Só um país do mundo produz tudo o que consome — e não é o Brasil

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Blog do IFZ | 28/05/2025

Em um planeta cuja segurança alimentar é constantemente abalada por choques logísticos, guerras e crises sanitárias, apenas um país entre 186 analisados consegue produzir internamente alimentos suficientes para atender integralmente às necessidades nutricionais de sua população. Esse país é a Guiana, segundo o estudo “Gap between national food production and food-based dietary guidance highlights lack of national self-sufficiency“, publicado na revista Nature Food, conduzido por universidades da Alemanha e do Reino Unido. Não é uma potência industrial, nem uma nação rica em tecnologia agrícola: é um pequeno país sul-americano que revela, em sua modéstia produtiva, uma rara harmonia entre produção e consumo.

Figura 1  Autossuficiência alimentar por grupo nutricional em 186 países | Fonte: Nature Food, 2025
Figura 1 Autossuficiência alimentar por grupo nutricional em 186 países | Fonte: Nature Food, 2025

A análise, que combina dados da FAO e da dieta sustentável Livewell da WWF, não mede apenas calorias — como estudos anteriores —, mas a capacidade de suprir sete grupos nutricionais essenciais: frutas, vegetais, laticínios, peixes, carnes, proteínas vegetais (leguminosas, nozes e sementes) e alimentos ricos em amido. A Figura 1 (acima) revela a distribuição da autossuficiência alimentar global, com ênfase nas carências de vegetais e peixes, particularmente visíveis no Brasil.

Guiana: a exceção silenciosa

Segundo os autores do estudo, a Guiana é autossuficiente em todos os sete grupos alimentares. Isso significa que o país sul-americano atende com sua produção interna às recomendações alimentares da dieta Livewell em todos os grupos analisados. Ao contrário do que se poderia imaginar, essa autossuficiência não é reflexo de industrialização ou alta tecnologia agrícola, mas sim da combinação entre diversificação produtiva, baixo grau de urbanização e alimentação tradicional baseada em insumos locais.

Essa realidade ilustra uma das hipóteses do estudo: a autossuficiência alimentar não está necessariamente associada à riqueza econômica. Ela pode ser, antes, um subproduto da economia de subsistência ou de sistemas alimentares locais resilientes. Enquanto países desenvolvidos priorizam exportações e especialização agrícola, a Guiana demonstra que equilíbrio nutricional e segurança alimentar podem ser frutos de uma organização territorial descentralizada e culturalmente enraizada.

Brasil: potência exportadora com lacunas estratégicas

O Brasil, embora seja um dos maiores produtores mundiais de carne, grãos e frutas, não atinge a autossuficiência alimentar plena. De acordo com a pesquisa, o país não consegue produzir vegetais e peixes em quantidade suficiente para atender às necessidades alimentares da população conforme os padrões saudáveis estabelecidos.

Esse déficit aparece com clareza na Figura 1: grande parte da América do Sul, incluindo o Brasil, exibe insuficiência crítica no grupo dos vegetais (em vermelho escuro), e insuficiência acentuada também em pescado, grupo em que apenas 25% dos países são autossuficientes. Em contraste, o país aparece com excesso na produção de carne e laticínios, o que confirma uma das conclusões do estudo: a superprodução de alimentos de origem animal e o subdesenvolvimento de outras cadeias alimentares importantes, como hortas urbanas, aquicultura e leguminosas.

Riscos de dependência e diversificação insuficiente

A análise também destaca um risco muitas vezes negligenciado: a baixa diversidade de parceiros comerciais. Países com produção insuficiente, como o Brasil em vegetais, frequentemente dependem de um único ou poucos fornecedores. Em contextos de crises globais — como a pandemia de Covid-19 ou a guerra na Ucrânia —, essa dependência pode resultar em rupturas severas no abastecimento e no encarecimento dos alimentos.

A Figura 2, abaixo, revela como os blocos econômicos se comportam quanto à autossuficiência regional. O MERCOSUL, do qual o Brasil faz parte, atinge autossuficiência em cinco dos sete grupos, mas não em vegetais e peixes — exatamente os pontos fracos também do Brasil. Isso limita a capacidade de compensar déficits nacionais com comércio intrarregional.

Figura 2  Autossuficiência alimentar em blocos econômicos regionais | Fonte: Nature Food, 2025
Figura 2 Autossuficiência alimentar em blocos econômicos regionais | Fonte: Nature Food, 2025

Para além da produção: soberania alimentar como estratégia

A autossuficiência alimentar, defendem os autores, não é uma meta absoluta, mas uma variável crítica para a resiliência das nações. Países com baixa capacidade de resposta — como ilhas do Pacífico ou nações árabes que não produzem nem um único grupo alimentar de forma suficiente — estão à mercê dos mercados internacionais. Já aqueles com maior diversificação produtiva e comercial podem amortecer melhor os impactos de crises externas.

Para o Brasil, isso implica em rever a lógica do agronegócio voltado exclusivamente à exportação e em investir em políticas públicas de apoio à agricultura familiar, à agroecologia e à produção de vegetais e pescado em pequena escala. Iniciativas locais, hortas urbanas, feiras agroecológicas e cadeias curtas podem ser ferramentas cruciais não só para a nutrição, mas também para a soberania nacional.

Baixe aqui o estudo “Gap between national food production and food-based dietary guidance highlights lack of national self-sufficiency