem opções saudáveis, mas parece que isso está em poucos radares.”

“Cozinhar é como ler e escrever, todo mundo deveria saber”, diz, frequentemente, a cozinheira, apresentadora de TV e autora de livros de receitas Rita Lobo. Ela defende que, apesar de ser uma habilidade essencial, não se trata de dom, mas de um aprendizado que todos deveriam buscar. Considerada uma “embaixadora” do guia, Lobo divulga receitas ensinando a fazer “comida de verdade” e é uma defensora do PF (prato feito) tipicamente nacional. “O brasileiro não precisa inventar moda para se alimentar bem”, escreveu, no livro “Panelinha” (ed. Panelinha, 2023).

Na escola é que se aprende?

Um dos campos de maior influência do guia em políticas públicas é o da alimentação escolar. Um exemplo é a resolução nº 6/2020, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, que limita a no máximo 20% do orçamento a compra de produtos ultraprocessados dentro do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Outro caso relevante é a lei que proíbe alimentos ultraprocessados em escolas do Rio de Janeiro, aprovada em 2023. Segundo Fabíola Leal, analista de advocacy do Instituto Desiderata, uma das organizações que apoiaram e acompanharam todo o processo, o guia foi crucial para convencer os vereadores. “Quando eu ia para a incidência direta com os parlamentares, eu levava o Guia e mostrava: olha, a gente já tem uma normativa federal que é referência no assunto, é um exemplo no mundo todo”, diz.

Ela também cita como argumentos os direitos constitucionais à saúde e à proteção da infância e o fato de a escola ser um espaço de formação não só acadêmica, mas também social. “A escola, a partir do seu papel formador, tem que ofertar alimentos que fazem bem à saúde. Esses alimentos vão fazer parte da formação do paladar das crianças, do crescimento delas”, diz. Leal lembra que houve pressão da indústria alimentícia e de alguns parlamentares para alterar a lei, atenuando-a, mas no fim o texto aprovado foi o que as ONGs e os acadêmicos defendiam.

A transposição da regra para a prática, porém, está sendo desafiadora, ao menos no caso da rede privada. “As cantinas estão tentando se adaptar, mas ainda há muitos registros de escolas que seguem oferecendo esse tipo de alimento. Algumas delas por desconhecimento: acham que um pão de queijo de pacote é minimamente processado, mas está cheio de aditivos, por exemplo. A gente ainda tem muito a avançar nesse processo de formação”, afirma Leal.

Na rede pública, a padronização de processos relativos à merenda facilitou a substituição dos ultraprocessados

O instituto criou um guia com orientações para as cantinas, que ensina a identificar os ultraprocessados e dá dicas de substituição e de armazenamento de outros tipos de alimento. “Nossa ideia é que seja bom para a saúde das crianças e continue sendo rentável para esses negócios. A gente não quer que eles percam o ganha-pão deles”, diz Leal. Já na rede pública, a padronização de processos relativos à merenda facilitou a substituição dos ultraprocessados. O achocolatado, por exemplo, foi trocado por vitamina de frutas.

O Desiderata começou recentemente um diagnóstico sobre os alimentos disponíveis em hospitais públicos, visando a proposição de normas que também restrinjam ultraprocessados nesses ambientes.

“Imposto do pecado”

Atualmente, uma das principais frentes de batalha das organizações que lutam para dificultar o acesso aos ultraprocessados é no âmbito da Reforma Tributária. Elas defendem a inclusão desses produtos no Imposto Seletivo (ou “imposto do pecado”), que taxa bens prejudiciais à saúde e ao ambiente, ao mesmo tempo em que se incentiva o consumo de verduras e legumes por meio de benefícios fiscais. Um dos argumentos é que esta seria uma forma de reparar o Estado pelos custos em saúde e previdência, gerados pelas doenças crônicas decorrentes da má alimentação.

Apesar de o decreto da cesta básica ter excluído os ultraprocessados, eles podem voltar no vai-e-vem da tramitação no Congresso. “Há um lobby muito grande para entrar margarina e salsicha, que a indústria coloca como alimentos essenciais para a população de baixa renda”, afirma Amaral, do Idec. A sobretaxação de bebidas açucaradas, que também estava ameaçada, acaba de voltar ao texto da Reforma Tributária. “O discurso é que são produtos muito consumidos por pessoas sem condições financeiras, que precisamos alimentar a população. Mas então pobre pode comer qualquer coisa?”, questiona.

Precisamos restringir a publicidade desses produtos, inserir rótulos de advertência parecidos com os usados nos maços de cigarro

Para André Degenszajn, do Ibirapitanga, a indústria investe globalmente na criação de controvérsias no campo científico, financiando pesquisadores, instituições e até revistas acadêmicas para gerar dúvidas sobre os estudos com ultraprocessados. “Eles não precisam nem ter pesquisas absolutamente conclusivas. Basta criar uma dúvida, dizer que a comunidade científica está dividida, sendo que nos espaços acadêmicos sérios, sem conflitos de interesse, não há essa dúvida. Mas isso já é suficiente para dificultar a aprovação de regulações, por exemplo.”

Ele observa que, apesar de o consumo de ultraprocessados vir aumentando no Brasil, atualmente eles são responsáveis por cerca de 20% das calorias ingeridas pela população, enquanto em países como os EUA essa proporção chega a 60%. “O Brasil ainda está numa posição boa, mas tem dois caminhos. Ou segue o histórico, de uma dieta baseada em arroz, feijão, salada, carne etc., ou envereda pelo caminho dos EUA ou da Inglaterra, que é o de uma dieta baseada em ultraprocessados. Se for por essa outra rota, o impacto vai ser brutal.”

Na opinião de Carlos Monteiro, o mundo deveria se inspirar nas leis antitabagistas para lidar com os ultraprocessados. Precisamos restringir a publicidade desses produtos, inserir rótulos de advertência parecidos com os usados nos maços de cigarroTambém precisamos avançar nas medidas regulatórias, proibindo comercialização dos produtos em escolas e unidades de saúde, além de tributar e reverter a verba para o subsídio da produção e distribuição de alimentos frescos, por exemplo”, defende.

Já a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) vem defendendo, em campanhas, notas públicas e entrevistas à imprensa, que nenhum alimento seja alvo de sobretaxação, afirmando que a medida teria impacto no combate à fome e à insegurança alimentar da população e que não há evidências de que ajude a reduzir obesidade e doenças crônicas, que deveriam ser combatidas com educação nutricional.

O setor também critica a classificação Nova, alegando que a categoria de ultraprocessados é pouco clara e ampla demais e que não há evidências suficientes para afirmar que esses produtos causem mal à saúde. “Na visão da indústria de alimentos e bebidas, não há alimento ‘bom’ ou ‘ruim’: é consenso entre especialistas de que tudo depende do equilíbrio na dieta. Todos os produtos alimentícios – sejam caseiros ou industrializados – podem ter alta ou baixa densidade de nutrientes. Mas a atual edição do Guia Alimentar ainda não considera o valor nutricional absoluto de alimentos e bebidas, nem a densidade de nutrientes neles presentes. Com isso, não está em conformidade com o empregado por órgãos internacionais competentes em relação às diretrizes alimentares para reduzir o risco de doenças crônicas não transmissíveis”, diz uma das notas. A indústria também cita estudos e declarações de cientistas e de órgãos governamentais que não reconhecem a Nova como válida.

Apoio institucional

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Esse conteúdo faz parte de uma série que tem o apoio institucional do Instituto Ibirapitanga, uma organização dedicada à defesa de liberdades e ao aprofundamento da democracia no Brasil, com dois programas: sistemas alimentares e equidade racial.

Publicado originalmente pela Gama
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