A Anvisa e o caso da publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis

  • Tempo de leitura:13 minutos de leitura

Brasil avançou na regulamentação da indústria de alimentos e bebidas, mas deve continuar incrementando-a

Por Isabel Barbosa, Natasha Lauletta, Diogo R. Coutinho, Ana Paula Bortoletto Mariana Levy no Jota | 25/08/2025

Em 2024, o ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal (STF), confirmou a competência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para regular a veiculação de informações em qualquer tipo de promoção comercial envolvendo alimentos com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas com baixo teor nutricional.[1]

O voto proferido no ARE 1.480.888, pelo ministro relator, tem importância histórica quanto ao reconhecimento dos poderes regulatórios da Anvisa para garantir que na publicidade de produtos nocivos à saúde sejam fornecidas informações sobre os riscos do consumo excessivo desses componentes, para assim coibir práticas comerciais que levem o público, em especial o infantil, a padrões de consumo incompatíveis com a saúde e prejudiciais à alimentação adequada.

A decisão, que está em consonância com recomendações e normas internacionais em matéria de direitos humanos para garantia do direito à informação, à saúde e à alimentação adequada e saudável – e, portanto, para a garantia da vida digna.

É uma interpretação do direito que contribui para a redução do consumo de produtos não saudáveis, incluindo alimentos e bebidas enquadrados nessa categoria. Estes, como hoje já se sabe (há consenso científico), são fatores de risco para as doenças não transmissíveis (DCNTs)[2] como doenças cardiovasculares, doenças respiratórias crônicas, câncer e diabetes, responsáveis por mais de 70% das mortes no Brasil.[3]

Sobre o assunto, a Organização Mundial de Saúde (OMS) já emitiu diversas recomendações no sentido de adotar e implementar políticas públicas para enfrentar essa crise sanitária. Trata-se do reconhecimento de que a exposição à publicidade de alimentos não saudáveis é fator que dificulta a adoção de alimentação mais saudável, incluindo nesse categoria o  marketing digital[6].

Tanto a OMS, como o seu braço nas Américas, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), defendem que a regulação eficaz do marketing é uma forma de proteção da saúde pública, necessária para proteger crianças e adultos do seu impacto negativo.[7][8]

O tema também está em debate na ADI 7788, também sob a relatoria do ministro Zanin. Quanto a este caso, foi designada audiência pública para esta terça-feira (26/8). Entidades que representam o setor econômico, academia e a sociedade civil participarão em defesa da saúde pública.

Vale dizer ainda que, atendendo a essas diretrizes de direitos humanos e saúde pública, diferentes países vêm adotando e implementando políticas públicas voltadas à redução do consumo de produtos não saudáveis, bem como à promoção de dietas mais saudáveis para prevenir DCNTs.[9]

Mais do que produzir efeitos no sentido de reconhecer a constitucionalidade da iniciativa da Anvisa, uma decisão que crie condições para regular a publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis terá impactos sobre futuras decisões do STF quando se tratar de casos nos quais o poder normativo da regulação estiver em jogo.

Vale dizer: mesmo considerando as peculiaridades do caso envolvendo a RDC 24/2010, o STF pode contribuir com a construção de um corpo jurisprudencial que avance no sentido de discutir qual a margem de ação do regulador na implementação e interpretação da legislação. Com isso ganha o Estado Regulador, cuja efetividade depende em larga medida dessa definição.

Os litígios envolvendo a RDC 24/2010

Em 2010, a Anvisa publicou a RDC 24/2010,[10] voltada a estabelecer “requisitos mínimos para oferta, propaganda, publicidade, informação e outras práticas correlatas cujo objetivo seja a divulgação e a promoção comercial de alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio, e de bebidas com baixo teor nutricional, nos termos desta Resolução”.

O principal objetivo da referida norma é evitar que os consumidores, em especial as crianças, sofram influência das práticas agressivas de marketing que ameaçam a plena fruição dos direitos à saúde e à alimentação adequada,[11] dentre outros direitos humanos correlatos.[12]

Após a normativa entrar em vigor, diversas empresas e associações relacionadas à indústria de alimentos e bebidas não saudáveis questionaram essa Resolução judicialmente. Os processos contestavam, em seu cerne, o poder da Anvisa para regular o tema.

Em outras palavras, o principal argumento da indústria, ao longo de quinze anos de judicialização, foi questionar a chamada competência regulatória da agência. Dos 11 processos sobre o assunto, 5 foram resolvidos favoravelmente à Anvisa e outros cinco encontram-se pendentes de julgamento no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). Um deles chegou ao STF.

Esse último foi proposto pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), uma das maiores associações do setor de alimentos no país, englobando diversas empresas do ramo. O caso foi decidido a favor da ABIA em primeira e segunda instâncias, o que incluía a suspensão dos efeitos da regulação aos membros da referida associação. Em razão do número de associados da ABIA, isso representava quase todo o setor de alimentos e bebidas não saudáveis do país.

O STF, contudo, por meio da decisão monocrática do ministro Zanin, reverteu o quadro, reformando as decisões anteriores e ratificando a competência da Anvisa para dar contornos regulatórios à publicidade de produtos nocivos à saúde, incluindo alimentos e bebidas não saudáveis. O relator também destacou a importância dessa regulação para a proteção da saúde pública, reconhecendo a correlação entre dietas não saudáveis e as DCNTs.

Como parte de sua fundamentação, seu voto traçou  um paralelo importante entre a autoridade da Anvisa para regular a publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis e a regulamentação da comercialização e propaganda do tabaco.

Especificamente, o ministro Zanin considerou como leading case a disputa em torno da proibição dos aditivos do tabaco, na qual o poder regulatório da Anvisa também havia sido contestado pela indústria do tabaco.[13] Naquela ocasião, entre outros pontos, o STF havia começado a delinear a importância da agência reguladora na interpretação da lei para controlar e fiscalizar a atividade econômica de produtos que oferecem risco à saúde pública.

Recentemente, em 27 de fevereiro de 2025, a Associação Brasileira de Emissoras e Rádio e Televisão (Abert) decidiu entrar na disputa e propôs ação direta de inconstitucionalidade (ADIn 7788) visando à declaração de inconstitucionalidade de duas resoluções sobre publicidade expedidas pela Anvisa, dentre elas, a RDC 24/2010. A demanda foi distribuída para o ministro Zanin, que, como mencionado acima, convocou audiência pública para este 26 de agosto, a fim de ouvir especialistas no assunto.[14]

O que está em jogo agora é a própria existência de uma regulação efetiva e, como pano de fundo, também está em questão do arcabouço regulatório das agências reguladoras. Isso porque a Abert, assim como outras associações da indústria aceitas como amicus curiae (não casualmente, a ABIA está entre elas) tentam reduzir e limitar o poder regulatório da Anvisa. No caso da publicidade, pretendem eliminá-lo.

O principal argumento é que a regulação de publicidade é protegida pela reserva legal, ignorando a própria lei de criação da agência, que delega o poder regulatório sobre essa questão ao corpo técnico da agência reguladora. Além disso, questionam a constitucionalidade da RDC 24/2010 alegando eventual violação à livre iniciativa e a uma suposta liberdade de expressão comercial.

Espera-se que a 1ª Turma não só mantenha a decisão do ministro Zanin no caso da ABIA, como também que STF rejeite a ADI 7788 da Abert, reconhecendo, assim, a constitucionalidade da RDC 24/2010. Sob este cenário, o STF daria contribuição valiosa ao reconhecer a importância das agências reguladoras brasileiras para a economia do país, bem como para, em específico, a saúde pública e nutricional da população brasileira, sobretudo de baixa renda.

Ao fazê-lo, reconheceria, em especial, a competência técnica da Anvisa, um órgão regulador cujo desenho é marcado pela independência decisória e imparcialidade. Também rechaçaria narrativas equivocadas e desprovidas de razão que procuram tisnar reguladores com base em teses de “abuso regulatório”, cuja função estratégica é mitigar sua capacidade de ação e de cumprimento da lei.

E seria, por fim mas não menos importante, uma forma da corte reforçar o compromisso do Brasil no cumprimento de suas obrigações no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em especial no que se refere aos direitos à saúde e à alimentação adequada, bem como a outros direitos humanos relacionados.

As obrigações do Brasil em matéria de direitos humanos e a publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis

A discussão reflete tema importante e caro ao Estado brasileiro, diante dos compromissos internacionais assumidos pelo país no que tange aos direitos humanos, como os direitos à saúde e à alimentação adequada, e às obrigações conexas de respeitar, proteger e cumprir direitos[15], como por meio da regulação da publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis.

No contexto das políticas relacionadas com ambientes alimentares, a obrigação de proteger o direito à saúde toma especial relevância ao expor a necessidade de se regular atividades econômicas de alguns agentes privados.[16]

Por exemplo, a indústria de alimentos e de bebidas não saudáveis concentra-se, em sua estratégia de negócios, em expandir o consumo dos seus produtos nocivos à saúde utilizando-se, para isso, de ferramentas de marketing e publicidade.[17] Diante disso, a regulação desse tipo de práticas insere-se, sem dúvidas, na obrigação do Estado de proteger o direito à saúde.[18]

A RDC 24/2010 da Anvisa, questionada nas demandas mencionadas, avança justamente nessa direção e demonstra o compromisso do Estado brasileiro com um regime regulatório que não se furta a enfrentar os desafios cada vez salientes da intercessão entre empresas e direitos humanos

As Relatorias Especiais das Nações Unidas sobre o direito à saúde e o direito à alimentação adequada expressaram, quanto a isso, sua preocupação com as práticas agressivas de marketing, incluindo a publicidade, que estão incentivando o consumo de produtos não saudáveis e contribuindo para mudanças na dieta de populações inteiras.[19][20]

Diante desse cenário, vale repetir, a regulação da publicidade (nesse caso, por meio de alertas sanitários) é política regulatória que não apenas se permite pela ótica dos direitos humanos, mas que efetivamente contribui ao cumprimento da obrigação dos Estados de proteger o direito à saúde e o direito a uma alimentação adequada.

Nesse contexto, a decisão inicial de Zanin ratifica a competência regulatória da agência nessa matéria, o que é essencial para a proteção do marco regulatório brasileiro, especialmente  na manutenção da autoridade da Anvisa, que tem sido alvo de ataque por parte de interesses privados a fim de minar sua atuação regulatória.

O Brasil avançou na regulamentação da indústria de alimentos e bebidas, mas deve continuar incrementando-a, inclusive no que diz respeito à regulação mais robusta das práticas de marketing de produtos nocivos à saúde. Estas medidas podem garantir que terceiros, incluindo atores privados, como as empresas, sejam responsabilizados por suas ações, em conformidade com os direitos humanos e os princípios e valores constitucionais.

Para tanto, vale repetir: o pronunciamento do STF sobre a importância e contornos do arcabouço regulatório das agências reguladoras se mostra essencial, especialmente no poder da Anvisa sobre atividades econômicas nocivas à saúde.


Isabel Barbosa é diretora associada do Centro para a Saúde e os Direitos Humanos, parte do Instituto O’Neill para o Direito e a Saúde Global na Universidade de Georgetown, e professora adjunta da mesma universidade

Natasha Lauletta é consultora do Centro para a Saúde e os Direitos Humanos, parte do Instituto O’Neill para o Direito e a Saúde Global na Universidade de Georgetown

Diogo R. Coutinho é professor de Direito Econômico da USP

Ana Paula Bortoletto é professora doutora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) e do Grupo de Direito e Políticas Públicas (GDPP), ambos da USP

Natasha Lauletta é consultora do Centro para a Saúde e os Direitos Humanos, parte do Instituto O’Neill para o Direito e a Saúde Global na Universidade de Georgetown

Mariana Levy é integrante do programa de pós-doutorado da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora do Grupo Direito e Políticas Públicas da USP (GDPP)


[1] Carvalho, A.; Coutinho, D.; Machado de Almeida, E.; Moura, W. J. F. Uma luta de mais de dez anos: Ministro Zanin reconhece poder normativo da ANVISA e valida alertas em publicidade de alimentos nocivos à saúde. JOTA, jun. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/uma-luta-de-mais-de-dez-anos

[2] World Health Organization. Noncommunicable diseases. 2024. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/noncommunicable-diseases

[3] Pan American Health Organization. Consumption of Ultra-processed and processed foods with excessive amount of nutrients associated with noncommunicable chronic diseases and unhealthy diets in Americas. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/58887/PAHONMHRF210036_eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y

[4] World Health Organization. Fiscal policies to promote healthy diets: WHO guideline. 2024. Disponível em: https://globalfoodlaws.georgetown.edu/wp-content/uploads/2024/07/WHO_2024_Fiscal-Policies-to-promote-healthy-diets.pdf

[5] World health Organization. Policies to protect children from harmful impact of food marketing. 2023. Disponível em: https://globalfoodlaws.georgetown.edu/wp-content/uploads/2024/02/WHO-Guidelines-marketing.pdf

[6] World health Organization. Restricting digital marketing in the context of tobacco, alcohol, food and beverages, and breast-milk substitutes: existing approaches and policy options. 2023. Disponível em: https://globalfoodlaws.georgetown.edu/wp-content/uploads/2024/07/WHO_2024_Restricting-Digital-marketing.pdf

[7] World health Organization. Restricting digital marketing in the context of tobacco, alcohol, food and beverages, and breast-milk substitutes: existing approaches and policy options. 2023. Disponível em: https://globalfoodlaws.georgetown.edu/wp-content/uploads/2024/07/WHO_2024_Restricting-Digital-marketing.pdf

[8] Pan American Health Organization. Marketing of Ultra-processed and processed Food and Non-alcoholic drink products. Disponível em: https://www.paho.org/en/topics/marketing-ultra-processed-and-processed-food-and-non-alcoholic-drink-products

[9] Ver alguns exemplos na base de dados FULL: Global Food Laws. Disponível em: https://globalfoodlaws.georgetown.edu/documents/?_policy_category=marketing

[10] Ver o texto integral da Resolução: https://globalfoodlaws.georgetown.edu/wp-content/uploads/2021/12/Brazil_20100615_Resolution-on-the-Regulation-of-Food-Advertisement_PT.pdf

[11] United Nations. Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health, Tlaleng Mofokeng. Food, nutrition and the right to health. Doc. A/78/185, Jul. 2023. Disponível em: https://globalfoodlaws.georgetown.edu/wp-content/uploads/2024/01/SpRap-Health-2023.pdf

[12] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, REDESCA. Las enfermidades No Transmisibles y los Derechos Humanos en las Américas. Relatora Especial sobre Derechos Económicos, Sociales, Culturales e Ambientales, 2023. OEA/Ser.L/V/II.doc.192/23

[13] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4874. Ministra Relatora Rosa Weber. Julg. 01/02/2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749049101

[14] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 7788. Ministro Relator Cristiano Zanin. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=7180375

[15] Disponível em: https://www.ohchr.org/en/instruments-mechanisms/instruments/international-covenant-economic-social-and-cultural-rights

[16] United Nations. General comment No. 24 on State obligations under the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights in the context of business activities. UN Committee on Economic, Social and Cultural Rights, 2017. Disponível em: https://www.refworld.org/legal/general/cescr/2017/en/122356

[17] United Nations. Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health, Anand Grover. Unhealthy foods, non-communicable diseases and the right to health. Doc. A/HRC/26/31, Apr. 2014. Disponível em: https://globalfoodlaws.georgetown.edu/wp-content/uploads/2024/01/SpRap-Health-2014.pdf

[18] United Nations. Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health, Tlaleng Mofokeng. Food, nutrition and the right to health. Doc. A/78/185, Jul. 2023. Disponível em: https://globalfoodlaws.georgetown.edu/wp-content/uploads/2024/01/SpRap-Health-2023.pdf

[19] United Nations. Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health, Anand Grover. Unhealthy foods, non-communicable diseases and the right to health. Doc. A/HRC/26/31, Apr. 2014. Disponível em: https://globalfoodlaws.georgetown.edu/wp-content/uploads/2024/01/SpRap-Health-2014.pdf

[20] United Nations. Report of the Special Rapporteur on the right to food. Right to food. Doc. A/71/282, Aug. 2016. Disponível em: https://globalfoodlaws.georgetown.edu/wp-content/uploads/2024/01/A_71_282-EN.pdf

Publicado originalmente no JOTA
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-anvisa-e-o-caso-da-publicidade-de-alimentos-e-bebidas-nao-saudaveis