A dúbia relação entre a ciência e a indústria de alimentos

  • Tempo de leitura:7 minutos de leitura

A depender do ponto de vista, evidências científicas podem ser doces ou amargas

Por Murilo Bomfim no Ciência Fundamental | 03/05/2024

O universo da nutrição é desses em que a produção científica borbulha. Só para se ter uma ideia, eis três achados recentes: o consumo de uma a três porções de kimchi (conserva de acelgas coreana) está associado à redução da obesidade em homens; extrato de açafrão reduz o estresse; e essa história de dizer que é preciso reduzir o consumo de açúcar para se ter uma boa alimentação é, na verdade, inapropriada.

Essas são conclusões de estudos publicados em revistas científicas, e que até poderíamos levar a sério não fosse um pequeno detalhe: o conflito de interesses. É que a pesquisa sobre kimchi foi bancada pelo Instituto Mundial do Kimchi; o principal autor do estudo sobre o extrato de açafrão trabalhou anteriormente para uma empresa que fabrica extrato de açafrão; a pesquisa sobre o consumo de açúcar foi financiada por uma cooperativa agrícola que reúne mais de 8 mil produtores de… açúcar.

Outros tantos estudos análogos podem ser encontrados no blog Food Politics, mantido por Marion Nestle (nada a ver com a gigante dos alimentos), professora emérita da Faculdade de Nutrição, Estudos Alimentares e Saúde Pública da Universidade de Nova York. A cientista publica a série Industry-funded study of the week (Estudo financiado pela indústria da semana), em que traz exemplos por vezes comentados com seu humor ácido.

Casos como o do kimchi chamam atenção por serem estudos aparentemente desnecessários: a conserva é milenar, feita a partir de ingredientes naturais. Ninguém estava acusando o kimchi de fazer algum mal à saúde, era desnecessário ressaltar seus benefícios. Ainda assim, como Nestle afirma em seus posts, “é sobre marketing, não sobre ciência”. Nesse ponto, a indústria de alimentos é uma entusiasta da ciência, mas a relação entre as duas nem sempre é palatável.

Há cerca de 15 anos, a boa ciência —aquela feita sem conflitos de interesses— trouxe um novo conceito para a mesa: o dos alimentos ultraprocessados, dos quais certamente você já ouviu falar. Este conhecimento foi produzido no Brasil, pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), e ganhou o mundo.

Epidemiologistas nutricionais de diversos países vêm pesquisando a relação desses alimentos com desfechos negativos de saúde e, invariavelmente, chegam ao mesmo resultado: o consumo de ultraprocessados está associado ao aumento do risco de desenvolvimento de quadros de sobrepeso e obesidade, doenças crônicas como diabetes, hipertensão e até câncer.

Essas evidências se traduziram em políticas públicas em diversos países. Por aqui, a classificação Nova de alimentos (que os divide por grau e finalidade de processamento — daí o conceito de ultraprocessado) embasou o Guia Alimentar para a População Brasileira, que tem como regra de ouro “prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados”. O Programa Nacional de Alimentação Escolar também incorporou a Nova, estabelecendo um limite para gastos com alimentos ultraprocessados. Mais recentemente, as cidades do Rio de Janeiro e Niterói proibiram a oferta ou venda desses alimentos em suas redes de ensino — pública e privada.

Se a ciência dá mostras de que ultraprocessados causam danos à saúde, então a taxação desses alimentos seria uma das saídas para coibir seu consumo — assim como ocorreu com os cigarros. A tributação de ultraprocessados por meio do Imposto Seletivo é uma das discussões da atual reforma tributária, mas, nesse caso, parece que a indústria de alimentos não é muito afeita à ciência.

Segundo relatório do projeto Lobby na Comida, da agência Fiquem Sabendo, autoridades do Executivo federal receberam lobistas da alimentação cinco vezes mais do que representantes do terceiro setor em reuniões sobre reforma tributária. Os encontros mais frequentes ocorreram com representantes da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos e da Associação Brasileira da Indústria e Comércio de Ingredientes e Aditivos para Alimentos — duas entidades com conflitos de interesses cristalinos na pauta da reforma tributária.

“Vemos um enfrentamento muito grande dessas indústrias às medidas regulatórias e também muita resistência contra as evidências científicas sobre ultraprocessados”, disse a pesquisadora Ana Paula Bortoletto, do Nupens/USP, em entrevista à Fiquem Sabendo. “Resistem até mesmo em reconhecer a palavra ‘ultraprocessado’, recorrendo a especialistas em engenharia de alimentos para produção de pesquisas que buscam desacreditar essas evidências já consolidadas.”

O esforço está tendo efeito. A despeito das evidências científicas, o primeiro projeto de lei enviado pelo governo ao Congresso Nacional não inclui ultraprocessados no Imposto Seletivo — à exceção de bebidas açucaradas, como sucos de caixinha e refrigerantes. Parece que, para a indústria de alimentos, ciência boa é ciência conveniente.

Murilo Bomfim é jornalista

Publicado no Blog Ciência Fundamental
https://serrapilheira.org/a-dubia-relacao-entre-a-ciencia-e-a-industria-de-alimentos/

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.