Blog do IFZ | 20/04/2025
Nas planícies alagadas da Ásia, onde o arroz floresce como promessa diária de sustento para bilhões, uma ameaça silenciosa e insidiosa começa a emergir, nutrida pelas próprias engrenagens do clima em mutação. O estudo “Impact of climate change on arsenic concentrations in paddy rice and the associated dietary health risks in Asia: an experimental and modelling study” publicado na The Lancet Planetary Health, liderado por uma coalizão internacional de cientistas, revela que a combinação de aquecimento global e elevação das concentrações de CO₂ atmosférico intensifica a bioacumulação de arsênio nos grãos de arroz — um veneno invisível, solúvel, absorvido com a água que irriga os campos, e carregado para dentro do alimento mais consumido no planeta. Ainda que os experimentos tenham sido realizados em campos chineses, os resultados falam uma língua universal: o fenômeno é planetário, e onde houver arroz inundado sob o céu do Antropoceno, o risco se insinua.
O estudo, fruto de uma década de observações em plataformas de enriquecimento de CO₂ e calor (FACE e T-FACE), demonstrou que o acúmulo de arsênio inorgânico nos grãos — a forma mais tóxica, associada a cânceres e doenças crônicas — se intensifica com o avanço das mudanças climáticas. A explicação repousa na alquimia do solo: temperaturas mais altas e níveis elevados de CO₂ alteram o microbioma radicular, reduzem o potencial redox e estimulam genes microbianos que tornam o arsênio mais biodisponível. O ciclo vicioso se fecha nas raízes do arroz, que absorvem o arsênico com a mesma avidez com que captam o silício de que tanto necessitam. Os riscos extrapolam a biologia vegetal: modelagens realizadas pelo estudo indicam que, apenas na China, quase 6 milhões de novos casos de câncer poderão surgir até 2050 em decorrência do consumo desse arroz contaminado — e países como Vietnã, Índia e Filipinas enfrentam projeções igualmente alarmantes.
Embora promissoras soluções técnicas tenham sido sugeridas — como a irrigação intermitente, o uso de cultivares menos absorventes e a reconfiguração química do solo —, essas medidas ainda carecem de políticas robustas, financiamento e vontade política. O estudo lança, assim, uma advertência global: a crise climática não apenas ameaça os volumes das colheitas, mas começa a envenenar, de forma lenta e quase imperceptível, aquilo que ainda conseguimos colher. O arroz, ouro das lavouras e símbolo de segurança alimentar, pode se tornar um cavalo de Troia à mesa da humanidade, e seus efeitos só poderão ser revertidos se ciência, política e sociedade se moverem antes que o futuro nos sirva seu banquete tóxico.
Impacto das mudanças climáticas nas concentrações de arsênio no arroz em casca e os riscos associados à saúde alimentar na Ásia: um estudo experimental e de modelagem
Histórico
O aumento das concentrações atmosféricas globais de dióxido de carbono (CO₂) e das temperaturas da superfície pode afetar negativamente tanto a produção quanto a qualidade nutricional do arroz. No entanto, seus efeitos sobre o acúmulo de arsênio no arroz em casca ainda não haviam sido avaliados de forma simultânea. Nosso objetivo foi avaliar o impacto do aumento de CO₂ e da temperatura (individualmente e em combinação) nas concentrações de arsênio no arroz, caracterizar as propriedades do solo que podem influenciar sua absorção e modelar os riscos de câncer e outros efeitos à saúde decorrentes da maior exposição ao arsênio.
Métodos
Neste estudo de modelagem, conduzimos testes multivariados in situ, entre 2014 e 2023, utilizando plataformas de enriquecimento de CO₂ ao ar livre, com e sem suplementação de temperatura, para examinar a bioacumulação de arsênio no arroz em casca e os mecanismos biogeoquímicos subjacentes. Modelamos a exposição dietética ao arsênio inorgânico e os riscos associados a desfechos cancerígenos e não cancerígenos relacionados ao consumo de arroz em sete dos principais países consumidores do grão no Leste e Sudeste Asiático.
Resultados
A elevação simultânea de CO₂ e temperatura resultou em um aumento sinérgico nas concentrações de arsênio inorgânico nos grãos de arroz. Esse aumento observado parece estar relacionado a alterações na biogeoquímica do solo que favorecem a presença de espécies de arsênio em formas reduzidas. O consumo de arroz modelado sob essas condições indicou aumentos projetados na exposição ao arsênio inorgânico e nos riscos de câncer e outros efeitos adversos à saúde ao longo da vida em diversos países asiáticos até 2050.
Interpretação
A exposição ao arsênio inorgânico e suas consequências para a saúde podem aumentar nos grãos de arroz cultivados em sistemas inundados sob as condições climáticas projetadas para meados do século. Esta avaliação reforça a necessidade urgente de mitigar a exposição ao arsênio no arroz, considerando os impactos das mudanças climáticas no curto prazo.
