Blog do IFZ | 05/08/2025
Baixe aqui o estudo “Elementos facilitadores e dificultadores no processo de compra da agricultura familiar para a alimentação escolar no Brasil“
Na longa e intrincada estrada que liga o campo à escola pública brasileira, um estudo realizado em 2022 e publicado recentemente mapeia, com cuidado, os buracos, desvios e atalhos desse trajeto ainda pouco pavimentado. Coordenada pelo Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar da Universidade Federal Fluminense (CECANE-UFF), em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e por demanda do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a pesquisa “Elementos facilitadores e dificultadores no processo de compra da agricultura familiar para a alimentação escolar no Brasil” oferece um panorama nacional revelador.
Mais do que um diagnóstico burocrático, trata-se de um mapeamento criterioso das forças que operam, tensionam e, por vezes, paralisam a engrenagem que conecta os pequenos produtores rurais ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) — um dos pilares mais expressivos da política pública de segurança alimentar no país.
Desde 2009, a Lei nº 11.947 determina que ao menos 30% dos recursos repassados pelo FNDE aos estados e municípios para a alimentação escolar devem ser destinados à aquisição direta de alimentos oriundos da agricultura familiar. A medida, que poderia soar como mais uma boa intenção legiferante, é, na verdade, uma inovação de múltiplas dimensões: impulsiona economias locais, reconhece e valoriza saberes tradicionais, combate a insegurança alimentar e articula um sistema agroalimentar mais sustentável.
No entanto, a realidade nos municípios brasileiros é bem menos idílica. Em 2017, por exemplo, cerca de 40% das Entidades Executoras do PNAE (como prefeituras e secretarias de educação) não conseguiram cumprir a cota mínima prevista em lei. O abismo entre o prescrito e o executado é o que motivou a elaboração deste estudo, que se debruça sobre as causas — técnicas, administrativas, logísticas e até culturais — por trás desse desempenho oscilante.
O trabalho em parceria com a FAO confere ao estudo um lastro técnico e político de amplitude internacional. A agência da ONU tem papel central na formulação de estratégias para o combate à fome e à má nutrição. No contexto brasileiro, sua colaboração fortalece o alinhamento das políticas alimentares nacionais com os compromissos da Agenda 2030, especialmente os que envolvem sistemas alimentares resilientes e inclusivos.
Por sua vez, os Centros Colaboradores em Alimentação e Nutrição Escolar (os CECANEs), criados em parceria entre o FNDE e instituições federais de ensino superior, constituem os braços operacionais dessa engrenagem. Presentes em todas as regiões do país, eles realizam desde capacitações e assessorias técnicas até estudos de campo e levantamento de dados, oferecendo uma base concreta para políticas públicas mais informadas e eficazes.
Obstáculos visíveis e invisíveis
O estudo sistematizou evidências empíricas obtidas por meio de oficinas regionais, relatórios técnicos e dados do Sistema de Gestão de Prestação de Contas (SIGPC). Entre os fatores dificultadores identificados, destacam-se:
- Descompasso entre demanda e oferta: muitas entidades desconhecem a real capacidade de produção da agricultura familiar local, e vice-versa.
- Falta de articulação interinstitucional: os diferentes órgãos públicos envolvidos no processo — educação, agricultura, assistência técnica — muitas vezes operam de forma isolada, fragmentando a política.
- Despreparo técnico e burocracia excessiva: ainda é comum encontrar gestores sem formação adequada para realizar compras públicas que fogem do modelo tradicional de licitação.
- Limitações de infraestrutura: desde a ausência de armazenamento adequado até a dificuldade de transporte, há barreiras físicas que comprometem a cadeia de fornecimento.
E os facilitadores?
A boa notícia é que os caminhos para superar essas barreiras também foram mapeados. O estudo aponta como elementos-chave de sucesso:
- Planejamento participativo do cardápio escolar, com envolvimento de nutricionistas e produtores desde a elaboração até a entrega dos alimentos.
- Capacitação continuada de gestores escolares e agricultores, o que reduz a distância entre as exigências da política pública e a realidade do campo.
- Flexibilização dos processos de compra, como a dispensa de licitação para compras da agricultura familiar, que permite adequar o calendário escolar à sazonalidade dos cultivos.
- Estímulo à organização coletiva dos agricultores, seja por meio de cooperativas ou associações, fortalecendo seu poder de negociação e logística.
Alimentar o presente, cultivar o futuro
Mais do que um relatório técnico, o estudo realizado pelo CECANE-UFF e FAO é um exercício de escuta, articulação e sistematização que contribui para a consolidação de um modelo de desenvolvimento que, sem perder de vista as metas globais, finca os pés na terra brasileira. Ele revela que alimentar bem as crianças das escolas públicas não é apenas um dever constitucional — é uma decisão estratégica que molda o futuro do país.
Cada refeição escolar preparada com produtos da agricultura familiar carrega consigo uma cadeia de significados: respeita o ciclo da natureza, reconhece o trabalho dos pequenos produtores, dinamiza economias locais e, sobretudo, inscreve no cotidiano das escolas uma pedagogia da terra e da dignidade.
O desafio agora não é apenas cumprir a lei. É transformá-la em cultura. E, nesse sentido, o estudo deixa claro: onde há vontade política, formação técnica e diálogo com os territórios, há também colheitas abundantes — de alimento e de cidadania.

