Ultraprocessados: duas pesquisas, um mesmo aviso à sociedade

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O que comemos nunca foi apenas biologia — mas, em 2025, a ciência tratou de mostrar o quanto essa afirmação é literal. Um ensaio clínico rigoroso e uma série global de pesquisas apontaram para o mesmo destino: os ultraprocessados moldam nossos corpos, nossos hábitos e nosso ambiente alimentar de maneiras profundas e persistentes. E entender isso talvez seja o primeiro passo para imaginar um futuro diferente.

Blog do IFZ | 09/12/2025

Em 2025, dois estudos científicos ganharam destaque por apontar na mesma direção, embora tenham surgido em contextos muito diferentes. O primeiro veio de Londres, a partir de um ensaio clínico conduzido com rigor metodológico pouco comum na pesquisa sobre alimentação. O segundo ganhou escala global ao reunir décadas de investigação, centenas de pesquisadores e múltiplas tradições científicas. Apesar das diferenças, ambos expuseram um ponto central: o impacto dos alimentos ultraprocessados no organismo é mais complexo, profundo e duradouro do que sugerem seus rótulos e tabelas nutricionais.

A publicação do ensaio “Ultraprocessed or minimally processed diets following healthy dietary guidelines on weight and cardiometabolic health: a randomized, crossover trial”, na Nature Medicine, e da “The Lancet Series: Ultra-Processed Foods and Human Health”, na The Lancet, marcou um momento importante para a área. Cada estudo aborda o tema por um caminho distinto, mas a leitura conjunta revela o tamanho do desafio: compreender como as sociedades produzem, distribuem e consomem alimentos — e como isso afeta diretamente a saúde humana.

O ensaio da Nature: quando dietas aparentemente iguais produzem efeitos distintos

No ensaio publicado na Nature Medicine, pesquisadores britânicos enfrentaram uma pergunta clássica da nutrição: igualar proteínas, carboidratos, gorduras e fibras seria suficiente para que duas dietas produzissem os mesmos efeitos no organismo? Para testar essa hipótese, criaram um desenho experimental incomum. Todas as refeições foram preparadas por uma equipe de pesquisa, seguindo rigorosamente as diretrizes oficiais de alimentação saudável. As refeições eram entregues diariamente aos participantes, eliminando improvisos e desvios. Não houve instruções de restrição: cada pessoa pôde comer à vontade.

A diferença central do experimento estava em um aspecto que parece simples, mas é decisivo. Uma das dietas era composta por alimentos minimamente processados; a outra utilizava versões ultraprocessadas dos mesmos grupos alimentares, ambas formuladas de acordo com as recomendações oficiais.

Os resultados foram contundentes. A dieta baseada em alimentos minimamente processados levou a maior perda de peso, reduções mais acentuadas de gordura corporal e menor ingestão calórica espontânea. Os participantes relataram mais saciedade e menos episódios de fome repentina — tudo isso consumindo cardápios equivalentes em composição nutricional.

A conclusão foi direta: a estrutura dos alimentos afeta processos metabólicos que não aparecem nos rótulos. Textura, densidade, velocidade de mastigação, formulações industriais e aditivos interagem com a fisiologia de maneiras ainda pouco compreendidas. O estudo não contradiz décadas de pesquisa nutricional, mas mostra que focar apenas nos nutrientes deixa parte importante da realidade de fora.

A série da Lancet: o impacto global de um sistema alimentar baseado em ultraprocessados

Se o ensaio da Nature Medicine examinou o problema em uma escala quase doméstica, a série da Lancet ampliou o foco para o funcionamento do sistema alimentar como um todo. Os artigos integraram evidências de áreas como macroeconomia, epidemiologia, sociologia, psicologia, ciência dos alimentos e políticas públicas, compondo um quadro abrangente de como os ultraprocessados se tornaram centrais nas dietas ao redor do mundo.

A série destacou que a expansão desses produtos não decorre apenas de preferências individuais, mas de fatores estruturais: preços mais baixos, longa vida de prateleira, facilidade de transporte e armazenamento, marketing direcionado a crianças e adolescentes, influência corporativa em regulações e desigualdades sociais que limitam a capacidade real de escolha das famílias.

O impacto epidemiológico descrito é igualmente consistente. Estudos populacionais mostraram maior risco de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2, alguns tipos de câncer, inflamações intestinais, alterações no microbioma e maior prevalência de transtornos depressivos. O padrão se manteve mesmo após ajustes por renda, atividade física e composição nutricional: o consumo de ultraprocessados aparece associado a maior vulnerabilidade metabólica e maior mortalidade.

A série também propôs uma mudança conceitual. Em vez de concentrar a atenção apenas nos nutrientes, questionou o modelo de “nutrição baseada em nutrientes”, predominante desde meados do século XX. Para os autores, características como matriz alimentar, densidade energética, grau de refino, aditivos e potencial de ativação dos circuitos de recompensa devem ter peso equivalente ao de proteínas e carboidratos na definição de políticas públicas e diretrizes alimentares.

Convergência científica: biologia, população e estruturas sociais se encontram

Ler separadamente o ensaio da Nature Medicine e a série da Lancet já oferece uma visão sólida do problema. Lê-los juntos, porém, produz algo maior: um quadro integrado que conecta mecanismos biológicos, padrões populacionais e fatores estruturais que moldam o sistema alimentar.

Dessa convergência, três pontos se destacam:

1. A biologia confirma o que os estudos populacionais vinham apontando

O ensaio clínico fornece uma evidência rara na pesquisa em alimentação: causalidade em ambiente controlado. Ele mostra que, mesmo com nutrientes idênticos, dietas ultraprocessadas geram respostas metabólicas distintas — diferenças na saciedade, ingestão calórica e regulação do peso que não podem ser explicadas apenas pela composição química dos alimentos.

A série da Lancet acrescenta a dimensão do tempo e da escala. Ela demonstra que, quando esses efeitos relativamente modestos se repetem por anos e atingem milhões de pessoas, o resultado é um aumento consistente de doenças metabólicas, cardiovasculares e transtornos mentais. Ou seja: o que aparece no laboratório como uma tendência fisiológica se manifesta na população como um padrão epidemiológico persistente.

2. As estruturas sociais mostram por que o problema não é apenas individual — e por que se perpetua

O ensaio da Nature descreve o que acontece quando indivíduos recebem refeições planejadas, padronizadas e distribuídas diariamente — condições muito distantes da vida real. Já a série da Lancet evidencia o conjunto de forças que molda as escolhas alimentares cotidianas: preços mais baixos dos ultraprocessados, marketing agressivo, disponibilidade em qualquer horário, logística de produção e distribuição altamente eficiente e regulações frequentemente influenciadas por interesses corporativos.

Essa combinação cria um ambiente alimentar em que as opções mais práticas, baratas e onipresentes são justamente aquelas com maior impacto negativo na saúde. Assim, o problema se reproduz não porque as pessoas “escolhem mal”, mas porque operam dentro de estruturas que favorecem sistematicamente os ultraprocessados.

3. O próprio conceito de “alimentação saudável” precisa ser revisado

As políticas públicas e diretrizes nutricionais do último século foram construídas sobretudo em torno de nutrientes: proteínas, gorduras, carboidratos, vitaminas. A convergência entre os estudos de 2025 sugere que esse enfoque, embora útil, é insuficiente.

Os resultados indicam que o grau de processamento e a estrutura físico-química dos alimentos — sua matriz, textura, densidade, formulação industrial e capacidade de ativar circuitos de recompensa — são determinantes centrais da saúde. Esses fatores não aparecem nas tabelas nutricionais, mas têm efeitos reais e cumulativos. Revisar o conceito de “saudável”, portanto, não é um gesto moralizante: é uma resposta direta ao acúmulo de evidências científicas.

Comportamento e metabolismo: como a forma dos alimentos molda escolhas e hábitos

Um ponto adicional destacado pelos trabalhos de 2025 diz respeito à relação entre ultraprocessados e comportamento alimentar. No ensaio clínico, participantes que consumiam alimentos minimamente processados apresentaram menor impulsividade e maior estabilidade na sensação de fome, sugerindo que a estrutura dos alimentos influencia não apenas a ingestão calórica, mas também a regulação do apetite.

A série da Lancet reforça essa perspectiva ao reunir estudos que mostram como a exposição contínua a produtos altamente palatáveis e hiperstimulantes — especialmente durante a infância — modela circuitos de recompensa e estabelece padrões de consumo que tendem a persistir ao longo da vida.

Essa interseção entre fisiologia, psicologia e ambiente alimentar leva a uma conclusão desconfortável, porém necessária: esperar decisões individuais impecáveis em um contexto dominado por alimentos ultraprocessados é irrealista. A evidência científica não elimina a responsabilidade pessoal, mas deixa claro que ela é insuficiente quando sistemas econômicos, marketing agressivo e políticas frágeis direcionam o comportamento em larga escala.
A responsabilidade, portanto, precisa ser compartilhada entre indivíduos, governos, indústria e órgãos reguladores — não por conveniência política, mas porque essa é a lógica sugerida pelos dados.

O futuro da alimentação: guiando políticas, rotulagem e pesquisas para a próxima década

A leitura conjunta dos trabalhos da Nature Medicine e da Lancet indica que avanços significativos dependem de intervenções coordenadas em diferentes esferas — do indivíduo ao sistema alimentar global.

1. Reorientar guias alimentares

Países como Brasil e França já incluíram o grau de processamento como eixo central de suas diretrizes alimentares, priorizando alimentos in natura e minimamente processados. As novas evidências reforçam a robustez desse modelo e sugerem que incluir a matriz alimentar e o processamento como critérios básicos pode tornar as recomendações mais eficazes do que listas de nutrientes isolados.

2. Revisar rotulagem

Os estudos apontam que a rotulagem atual deixa de fora aspectos centrais para a saúde: estrutura física dos alimentos, grau de refino, quantidade de aditivos, textura e potencial de hiperpalatabilidade. Uma revisão profunda poderia envolver:

  • classificação explícita quanto ao grau de processamento,
  • identificação mais clara de aditivos relacionados a hiperpalatabilidade,
  • alertas sobre formulações com impacto metabólico já conhecido,
  • rótulos frontais que permitam decisões rápidas em ambientes de compra.

A ideia não é demonizar categorias inteiras de alimentos, mas fornecer informações coerentes com o estado atual da ciência.

3. Rediscutir políticas tributárias e regulatórias

A série da Lancet demonstra que campanhas educativas são insuficientes quando o ambiente alimentar favorece sistematicamente os ultraprocessados. As evidências apoiam políticas como:

  • incentivos fiscais para frutas, legumes e alimentos minimamente processados,
  • restrições de marketing para produtos ultraprocessados, especialmente voltados a crianças,
  • revisão de subsídios agrícolas que favorecem ingredientes ultrabaratos usados pela indústria,
  • medidas urbanas para ampliar o acesso a alimentos frescos em regiões vulneráveis.

Essas intervenções, combinadas, tendem a ter impacto maior do que estratégias baseadas apenas em mudança de comportamento individual.

4. Investir em novos ensaios clínicos

O estudo da Nature Medicine abriu uma agenda de pesquisa promissora. Os próximos ensaios devem investigar:

  • efeitos dos ultraprocessados sobre o microbioma e sua relação com inflamação e obesidade;
  • interações com o sistema imune, incluindo marcadores de inflamação de baixo grau;
  • respostas neurais relacionadas à saciedade, recompensa e impulsividade alimentar;
  • impactos cumulativos do processamento na função metabólica em diferentes fases da vida.

A expectativa é que a próxima década produza evidências mais integradas entre nutrição, neurociência, imunologia e ciência dos alimentos — permitindo políticas mais precisas e menos controversas.

Repensando o que significa comer bem no século XXI

Os acontecimentos de 2025 recolocam uma questão antiga sob evidência mais robusta. Comer é uma necessidade fisiológica, mas acontece dentro de ambientes sociais complexos, atravessados por desigualdades, políticas industriais, escolhas urbanísticas e formas de produção que moldam silenciosamente o que chega ao prato.

Se o ensaio da Nature Medicine mostrou que dietas aparentemente semelhantes podem gerar respostas biológicas muito diferentes, a série da Lancet revelou como esses efeitos se acumulam em populações inteiras e são amplificados por estruturas econômicas e políticas. Juntos, os dois trabalhos convidam governos, pesquisadores e cidadãos a revisitar a própria ideia de “alimentação saudável”.

A questão central não é demonizar alimentos industrializados nem defender uma nostalgia culinária impraticável. É reconhecer que a ciência oferece ferramentas mais completas para entender os impactos de um sistema alimentar moldado por décadas de transformações tecnológicas, mercadológicas e culturais.

E talvez seja essa a força da convergência entre Nature e Lancet: não apenas reforçar mutuamente seus achados, mas mostrar que compreender o que comemos exige, ao mesmo tempo, rigor experimental e sensibilidade para o mundo real — seus estímulos, limites e contradições. Com essa visão, a discussão sobre alimentação deixa de ser um manual de conselhos e se torna um projeto intelectual, político e humano para o século XXI.

Ao fim, o que esses estudos revelam é simples e profundo: a comida não é apenas o que ingerimos, mas o que produzimos como sociedade. Cada rótulo, fórmula, escolha urbana e decisão doméstica se encaixa em uma engrenagem maior, da qual também fazemos parte. Olhar para a alimentação com essa amplitude não resolve o problema de imediato, mas abre espaço para imaginar um futuro em que comer bem seja um direito natural, e não um privilégio diário.

Baixe aqui o ensaio “Ultraprocessed or minimally processed diets following healthy dietary guidelines on weight and cardiometabolic health: a randomized, crossover trial” publicado pela Nature Medicine
Baixe aqui todos os documentos da “The Lancet Series: Ultra-Processed Foods and Human Health”, publicada na The Lancet

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