O grão da segurança: por que os estoques públicos de alimentos são fundamentais para o futuro da segurança alimentar

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Blog do IFZ | 19/04/2025

Num mundo em que a insegurança alimentar atinge milhões de pessoas diariamente, os estoques públicos de alimentos se revelam uma engrenagem vital — e ainda subestimada — do maquinário global de combate à fome. Mais do que armazéns silenciosos repletos de grãos e cereais, esses estoques representam uma reserva estratégica de esperança. Eles são, simultaneamente, escudo e alavanca: proteção contra crises e instrumento de políticas públicas.

É essa complexidade que o relatório Public food stockholding: A review of policies and practices, publicado pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), busca iluminar com rigor analítico e abrangência internacional. O documento é, ao mesmo tempo, uma análise técnica, uma cartografia de experiências nacionais e um convite à cooperação multilateral em torno de um tema espinhoso — e vital.

O que são estoques públicos de alimentos?

Estocar alimentos não é novidade. Povos antigos já acumulavam grãos para enfrentar invernos rigorosos, guerras ou colheitas escassas. A prática, contudo, ganhou contornos modernos e intricados: envolve hoje a aquisição, armazenamento e distribuição de alimentos por órgãos públicos, com múltiplos objetivos. Entre os mais comuns, destacam-se a proteção contra emergências (como secas, enchentes ou pandemias), a estabilização dos preços agrícolas e a oferta de alimentos a preços acessíveis por meio de programas sociais.

Mas o que a FAO evidencia com precisão é que, na prática, os estoques cumprem muitas vezes várias dessas funções ao mesmo tempo. É comum que um mesmo programa sirva tanto para garantir renda mínima ao produtor quanto para assegurar comida barata ao consumidor vulnerável — um duplo objetivo que, embora nobre, carrega tensões inerentes.

Três tipos, muitas funções

O relatório identifica três tipos genéricos de estoques públicos: os estoques de emergência, voltados a situações de crise; os estoques reguladores, destinados à estabilização dos preços de mercado; e os estoques destinados à distribuição alimentar, vinculados a políticas sociais. Na realidade, contudo, essas categorias muitas vezes se sobrepõem. Um mesmo estoque pode ser usado, em diferentes momentos, para regular preços e alimentar populações em risco.

Essa polifuncionalidade exige medidas normativas sofisticadas e flexíveis. Países frequentemente lançam mão de subsídios à produção, barreiras à importação ou incentivos à exportação, combinando políticas agrícolas e comerciais. O desafio está em fazer isso sem provocar distorções insustentáveis no mercado interno ou interferências nocivas nos mercados globais.

Lições da pandemia e as armadilhas da dualidade

A crise da COVID-19 ofereceu um exemplo recente e eloquente da importância dos estoques. A abundância de alimentos estocados ajudou a evitar pânico nos mercados, limitou a especulação e garantiu fornecimento em regiões mais vulneráveis. Mais do que uma resposta emergencial, essa reserva funcionou como uma âncora de estabilidade em tempos de tormenta.

No entanto, quando se tenta conciliar preços altos para os produtores e baixos para os consumidores, o risco de contradições explode. Subsídios excessivos, por exemplo, podem inflar artificialmente a produção, pressionando orçamentos públicos e, em casos extremos, provocando excedentes que acabam sendo despejados nos mercados internacionais, afetando produtores de outros países.

As disputas na OMC: onde a técnica encontra a política

O tema é tão sensível que se tornou um dos pontos mais controversos nas negociações agrícolas da Organização Mundial do Comércio (OMC). O cerne da disputa gira em torno do chamado sustainment price mechanism (SPM), ou mecanismo de sustentação de preços do mercado. Segundo as regras da OMC, os países têm direito de comprar e vender alimentos a preços administrados. Contudo, quando esse preço se distancia do chamado “preço externo de referência” — fixado com base em médias de 1986 a 1988 —, a diferença passa a contar como um tipo de subsídio agrícola.

O problema é que o mundo mudou muito desde os anos 1980. Inflação, variações cambiais e novas realidades produtivas tornaram obsoletos muitos dos parâmetros fixados. Países que aderiram à OMC após 1995, por exemplo, veem-se em desvantagem, pois precisam usar como referência preços históricos que pouco dialogam com suas realidades atuais. As divergências técnicas — sobre o período-base, a moeda utilizada e os critérios para calcular a produção com direito ao benefício — se transformam, assim, em batalhas políticas.

Tendências e distorções: o papel da inflação e do câmbio

Um dos trechos mais reveladores do relatório da FAO analisa como a inflação e as variações cambiais afetam os preços administrados em relação aos preços internacionais. Usando como exemplo o trigo em países como Brasil, China, Índia e Paquistão, o estudo mostra que, em moedas locais, os preços pagos pelos governos aos produtores aumentaram entre 2008 e 2019. Contudo, quando ajustados em dólares e descontada a inflação, essa diferença diminui ou até desaparece. Ou seja, o que parece um subsídio generoso à primeira vista pode, na prática, não representar um ganho real para o agricultor.

Esse tipo de análise revela o quão ilusório pode ser confiar apenas em métricas padronizadas para julgar políticas públicas complexas. É preciso levar em conta o contexto econômico, social e institucional de cada país. Nem sempre o que parece “injusto” sob um critério internacional de medição o é do ponto de vista do bem-estar coletivo.

Caminhos possíveis: para além do impasse

O relatório da FAO conclui com três sugestões estratégicas para enfrentar os principais desafios. A primeira é promover um entendimento comum sobre o papel dos estoques públicos na segurança alimentar — algo que só será possível com mais diálogo e troca de experiências. A segunda é avaliar cuidadosamente o impacto dessas políticas em produtores, consumidores e mercados globais, comparando-as com alternativas viáveis. E a terceira, talvez a mais difícil, é garantir que uma política nacional não prejudique os objetivos de segurança alimentar de outros países.

Nesse sentido, o documento da FAO é mais do que uma revisão técnica. É um chamado ético. Um convite a repensar o papel do Estado na regulação dos alimentos em um mundo de abundância desigual e riscos crescentes.

Para um novo pacto alimentar

Num tempo em que o alimento é, paradoxalmente, escasso e desperdiçado, o debate sobre estoques públicos se revela não apenas técnico, mas profundamente político. Trata-se de decidir que lugar a comida deve ocupar em nossa ordem social: se será apenas mais uma mercadoria sujeita às volubilidades do mercado, ou um direito fundamental garantido por políticas públicas bem estruturadas.

Em última instância, falar de estoques reguladores é falar de um pacto civilizatório. Um pacto que nos permita, coletivamente, transformar a segurança alimentar de uma promessa retórica em realidade concreta — grão por grão, dia após dia.

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