Como o tarifaço pode melhorar a alimentação dos brasileiros

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O abastecimento alimentar brasileiro foi moldado por um modelo de autosserviço e pela indústria de processados. O tarifaço de Trump pode ser a chance de corrigir distorções históricas, priorizando a produção local e os produtos frescos

Por José Graziano da Silva e Walter Belik no Correio Braziliense | 21/08/2025

O recente “tarifaço” imposto pelo governo Trump sobre produtos agrícolas exportados — incluindo frutas, verduras e legumes — pode gerar um efeito inesperado no Brasil: o aumento da oferta de alimentos saudáveis e de melhor qualidade no mercado interno. Trata-se de uma janela de oportunidade que, se bem aproveitada, pode promover mudanças estruturais positivas na alimentação da população e no sistema de abastecimento local. 

Mais do que apenas evitar prejuízos aos grandes produtores que perderão parte de seus mercados externos, essa conjuntura representa uma chance concreta de enfrentar a má nutrição, especialmente entre os mais pobres. O Brasil vive uma contradição: embora produza frutas e hortaliças em abundância, boa parte da população consome menos do que o mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) — 400g por pessoa —, devido ao seu preço elevado.

Segundo o relatório mais recente O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI, 2025), o Brasil saiu novamente do Mapa da Fome, com a prevalência de subalimentação caindo para menos de 2,5% da população. Ainda assim, cerca de 7 milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar severa. Quando somadas àquelas em situação de insegurança alimentar moderada, esse número salta para cerca de 28 milhões de brasileiros que passaram fome em 2024. 

Mais alarmante ainda é o aumento do custo diário de uma dieta saudável no país nos últimos anos. De acordo com o SOFI, o valor subiu quase 50% — de US$ 3,15 em 2017 para US$ 4,69 em 2024. Estimativas indicam que quase metade do custo dessa cesta saudável se deve às frutas, verduras e legumes. Esse aumento está ligado, em grande parte, ao desmantelamento dos circuitos locais de produção e distribuição — como feiras livres e sacolões —, deixando o abastecimento praticamente nas mãos dos supermercados. 

O relatório aponta ainda que a parcela da população brasileira capaz de pagar por uma dieta saudável caiu de 27% em 2017 para menos de 24% em 2024. Isso significa que apenas uma em cada quatro pessoas tem acesso a uma alimentação equilibrada. Em números absolutos, mais de 50 milhões de brasileiros não conseguem pagar por uma dieta saudável que contenha frutas, verduras e legumes. 

Esse acesso limitado ajuda a explicar por que a obesidade já atinge mais de um quarto da população adulta, convivendo com deficiências nutricionais e dietas ricas em produtos ultraprocessados. A má qualidade da alimentação gera custos elevados para o sistema de saúde e impacta negativamente a produtividade. 

O governo anunciou um pacote econômico para compensar as perdas dos exportadores brasileiros com o tarifaço. Foram prometidos R$ 30 bilhões em créditos com juros subsidiados, além de outras medidas, como o aumento das compras públicas de alimentos perecíveis para a alimentação escolar. Nesse contexto, absorver no mercado interno parte do excedente não exportado ganha relevância estratégica.

Integradas a políticas públicas já existentes, como o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), essas iniciativas podem fortalecer a agricultura familiar, melhorar a oferta e reduzir os preços ao consumidor. Desde 2009, pelo menos 30% das compras para a merenda escolar devem ser feitas junto à agricultura familiar. Apesar das dificuldades, estudos mostram que, em média, 24% dessas compras têm origem na agricultura familiar. 

Entre as cadeias produtivas mais afetadas pelo tarifaço, estão aquelas voltadas a especialidades regionais, como o açaí da Amazônia, o mel do Piauí, o café do sul de Minas Gerais e as frutas do Vale do São Francisco. Já as grandes cadeias, como suco de laranja, etanol e carnes, contam com lobbies poderosos nos EUA, capazes de negociar exceções ou redirecionar exportações para outros mercados. 

O setor de supermercados começou a se reposicionar: cerca de 10% do faturamento das redes já vem da venda de frutas, verduras e legumes. Mas a oportunidade vai além do setor privado. Canais curtos de comercialização — como feiras livres, mercados municipais, sacolões e redes locais — precisam ser fortalecidos para ampliar a capilaridade da distribuição. 

Paradoxalmente, o tarifaço de Trump pode ser a chance de corrigir distorções históricas no sistema alimentar brasileiro. Ao longo das décadas, o abastecimento foi moldado por um modelo de autosserviço e pela indústria de processados, que marginalizou os produtos frescos. Se aproveitarmos essa conjuntura para priorizar a produção local, valorizar circuitos curtos e ampliar o acesso da população a frutas, verduras e legumes, daremos um passo decisivo para transformar a qualidade da dieta no país.

O Brasil já mostrou, com o Fome Zero e o fortalecimento da alimentação escolar, que pode responder rapidamente a desafios estruturais quando há coordenação entre governo, setor privado e sociedade civil. Agora, o desafio não é apenas garantir que todos tenham o que comer, mas que possam também se alimentar bem.

Publicado originalmente no Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2025/08/7231078-como-o-tarifaco-pode-melhorar-a-alimentacao-dos-brasileiros.html