Aumenta a dependência dos EUA em alimentos importados: alerta para o déficit comercial no setor alimentício

  • Tempo de leitura:6 minutos de leitura

Por Katie Hettinga no Rethink Trade | Julho de 2025

A dependência dos Estados Unidos em relação aos alimentos importados aumentou drasticamente. Em 2024, o país registrou um déficit comercial de US$ 58,7 bilhões no setor de alimentos. Entre 2015 e 2024, esse déficit cresceu mais de US$ 46 bilhões — sendo 93% desse saldo negativo resultante do aumento das importações.

Ao contrário do que afirma o agronegócio corporativo (a chamada Big Ag), não é possível superar esse cenário apenas com exportações. A ideia de que novos acordos comerciais resolveriam o problema ignora os dados. As exigências do governo Trump para que outros países aceitassem mais produtos americanos não reduziram o déficit.

Em junho, o Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) adiou — e em parte censurou — a divulgação de um relatório comercial que previa um aumento recorde no déficit agrícola. Quando enfim foi publicado (sem a tradicional análise escrita que acompanha os dados), o documento projetava um déficit comercial de US$ 49,5 bilhões para o ano fiscal. Vale lembrar que a categoria “comércio agrícola” inclui também itens não alimentícios, como fibras, produtos florestais e óleos industriais.

Uma análise da Rethink Trade, com base nos dados anuais disponíveis da Comissão de Comércio Internacional dos EUA (USITC), concluiu que, em 2024, o déficit comercial especificamente no setor de alimentos ultrapassou US$ 58,7 bilhões. A conta inclui também produtos do mar consumidos nos EUA, embora esses não sejam considerados “agrícolas” pela definição da Organização Mundial do Comércio (OMC).

O último ano em que os EUA não apresentaram déficit alimentar foi 2014. Desde então, o desequilíbrio só aumentou.

Déficit comercial agrícola: um problema estrutural

Os Estados Unidos têm registrado déficits comerciais em produtos agrícolas — incluindo fibras, produtos florestais e industriais, rações e outros itens não destinados ao consumo humano — desde 2017.

Alimentos cultivados no exterior para o 4 de julho?

Na data que celebra a independência nacional, os americanos estão mais dependentes do que nunca de alimentos importados.

Hoje, o país apresenta déficits comerciais até mesmo em produtos típicos das festividades do 4 de julho — itens nos quais, até pouco tempo atrás, havia superávit.

Segundo o USDA, uma parcela cada vez maior dos alimentos e bebidas consumidos nos EUA é importada.

A maior parte dos produtos derivados da moagem de grãos e oleaginosas (como farinha e farelo de soja), frutas, nozes e frutos do mar consumidos no país vêm do exterior. Importações também representam mais de um terço de todos os vegetais, bebidas, açúcares e adoçantes consumidos internamente.

Exportar mais resolveria o problema?

É altamente improvável. Em 2024, os EUA exportaram mais de US$ 4 bilhões a mais em alimentos para seus cinco principais destinos do que em 2015 — e, mesmo assim, o déficit continua crescendo.

As principais categorias de exportação em valor são sementes oleaginosas (como soja, canola e algodão), carnes, cereais (trigo, milho, arroz), frutas e nozes, além de preparações alimentícias diversas.

O recente recuo nas exportações de oleaginosas (especialmente soja) e cereais (sobretudo milho) se deve, em grande parte, ao fato de a China — um importante parceiro comercial — estar comprando esses produtos de outros países, após o agravamento das tensões comerciais com os EUA. Forçar a China ou outros países a adquirir commodities de baixo valor agregado por meio de imposições tarifárias ou acordos coercitivos, enquanto esses mesmos países continuam importando maciçamente alimentos de alto valor, não resolve a raiz do problema.

O que está impulsionando o déficit: o aumento das importações

As importações de alimentos de parceiros comerciais estratégicos continuam em expansão. Em 2024, os EUA importaram mais de US$ 33 bilhões em alimentos desses países do que em 2015.

As principais categorias de importação, em valor, incluem: bebidas, frutas e nozes, frutos do mar, preparações à base de cereais e vegetais. Entre 2015 e 2024, os aumentos em cada categoria foram significativos:

  • Frutos do mar: +US$ 219 milhões
  • Bebidas: +US$ 3,1 bilhões
  • Vegetais: +US$ 4,1 bilhões
  • Frutas e nozes: +US$ 5,3 bilhões
  • Preparações de cereais: +US$ 7,7 bilhões

Conclusão

O atual sistema comercial — e seu impacto sobre o setor agrícola — exige uma reavaliação profunda. Os acordos existentes permitem subsídios à exportação que favorecem grandes conglomerados globais do comércio e processamento de alimentos, em detrimento de agricultores e consumidores.

As atuais regras internacionais dificultam a gestão de estoques, a promoção da agricultura local e o fortalecimento da agricultura familiar. Também limitam a criação de redes de proteção para os pequenos produtores.

Os EUA precisam ampliar seu espaço de manobra política para implementar políticas agrícolas e alimentares mais inteligentes. É fundamental apoiar a capacidade dos agricultores americanos de cultivar mais dos alimentos que são efetivamente consumidos no país, além de fortalecer a infraestrutura de processamento.

Apoiamos o chamado da Farm Action Network por uma mudança profunda na política agrícola dos EUA. Isso significa priorizar a produção e o processamento doméstico de alimentos saudáveis, e reduzir os incentivos à produção de commodities de baixo valor — como milho e soja — destinadas principalmente à ração animal, ao uso industrial e à fabricação de alimentos ultraprocessados.

Concentração no setor alimentício: o papel das grandes corporações

O setor está fortemente concentrado. As quatro gigantes globais do comércio de grãos — ADM (Archer Daniels Midland), Bunge, Cargill e Louis Dreyfus (conhecidas como o grupo “ABCD”) — detêm, segundo a UNCTAD, cerca de 70% do mercado mundial de alimentos. Essas empresas controlam grande parte das exportações americanas de soja e milho, lucrando com a volatilidade de preços das commodities.

Um relatório elaborado pelo advogado antitruste Basel Musharbash para a Farm Action Network, em setembro de 2024, mostrou que toda a cadeia de abastecimento agrícola — dos insumos ao processamento e à distribuição — está nas mãos de cerca de trinta grandes corporações.

Para enfrentar essa concentração e dar uma chance real às pequenas e médias propriedades, são necessárias medidas antitruste vigorosas contra os cartéis do processamento, aplicação efetiva da Lei Robinson-Patman (que combate práticas de preços discriminatórios) e o endurecimento da legislação concorrencial, como a Packers and Stockyards Act, para impedir que processadores abusem de seu poder de mercado.

Um compromisso firme do governo — inclusive da ala trumpista — com o enforcement das leis concorrenciais traria grande alívio às pequenas e médias fazendas, que hoje lutam para sobreviver em um ambiente altamente concentrado.

Metodologia

  • Dados comerciais: extraídos do DataWeb da USITC (importações para consumo e exportações domésticas).
  • Definição de “comércio agrícola”: baseada no Acordo sobre Agricultura da OMC, com inclusão do Capítulo 3 (produtos pesqueiros). Abrange os Capítulos 1 a 24 do Sistema Harmonizado (HS), mais produtos específicos como óleos essenciais, amidos, couros, seda, lã, algodão e linho.
  • Definição de “comércio de alimentos”: inclui os Capítulos 1 a 22 do HS, excluindo itens não alimentares, como animais vivos não destinados à carne, produtos vegetais industriais e rações.
  • Dados sobre consumo: extraídos do Serviço de Pesquisa Econômica do USDA (proporção de exportações na produção e de importações no consumo, 2008–2022).

Publicado originalmente no Rethink Trade
https://rethinktrade.org/food-deficit