Blog do IFZ | 06/12/2025
Em uma investida sem precedentes nos Estados Unidos, a Procuradoria Municipal de São Francisco — por meio do procurador David Chiu — move uma ação judicial emblemática contra os gigantes da indústria de alimentos ultraprocessados. A petição acusa dez corporações — entre elas Coca‑Cola Company, PepsiCo, Kraft Heinz Company, Nestlé USA, General Mills e Mondelez International — de “criar uma crise de saúde pública” ao fabricar e comercializar produtos que, segundo o processo, foram deliberadamente projetados para serem viciantes e prejudiciais, com consciente negligência quanto às consequências sanitárias.
Esses alimentos, conhecidos como “alimentos ultraprocessados” (UPF – ultra-processed foods), constituem cerca de 70% da oferta alimentar nos EUA e incluem desde refrigerantes, salgadinhos e comidas prontas até cereais matinais e pães instantâneos. Muitos são elaborados com ingredientes ausentes em cozinhas domésticas — aditivos químicos, corantes, realçadores de sabor, conservantes, emulsionantes — e têm alto teor de açúcar, sal ou gordura. A ofensiva de São Francisco denuncia que a multiplicidade de opções que aparentam diversidade nada mais é do que uma variação nas combinações de compostos químicos artificiais, fruto da consolidação e centralização da indústria alimentícia.
Do ponto de vista epidemiológico e sanitário, a ação judicial ancorada em sólido respaldo científico focaliza a relação entre o consumo maciço de ultraprocessados e o aumento dramático da incidência de obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, câncer colorretal, entre outras enfermidades crônicas. Um levantamento recente citado pela imprensa aponta que os danos atingem “todos os principais sistemas orgânicos” do corpo humano. Nesse cenário, a disputa ultrapassa a esfera do comportamento individual: o cerne da controvérsia é a responsabilidade corporativa diante de um modelo de alimentação industrial que priorizou lucro sobre saúde pública.
Ao publicar sua matéria, o gabinete do procurador oferece não apenas um relato dos fatos, mas uma convocação à reflexão coletiva. A narrativa denuncia a engenharia de dependência alimentar, a erosão da autonomia de escolha e a mercantilização da alimentação. Ao integrar esse texto com o contexto reportado pela imprensa internacional — e reconhecer a correlação entre UPFs e a epidemia de doenças crônicas — a peça consolida uma crítica contundente: a crise não é individual, mas estrutural. Em última instância, revela-se como um chamado urgente para que sociedade, legisladores e consumidores repensem o que consideramos “comida” e retomem o controle sobre nossos corpos e nosso futuro.
Procurador de São Francisco processa gigantes dos alimentos ultraprocessados
Gabinete da Procuradoria Municipal de São Francisco | 2 de dezembro de 2025
Baixe aqui a Ação Judicial “City of San Francisco v. Ultra-Processed Food Conglomerates for Violation of California’s Unfair Competition Law and Public Nuisance“
Indústrias inundaram o país com produtos altamente viciantes e pobres em nutrientes, apesar de saberem dos danos à saúde pública
SÃO FRANCISCO, CA — O procurador municipal de São Francisco, David Chiu, anunciou nesta terça-feira uma ação judicial inédita contra alguns dos maiores fabricantes de alimentos ultraprocessados dos Estados Unidos. A crescente presença desses produtos na dieta dos norte-americanos tem sido associada a uma série de problemas graves de saúde, com custos incalculáveis para cidadãos, cidades e estados. Segundo o processo, as empresas do setor tinham pleno conhecimento dos riscos, mas seguiram desenvolvendo e promovendo produtos cada vez mais viciantes para maximizar seus lucros.
A ação foi protocolada no Tribunal Superior de São Francisco contra dez grandes fabricantes: Kraft Heinz Company, Mondelez International, Post Holdings, The Coca-Cola Company, PepsiCo, General Mills, Nestlé USA, Kellogg, Mars Incorporated e ConAgra Brands.
“Essas empresas criaram uma crise de saúde pública ao desenvolver e comercializar alimentos ultraprocessados”, afirmou Chiu. “Transformaram alimentos em algo irreconhecível e prejudicial ao organismo humano. Não se trata de responsabilizar consumidores por ‘melhores escolhas’. Pesquisas mostram que os americanos querem evitar produtos ultraprocessados, mas são bombardeados por eles. As empresas lucraram de forma extraordinária e agora precisam responder pelos danos causados.”
O prefeito de São Francisco, Daniel Lurie, reforçou: “As famílias merecem saber o que estão consumindo. Não vamos permitir que nossos moradores sejam enganados sobre os produtos que encontram nas prateleiras. Vamos defender a saúde pública e garantir que os pais tenham informações para proteger a si mesmos e seus filhos.”
O que são alimentos ultraprocessados
Ultraprocessados são produtos originalmente baseados em alimentos integrais, mas que passam por decomposição, alterações químicas, combinação com aditivos e remontagem mediante técnicas industriais como moldagem, extrusão e pressurização. Costumam incluir ingredientes inexistentes na culinária doméstica, como corantes, flavorizantes, emulsificantes, espessantes, adoçantes artificiais, espumantes e gelificantes. Diferenciam-se de alimentos geneticamente modificados.
O grupo inclui doces, salgadinhos, carnes processadas, refrigerantes, bebidas energéticas, macarrão instantâneo, cereais matinais e uma grande variedade de produtos criados por processos industriais impossíveis de reproduzir em casa. São combinações de compostos projetadas para estimular o apetite e incentivar o consumo excessivo.
Embora calorias, gorduras, açúcares e sódio sejam preocupações conhecidas, os riscos associados aos ultraprocessados vão além: o nível de processamento altera a estrutura física e química dos alimentos, afetando diretamente sua digestão e o impacto no organismo.
Consolidação da indústria e perda de escolha real
Os primeiros ultraprocessados surgiram no fim do século XIX, mas ganharam impulso durante as duas guerras mundiais, quando alimentos duráveis eram necessários para abastecer tropas. Logo as empresas perceberam o potencial de mercado e passaram a vendê-los como convenientes e nutritivos.
Até a metade do século XX, o setor era formado majoritariamente por produtores locais e regionais. A partir das décadas de 1970 e 1980, iniciou-se um processo acelerado de fusões que levou à concentração da cadeia alimentar em poucas corporações — acompanhada por maior padronização e processamento de alimentos.
Entre as décadas de 1980 e 1990, o volume de produtos ultraprocessados disparou. Hoje, estima-se que cerca de 70% do abastecimento alimentar dos EUA seja composto por eles. Apesar da grande variedade aparente nas gôndolas, consumidores frequentemente escolhem, na prática, entre combinações de aditivos fabricadas por um pequeno grupo de conglomerados.
Riscos à saúde e explosão das doenças crônicas
Com a expansão dos ultraprocessados, aumentaram também doenças crônicas nos EUA: as taxas de obesidade cresceram de forma acentuada, o câncer colorretal dobrou entre adultos jovens, casos de diabetes quadruplicaram e condições inflamatórias intestinais, como doença de Crohn, tornaram-se cada vez mais comuns.
Estudos recentes associaram o consumo excessivo de alimentos ultraprocessados a uma série de efeitos adversos à saúde, incluindo o diabetes tipo 2, doença hepática gordurosa (esteatose hepática), doenças cardiovasculares, câncer colorretal e até depressão.
“Este processo é crucial para proteger a saúde das nossas comunidades”, destacou Daniel Tsai, diretor de saúde de São Francisco. “Os ultraprocessados remodelaram a nossa dieta e foram concebidos para criar dependência. Prejudicam desproporcionalmente populações de baixa renda e comunidades negras e latinas, contribuindo para o avanço de doenças crônicas.”
A médica e professora associada da UCSF, Kim Newell-Green, reforçou: “Vejo diariamente os impactos desses produtos sobre crianças e famílias. A ciência já demonstra sua ligação com doenças graves. A ação de hoje ajudará a responsabilizar empresas que lucram colocando nossa saúde em risco.”
A influência das gigantes do tabaco
A partir dos anos 1960, gigantes do tabaco como RJ Reynolds e Philip Morris passaram a adquirir empresas alimentícias. A Philip Morris tornou-se, por um período, a maior empresa de alimentos e produtos de consumo do mundo. Um executivo chegou a afirmar: “Agora você pode fazer uma refeição completa com nossos alimentos e bebidas e finalizá-la com um de nossos cigarros.”
Com a integração total dos negócios, conhecimentos sobre dependência química utilizados na produção de cigarros foram transferidos para a formulação de alimentos, abrindo caminho para produtos cada vez mais viciantes — prática que outras empresas do setor rapidamente adotaram.
Assim como as tabagistas, a indústria alimentícia mirou diretamente crianças e adolescentes para impulsionar vendas. Mascotes como Tony, o Tigre, e personagens como Fred Flintstone foram usados em campanhas massivas, muitas vezes associadas a grandes fabricantes de brinquedos e empresas de mídia infantil, como Disney, Nickelodeon, Mattel, Nintendo e Marvel. Nos anos 1990, a Kraft — então propriedade da Philip Morris — mantinha uma “Força-Tarefa Infantil”; seu diretor afirmou que as ações promocionais chegavam a 95% das crianças de 6 a 12 anos nos EUA.
Populações negras, latinas e de baixa renda também foram alvo desproporcional. Crianças negras e latinas recebiam 70% mais anúncios de ultraprocessados que crianças brancas.
O impacto na saúde é evidente: nos últimos 30 anos, a prevalência de diabetes entre afro-americanos quadruplicou. Em São Francisco, hospitalizações por diabetes são até seis vezes maiores e a mortalidade associada chega a ser três vezes superior entre moradores negros. Famílias com renda inferior a 200% do nível federal de pobreza têm três vezes mais chances de desenvolver diabetes tipo 2.
A indústria sabia dos danos
A relação entre ultraprocessados e danos à saúde era conhecida há décadas. Em 1999, executivos das maiores empresas alimentícias se reuniram em Minneapolis. James Behnke (Pillsbury) e Michael Mudd (Kraft) alertaram os CEOs sobre os impactos devastadores dos produtos e o custo anual estimado de mais de US$ 100 bilhões para o país — comparável ao do tabaco. A recepção foi hostil, e as preocupações foram desconsideradas.
Mesmo cientes dos riscos, as empresas seguiram direcionando publicidade a crianças e desenvolvendo produtos cada vez mais viciantes e pobres em nutrientes.
O peso econômico na saúde pública
Os custos para os americanos são gigantescos. Os gastos nacionais com saúde passaram de 5% do PIB em 1960 para quase 20% atualmente. Até 2031, devem atingir US$ 7 trilhões. Grande parte do peso recai sobre estados e municípios.
A Califórnia e a cidade-condado de São Francisco gastam bilhões anualmente com saúde pública, benefícios de funcionários e o Medi-Cal. Em 2024, o Medi-Cal totalizou cerca de US$ 124,1 bilhões, dos quais US$ 3,95 bilhões atribuídos ao município de São Francisco.
A diabetes é a oitava principal causa de morte na cidade e aumenta o risco para doenças cardiovasculares — a principal causa de óbito — além de ser a principal causa de insuficiência renal e necessidade de diálise. Em 2016, as hospitalizações relacionadas à doença somaram mais de US$ 85 milhões.
São Francisco vem implementando programas de prevenção e incentivos à alimentação saudável. A Good Food Purchasing Standards Ordinance foi recentemente prorrogada, e hoje o município amplia a análise sobre o fornecimento de ultraprocessados em suas próprias repartições.
“Por décadas, nossas comunidades pagaram o preço por uma indústria que colocou o lucro acima das pessoas”, afirmou o supervisor Shamann Walton. “Esta ação judicial é um passo fundamental. Também estou propondo uma resolução para avaliar a presença de ultraprocessados em departamentos municipais, para atacarmos o problema na origem.”
Detalhes da ação judicial
Baixe aqui a Ação Judicial “City of San Francisco v. Ultra-Processed Food Conglomerates for Violation of California’s Unfair Competition Law and Public Nuisance“
Movida em nome do povo da Califórnia, a ação sustenta que práticas enganosas relacionadas à venda e marketing de ultraprocessados violam a Lei de Concorrência Desleal do estado e configuram perturbação da ordem pública. Entre outros pedidos, a ação busca:
- proibir práticas de marketing enganoso;
- exigir medidas concretas das empresas para reduzir ou mitigar os danos causados;
- obter restituição e multas civis para compensar o impacto financeiro sobre governos locais.
O caso é conduzido pelo Gabinete do Procurador da Cidade de São Francisco, em parceria com os escritórios Andrus Anderson, DiCello Levitt e Morgan & Morgan.
“Temos orgulho de apoiar São Francisco neste litígio inovador”, afirmou Diandra “Fu” Debrosse, sócia da DiCello Levitt. “A cidade está na vanguarda ao exigir responsabilidade por uma crise de saúde pública que afeta crianças e adultos.”
Rene Rocha, sócio da Morgan & Morgan, acrescentou: “Este caso visa proteger a população e estabelecer um precedente nacional. A saúde pública precisa prevalecer sobre os interesses corporativos.”
Para Jennie Lee Anderson, sócia da Andrus Anderson LLP, “o litígio vai além da responsabilização — oferece a São Francisco ferramentas para proteger gerações futuras e criar um modelo jurídico replicável por outras cidades.”
Anúncio da ação, no site da Procuradoria Municipal de São Francisco
https://sfcityattorney.org/san-francisco-city-attorney-chiu-sues-largest-manufacturers-of-ultra-processed-foods/
